São Paulo, domingo, 04 de setembro de 2005

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+ sociedade

Para o filósofo esloveno, abusos sexuais cometidos dentro da igreja, antes que desvios da norma, são expressões do "segredo obsceno" que constitui a identidade e a lógica interna da instituição

A sedução do catolicismo

Danilo Schiavella - 15.mai.2005/Associated Press
Jovem é ordenado padre na basílica de são Pedro, na cidade do Vaticano


SLAVOJ ZIZEK
COLUNISTA DA FOLHA

Um escândalo embaraçoso vem assombrando a Igreja Católica na Croácia: vários casos de abuso sexual grave vieram à tona no orfanato Alojzije Stepinac, nas proximidades de Zagreb, administrado pela Caritas [ONG católica]. Diversas ONGs começaram a chamar a atenção para os casos ainda em 2002, quando começaram a receber telefonemas desesperados denunciando o abuso verbal, físico e sexual de crianças e adolescentes, em escala sistemática e maciça.
O ministro do Trabalho e do Bem-Estar Social na época, membro do partido ex-comunista, que encabeçava a coalizão governista, decidiu barrar o procedimento. Mais tarde, justificou sua iniciativa com uma explicação cuja franqueza é deprimente: "Se eu tivesse feito alguma coisa ou fechado o orfanato, teriam me crucificado, tachando-me de comunista maligno que quer reprimir a igreja".
Finalmente foram encontradas evidências incriminadoras suficientes, a polícia começou a investigar, e a imprensa passou a noticiar o assunto. E, numa atitude que não chegou a surpreender, autoridades da igreja disseram que o escândalo viera à tona porque a "mídia anticatólica" queria algo de ruim a noticiar para compensar pela cobertura dos últimos dias de vida de João Paulo 2º, que teria beneficiado a igreja.


Longe de ser uma religião do sacrifício, da renúncia aos prazeres terrenos, o cristianismo oferece um estratagema tortuoso para que possamos realizar nossos desejos sem precisarmos pagar o preço por eles


Durante muito tempo, a diretora do orfanato, Jelena Brajsa, afirmou que haviam ocorrido algumas "situações sexuais" no orfanato, mas que estas eram "normais", assim como os castigos aplicados a "crianças indisciplinadas" são "parte normal do processo educativo". Ela desmentiu categoricamente que qualquer criança ou adolescente tivesse sofrido abusos sexuais por parte de sua equipe; protegida por autoridades da igreja e da Caritas, desafiou os críticos, dizendo que "o Estado não tem nada o que inspecionar em orfanatos católicos". De acordo com Brajsa, "fiscalizar orfanatos católicos é a mesma coisa que autoridades estatais censurarem a missa".
Finalmente chegou um momento em que não foi mais possível seguir essa linha de defesa, já que foram encontrados documentos que demonstraram que Brajsa tinha conhecimento dos abusos, mas tentara encobrir o escândalo para proteger sua própria reputação e a da Igreja Católica. Quando o promotor de Zagreb a acusou de "obstruir a coleta de evidências", a própria igreja optou por uma solução "elegante": Brajsa foi licenciada de seu cargo por razões de saúde e hospitalizada.
É uma história já conhecida, que, tirando seu sabor pós-comunista, poderia ter acontecido em qualquer lugar, nos EUA, Irlanda, Polônia ou Áustria, mas com uma diferença significativa: o que está em jogo não é um caso "corriqueiro" de pedofilia cometida por padres, em que sacerdotes abusam dos meninos que têm sob seus cuidados, mas de responsáveis administradores da igreja atuando como cafetões, fornecendo garotas, em sua maioria frágeis, a homens mais velhos, de fora da instituição (ou, quando eles próprios não as forneciam, toleravam esse tipo de abuso). É crucial não confundir esses tipos distintos de abuso.

