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Quatro cineastas brasileiros escrevem, com exclusividade, roteiros de curtas-metragens que contam situações inusitadas no dia da eleição
Uma urna para um morto
JOSÉ MOJICA MARINS
especial para a Folha
Sequência 1 - interior - sala - dia.
Euzébio era um desses homens
que gostava de tudo certinho,
cumpridor de seus deveres, principalmente o de eleitor; nunca
passou uma eleição sem votar.
Casado, pai de dois filhos, repórter político, esperava ansioso pelo
dia 4 de outubro; ele iria votar cedo e em seguida entrevistaria um
eleitor em seu programa, antes do
encerramento das votações.
Exatamente às 6h, poucos momentos antes de sua saída, ocorre
o imprevisto.
Euzébio - O que o sr. veio fazer a
esta hora, seu Simões?
Simões - Você prometeu sair da
casa na sexta-feira, e hoje é domingo.
Euzébio - Por favor, a outra casa
só fica pronta na terça, e eu garanto que saio sem falta.
Helena (reforçando o assunto) -
Pode acreditar, seu Simões, ele irá
trabalhar hoje após as eleições,
mas na terça-feira a casa estará desocupada.
Simões - Tudo bem, vou esperar.
Sequência 2 - exterior - esquina
próxima ao metrô - dia.
Euzébio está descendo o túnel do
metrô quando um amigo o aborda.
Arthur - Espere um pouco Euzébio, tenho uma coisa muito importante para falar...
Euzébio - Você não poderia deixar para depois da eleição?
Arthur - Não! Tem que ser agora. Sua mulher está lhe traindo
neste instante.
Euzébio - Não pode ser, eu saí de
lá agora.
Arthur - Se você quer o flagrante, tem que ser agora, ou você terá
fama de corno.
Euzébio (confuso, toma a decisão) - Eu irei para lá agora. Obrigado.
Arthur (sorrindo) - De nada. Os
amigos são para essas coisas...
Sequência 3 - interior - quarto -
dia.
Euzébio entra pela casa como um
foguete, quando surpreende a esposa nos braços de seu melhor
amigo.
Helena (assustada) - Euzébio, por
favor, não interprete mal.
Flávio (atrapalhado) - É isso
mesmo, as coisas não são o que
parecem ser.
Euzébio (raivoso, pega uma faca)
- Como não parece?! Se os dois estão nus em minha cama?
Helena (carinhosa) - Já passa de
meio-dia e você tem que votar e
trabalhar, meu amor; por que você
não deixa para decidir isso depois?
Euzébio - É, você está certa, o
dever em primeiro lugar. Mas depois conversamos.
Sequência 4 - exterior - rua - dia.
Lá vai o nosso eleitor, correndo
para as urnas, quando, ao atravessar a rua, é barrado por três marginais.
Marginal 1 (com revólver na mão)
- Calma aí, cidadão.
Marginal 2 - Passe a carteira sem
reação!
Marginal 3 (nervoso) - Depressinha, senão você leva bala na cabeça.
Euzébio entrega a carteira e os
mesmos não percebem que ele trazia no cinto um celular.
Euzébio - Por favor, me deixem só
o título de eleitor... (quase chorando).
Marginal 1 (penalizado) - Tá
bom, fanático. Fique então com o
seu título.
Os marginais se retiram rindo, enquanto o nosso desesperado eleitor corre para o metrô, no mesmo
instante em que toca o celular...
Euzébio - Pronto, quem fala?
Celular - Seu chefe, cretino. Você já deveria estar aqui!
Euzébio - Mas eu ainda não votei!
Celular - São 14h. Pegue um táxi
e venha para cá, com o entrevistado, faça o seu programa e depois
saia para votar.
Euzébio (parando um táxi) - Eu
vou para a TV...
Chofer - É rápido, mas parece
que o sr. quer dizer algo.
Euzébio - Por acaso o sr. já votou?
Chofer - Já. Dessa estou livre!
Euzébio - O sr. topa levar um cachê para fazer uma entrevista?
O taxista aceita e sai em disparada
para a TV.
Sequência 5 - interior - TV - dia.
Logo após Euzébio terminar a entrevista com flashes rápidos, o
mesmo sai em disparada para a sala do seu chefe...
Euzébio - Por favor, chefe, como
eu fui assaltado, me empreste R$
100 e desconte no meu pagamento.
Eu ainda vou votar...
Chefe (sorrindo) - Você merecia
um troféu por sua lealdade em votar.
Euzébio agradece sem palavras e
sai desesperado. São 15h30.
Sequência 6 - exterior - rua - dia.
Já na rua, toca o celular novamente.
Celular - Euzébio, é seu irmão.
Mamãe sofreu uma queda e está
no hospital.
Euzébio - Eu vou votar e depois
passo no hospital.
Celular - Ela está desesperada e
pede sua presença lá.
Euzébio - Está bem, estou a caminho.
Euzébio pega um táxi e sai a toda
velocidade para o hospital.
Sequência 7 - interior - hospital -
dia.
São 16h30. No hospital, Euzébio
procura dar forças a sua mãe.
Euzébio - Bom, com a graça de
Deus a senhora vai se recuperar e
todos os dias estarei aqui.
Mãe - Obrigada, filho. Deus lhe
abençoe.
Euzébio - Amém. Agora irei votar...
Sequência 8 - interior - sala de votação - dia.
Euzébio consegue chegar a tempo,
faltam cinco minutos para encerrar a votação, há somente uma
pessoa à sua frente. São exatamente 17h. Euzébio entra na sala.
Euzébio - Por favor, a cédula.
Mesário - Assine aqui.
Euzébio está assinando quando
tem uma surpresa.
Mesário (com dor no peito) - Por
favor, me ajudem.
O mesário tem um infarto fulminante; alvoroço na sala, encerrando a votação. Euzébio olha para o
seu título. Ele não votou, não é
mais um cumpridor de seus deveres. Mas uma coisa é certa: de hoje
em diante ele tem consciência de
que deve dar prioridade à sua segurança familiar e à vida e, somente depois, ao sistema.
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