São Paulo, domingo, 4 de outubro de 1998

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Quatro cineastas brasileiros escrevem, com exclusividade, roteiros de curtas-metragens que contam situações inusitadas no dia da eleição
Uma urna para um morto

JOSÉ MOJICA MARINS
especial para a Folha

Sequência 1 - interior - sala - dia.

Euzébio era um desses homens que gostava de tudo certinho, cumpridor de seus deveres, principalmente o de eleitor; nunca passou uma eleição sem votar.
Casado, pai de dois filhos, repórter político, esperava ansioso pelo dia 4 de outubro; ele iria votar cedo e em seguida entrevistaria um eleitor em seu programa, antes do encerramento das votações.
Exatamente às 6h, poucos momentos antes de sua saída, ocorre o imprevisto.

Euzébio - O que o sr. veio fazer a esta hora, seu Simões?
Simões - Você prometeu sair da casa na sexta-feira, e hoje é domingo.
Euzébio - Por favor, a outra casa só fica pronta na terça, e eu garanto que saio sem falta.
Helena (reforçando o assunto) - Pode acreditar, seu Simões, ele irá trabalhar hoje após as eleições, mas na terça-feira a casa estará desocupada.
Simões - Tudo bem, vou esperar.

Sequência 2 - exterior - esquina próxima ao metrô - dia.

Euzébio está descendo o túnel do metrô quando um amigo o aborda.

Arthur - Espere um pouco Euzébio, tenho uma coisa muito importante para falar...
Euzébio - Você não poderia deixar para depois da eleição?
Arthur - Não! Tem que ser agora. Sua mulher está lhe traindo neste instante.
Euzébio - Não pode ser, eu saí de lá agora.
Arthur - Se você quer o flagrante, tem que ser agora, ou você terá fama de corno.
Euzébio (confuso, toma a decisão) - Eu irei para lá agora. Obrigado.
Arthur (sorrindo) - De nada. Os amigos são para essas coisas...

Sequência 3 - interior - quarto - dia.

Euzébio entra pela casa como um foguete, quando surpreende a esposa nos braços de seu melhor amigo.

Helena (assustada) - Euzébio, por favor, não interprete mal.
Flávio (atrapalhado) - É isso mesmo, as coisas não são o que parecem ser.

Euzébio (raivoso, pega uma faca) - Como não parece?! Se os dois estão nus em minha cama?
Helena (carinhosa) - Já passa de meio-dia e você tem que votar e trabalhar, meu amor; por que você não deixa para decidir isso depois?
Euzébio - É, você está certa, o dever em primeiro lugar. Mas depois conversamos.

Sequência 4 - exterior - rua - dia.

Lá vai o nosso eleitor, correndo para as urnas, quando, ao atravessar a rua, é barrado por três marginais.

Marginal 1 (com revólver na mão) - Calma aí, cidadão.
Marginal 2 - Passe a carteira sem reação!
Marginal 3 (nervoso) - Depressinha, senão você leva bala na cabeça.

Euzébio entrega a carteira e os mesmos não percebem que ele trazia no cinto um celular.

Euzébio - Por favor, me deixem só o título de eleitor... (quase chorando).
Marginal 1 (penalizado) - Tá bom, fanático. Fique então com o seu título.

Os marginais se retiram rindo, enquanto o nosso desesperado eleitor corre para o metrô, no mesmo instante em que toca o celular...

Euzébio - Pronto, quem fala?
Celular - Seu chefe, cretino. Você já deveria estar aqui!
Euzébio - Mas eu ainda não votei!
Celular - São 14h. Pegue um táxi e venha para cá, com o entrevistado, faça o seu programa e depois saia para votar.
Euzébio (parando um táxi) - Eu vou para a TV...
Chofer - É rápido, mas parece que o sr. quer dizer algo.
Euzébio - Por acaso o sr. já votou?
Chofer - Já. Dessa estou livre!
Euzébio - O sr. topa levar um cachê para fazer uma entrevista?

O taxista aceita e sai em disparada para a TV.

Sequência 5 - interior - TV - dia.

Logo após Euzébio terminar a entrevista com flashes rápidos, o mesmo sai em disparada para a sala do seu chefe...

Euzébio - Por favor, chefe, como eu fui assaltado, me empreste R$ 100 e desconte no meu pagamento. Eu ainda vou votar...
Chefe (sorrindo) - Você merecia um troféu por sua lealdade em votar.

Euzébio agradece sem palavras e sai desesperado. São 15h30.

Sequência 6 - exterior - rua - dia.

Já na rua, toca o celular novamente.

Celular - Euzébio, é seu irmão. Mamãe sofreu uma queda e está no hospital.
Euzébio - Eu vou votar e depois passo no hospital.
Celular - Ela está desesperada e pede sua presença lá.
Euzébio - Está bem, estou a caminho.

Euzébio pega um táxi e sai a toda velocidade para o hospital.

Sequência 7 - interior - hospital - dia.

São 16h30. No hospital, Euzébio procura dar forças a sua mãe.

Euzébio - Bom, com a graça de Deus a senhora vai se recuperar e todos os dias estarei aqui.
Mãe - Obrigada, filho. Deus lhe abençoe.
Euzébio - Amém. Agora irei votar...

Sequência 8 - interior - sala de votação - dia.

Euzébio consegue chegar a tempo, faltam cinco minutos para encerrar a votação, há somente uma pessoa à sua frente. São exatamente 17h. Euzébio entra na sala.

Euzébio - Por favor, a cédula.
Mesário - Assine aqui.

Euzébio está assinando quando tem uma surpresa.

Mesário (com dor no peito) - Por favor, me ajudem.

O mesário tem um infarto fulminante; alvoroço na sala, encerrando a votação. Euzébio olha para o seu título. Ele não votou, não é mais um cumpridor de seus deveres. Mas uma coisa é certa: de hoje em diante ele tem consciência de que deve dar prioridade à sua segurança familiar e à vida e, somente depois, ao sistema.





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