Noviça rebelde
A presença de padres (e, mais freqüentemente, de freiras) como mediadores e provedores de serviços sexuais constitui um elemento importante da mitologia católica subterrânea -vale recordar a figura conhecida do padre (ou da freira) como portador máximo da sabedoria sexual. Em "A Noviça Rebelde", Maria foge da família Von Trapp e volta ao convento, por não saber como lidar com a atração sexual que sente pelo barão Von Trapp.
Numa cena memorável, a madre superiora a convoca e a aconselha a voltar à família Von Trapp e tentar resolver sua relação com o barão. Ela dá essa mensagem a Maria numa canção bizarra, "Climb Every Mountain!" [Escale Todas as Montanhas], cujo recado surpreendente é "vá lá, faça! Corra o risco! Faça o que seu coração está pedindo; não deixe que considerações pequenas se interponham em seu caminho!".
A força surpreendente dessa cena consiste na manifestação inesperada do desejo, que torna a cena literalmente constrangedora: justamente a pessoa de quem mais se poderia esperar que pregasse a renúncia e a abstenção se mostra agente da fidelidade para com o desejo.
Significativamente, quando "A Noviça Rebelde" foi exibido na Iugoslávia (ainda socialista) no final dos anos 1960, essa cena -os três minutos que dura a canção- foi o único trecho do filme a ter sido censurado. Com isso, o anônimo censor socialista demonstrou sua sensibilidade profunda em relação ao poder verdadeiramente perigoso da ideologia católica: longe de ser uma religião do sacrifício, da renúncia aos prazeres terrenos, o cristianismo oferece um estratagema tortuoso para que possamos realizar nossos desejos sem precisarmos pagar o preço por eles, para desfrutarmos a vida sem o medo da decadência e da dor debilitante que nos aguardam ao final do dia.
Assim, existe um elemento de verdade em uma piada sobre a oração ideal que uma garota cristã faz à Virgem Maria: "Vós que concebeste sem pecar, permita que eu peque sem precisar conceber!". No funcionamento perverso do cristianismo, a religião é evocada como salvaguarda que nos permite gozar a vida com impunidade.
Temos aqui o lado escondido e obsceno do escândalo de Brezovica: a tolerância, até mesmo a promoção, das transgressões sexuais como propina para nos submetermos ao ritual religioso. Mas isso não é o mesmo que a pedofilia dos padres: esta última se inscreve de maneira muito mais íntima na própria identidade da igreja enquanto instituição. O que torna tão perturbadores esses casos de pedofilia é que eles não apenas ocorrem num ambiente religioso -esse ambiente religioso faz parte deles, sendo mobilizado diretamente como instrumento da sedução, como observou Gary Willis, ele próprio católico crítico:
"A técnica da sedução emprega a religião. Quase sempre, algum tipo de oração foi utilizado como preliminar sexual. Os próprios lugares onde ocorrem os incidentes de molestamento são imbuídos de religião: a sacristia, o confessionário, a reitoria, escolas e clubes católicos com imagens santas nas paredes. [...] A soma do ensino religioso excessivamente rígido da igreja (por exemplo, sobre o pecado mortal da masturbação, da qual mesmo um incidente, se não for confessado, pode enviar seu praticante ao inferno) com um guia capaz de libertar-nos de ensinamentos inexplicavelmente sombrios, por meio de exceções inexplicavelmente sagradas. [O predador] utiliza a religião para sancionar o que faz, chegando a descrever o sexo como parte de seu ministério sacerdotal".
Assim evoca-se a religião não apenas para criar o frisson do proibido, para intensificar o prazer, transformando o sexo em ato de transgressão: pelo contrário, o próprio sexo é apresentado em termos religiosos, assim como a cura religiosa do pecado (da masturbação).
Os padres pedofílicos não são liberais que seduzem garotos, afirmando que a sexualidade homossexual é saudável e permitida: primeiro eles insistem que o pecado confesso do garoto (a masturbação) realmente é mortal, e então oferecem como procedimento "de cura" atos homossexuais (por exemplo a masturbação mútua) -ou seja, algo que só pode ser percebido como pecado ainda maior. A chave está nessa misteriosa "transubstanciação" pela qual a própria lei que nos faz sentir culpa quando cometemos um pecado comum nos prescreve um pecado muito maior. A única maneira de superar um pecado é por meio de um pecado ainda maior.
A Igreja Católica autoriza pelo menos dois níveis dessas normas não escritas e obscenas. Primeiro, é claro, existe a infame Opus Dei, a "máfia branca" da própria igreja, a organização semi-secreta que, não se sabe bem como, encarna a lei pura, para além de qualquer legalidade positiva: sua regra suprema é a obediência incondicional ao papa e a determinação implacável de trabalhar pela igreja, sendo todas as outras regras potencialmente suspensas.
