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Adeus à imaginação
Ficção erudita sobre a queda do Antigo Regime na França
evidencia os limites do gênero "romance histórico"
ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA
Em "O Adeus à Rainha", a escritora e ensaísta Chantal
Thomas se propõe a contar alguns dos momentos culminantes da queda do Antigo Regime
francês em 1789 por meio da senhora Agathe-Sidonie Laborde, "leitora
oficial" da rainha Maria Antonieta.
A narradora está agora em Viena,
em 1810, e pretende "relatar essa
derrota tão rápida, total, mas secreta", que mudou a sua vida. Ela recorda com saudades daquele período,
em que não havia a grosseria de Napoleão: "Nosso modelo era a conversa de salão, com suas alusões,
seus subentendidos, sua arte de fazer
o interlocutor brilhar, de nunca impor a própria erudição, de produzir
tiradas inteligentes e divertidas a
partir do nada".
A autora sabe do que está falando:
pesquisadora vinculada ao CNRS
(Centro Nacional de Pesquisa Científica), em Paris, tem estudos publicados sobre Sade, Casanova e sobre
a própria Maria Antonieta, "La Reine Scélérate". Foi uma tarefa impossível, contudo, à medida que o romance era lido, afastar a pergunta:
por que literatura? Ou, para tornar a
questão mais clara (e bem mais
complicada): qual a necessidade de
transformar a sabedoria acumulada
em determinada área em ficção; por
que não escrever outro ensaio; por
que inventar em vez de relatar, se é
para buscar, na invenção, a maior
dose de fidelidade possível ao "real"
(como informa a "orelha" do livro,
"todos os nomes são verdadeiros");
até que ponto faz sentido, atualmente, o "romance histórico"?
Descompasso
Fica-se com a impressão de um
certo descompasso temporal. Primeiro os historiadores descobrem
que podem escrever seus relatos do
ponto de vista dos vencidos, das minorias, a partir de ângulos inusitados ou antes considerados irrelevantes. Aí, a literatura, que já fazia isso
havia séculos, resolve emular a "novidade"...
Não há dúvida que é possível fazer
algo assim, bem como encontrar
respostas artisticamente válidas para todas aquelas questões, como demonstram inúmeros autores contemporâneos. Até no cinema isso
acontece. Basta, por exemplo, pensar em um filme como "A Inglesa e o
Duque", de Eric Rohmer, com o
qual este romance guarda semelhanças, a começar pela escolha dos
personagens centrais que "examinam" recantos muito particulares
da tomada da Bastilha. Ali, porém,
essa visão era aliada a uma revolução formal que ainda não foi totalmente dimensionada.
Pode-se também pensar em um
exemplo de pretensões bem mais
simples. Poucos meses atrás, a editora Record lançou no Brasil o romance policial "Dissolução", que inaugurava uma nova linha dentro de
sua "Coleção Negra", a "Série Histórica". O autor, evidentemente um
doutor na área (como a "orelha" informa...), situa sua trama na Inglaterra do século 16, após Ana Bolena
ter sido... Decapitada. A mando de
Cromwell, um advogado corcunda é
enviado para um mosteiro para solucionar um crime que é logo seguido de outros tantos assassinatos.
Não faltam ao livro mapas, um
glossário e a malfadada "nota explicativa das referências históricas" ao
final. Mas aqui, talvez porque um
certo ridículo seja inevitável, talvez
porque a carga de entretenimento
supere de longe a ambição estilística,
a mistura até funciona, podendo ser
dito da obra quase o mesmo que a
senhora Laborde dizia a respeito da
época em que atuava como leitora
de Maria Antonieta: trata-se de um
esboço de modelo de "literatura" de
salão, "com suas alusões, seus subentendidos, sua arte de" (só às vezes) "impor a própria erudição, de
produzir tiradas inteligentes e divertidas" a partir de quase nada....
Adriano Schwartz é professor de arte, literatura e cultura no Brasil da Escola de Artes,
Ciências e Humanidades da USP-Leste, autor de "O Abismo Invertido - Pessoa, Borges
e A Inquietude do Romance em "O Ano da
Morte de Ricardo Reis'" (Globo).
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