Seus integrantes, cuja tarefa consiste em penetrar os mais altos círculos políticos e sociais, mantêm em segredo o fato de pertencerem à organização. Eles são, de fato, "opus dei", a "obra de Deus". E há a abundância de casos de molestamento sexual de crianças por parte de padres, casos esses tão difundidos, desde a Áustria e a Itália até a Irlanda e os EUA, que se pode falar efetivamente de uma "contracultura" articulada e presente no interior da igreja, dotada de seu conjunto próprio de regras ocultas. E existe um vínculo claro entre as duas coisas, já que a Opus Dei intervém regularmente para abafar escândalos sexuais protagonizados por sacerdotes.
O que, então, nos permite concluir que esses crimes e obscenidades sexuais integram a própria identidade da igreja enquanto instituição? Não os atos em si, mas a maneira como a igreja reage quando eles vêm à tona: uma atitude defensiva, brigando por cada milímetro que é obrigada a conceder, reduzindo as acusações ao fomento de escândalos, a propaganda anticatólica, fazendo todo o possível para minimizar e isolá-los, oferecendo reconhecimentos condicionais ("se algum crime de fato foi cometido, então, é claro, a igreja o condena"). Fazendo a alegação absurda de que deve se permitir que a igreja cuide dos problemas à sua própria maneira, oferecendo soluções burocráticas "elegantes" que poupam a todos (os responsáveis pelos abusos recebem licença médica ou são afastados como parte de uma reorganização administrativa "normal").
Assim, quando representantes da igreja insistem que esses casos, por deploráveis sejam, são parte do problema interno da igreja, manifestando grande relutância em colaborar com as investigações policiais, eles têm razão, de certa forma: a pedofilia de padres católicos não é algo que diz respeito apenas às pessoas envolvidas, que, por razões acidentais de uma história pessoal que não guarda relação com a Igreja Católica como tal, optaram pela profissão de padre. É um fenômeno que concerne à Igreja Católica ela própria, que é inscrito no próprio funcionamento da igreja como instituição socio-simbólica. Não diz respeito ao inconsciente "particular" dos indivíduos, mas ao "inconsciente" da própria instituição. Não é algo que acontece porque a instituição, para sobreviver, seja obrigada a adaptar-se à realidade patológica da vida da libido, mas algo de que a própria instituição necessita para poder se reproduzir.
Em outras palavras, o que acontece não é apenas que, por razões conformistas, a igreja tente abafar os escândalos pedofílicos embaraçosos: ao defender-se, a igreja defende seu segredo obsceno e mais interno. O que isso quer dizer é que identificar-se com esse lado oculto é um elemento-chave da própria identidade de um sacerdote cristão.
Se o padre denunciar esses escândalos seriamente (não apenas da boca para fora), ele estará se excluindo da comunidade eclesiástica. Deixará de ser "um de nós", exatamente como um cidadão de uma cidade do sul dos Estados Unidos, na década de 1920, se denunciasse a Ku Klux Klan à polícia, se excluía de sua comunidade, ou seja, traía sua solidariedade fundamental. Essa é também a razão pela qual não se podem explicar esses escândalos sexuais como manipulação dos adversários do celibato, que querem comprovar que, se os desejos sexuais dos padres não encontrarem via de expressão autorizada, terão que explodir de maneira patológica.
Autorizar os padres católicos a se casarem não resolveria nada: não teríamos padres que fazem seu trabalho sem molestar meninos, já que a pedofilia é gerada pela instituição católica do sacerdócio como sua "transgressão inerente", seu complemento secreto e obsceno.
Conseqüentemente, a resposta à relutância da igreja não deve ser apenas a de que estamos lidando com os casos criminosos e que, se a Igreja não participar plenamente da investigação, será vista como cúmplice no crime; e, ademais, que a igreja "em si", como instituição, deve ser investigada para a averiguação da maneira como ela sistematicamente cria condições para tais crimes.
A alegação de que se deve deixar que a igreja cuide sozinha dos crimes de pedofilia cometidos por seus membros não é problemática apenas desde o ponto de vista puramente legal, já que reivindica para a igreja uma espécie de direito extraterritorial mesmo para os crimes comuns, que se enquadram no direito criminal público. Mais ainda, o que a igreja deve fazer, se ela quiser de fato combater seriamente a pedofilia em seu interior, é não apenas dar à polícia liberdade plena para interrogar seus membros e colaborar plenamente com as investigações mas também encarar seriamente a questão de sua própria responsabilidade, enquanto instituição, nesses crimes. É assim que a própria igreja precisa enfrentar o problema.

Slavoj Zizek é filósofo esloveno e autor de "Um Mapa da Ideologia" (Contraponto).
Tradução de Clara Allain.


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