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Passe livre
Copa de 2014 pode representar a revolução burguesa
que o Brasil nunca teve
MARCO ANTONIO VILLA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Na última terça-feira em Zurique,
na sede da Fifa, a
delegação brasileira, tendo à
frente o próprio presidente
da República, reforçou mais
uma vez os estereótipos sobre o Brasil. Foi um dia de
Afonso Celso [1860-1938], o
autor de "Por que Me Ufano
do Meu País".
O Brasil foi apresentado
como a terra do futebol; o
"povo", como dócil, alegre e
hospitaleiro, e, o país, cercado de belezas naturais. Só faltaram as mulatas sambando e
rebolando ao som de uma bateria de escola de samba.
Lula teve mais uma oportunidade para viajar e discursar. Uma dúzia de governadores esteve presente. E ai de
quem não fosse: seria considerado um traidor nacional.
A transformação da candidatura brasileira em uma causa
sagrada já tinha transformado a Copa -como seria dito
na ditadura- em um objetivo
estratégico nacional.
Toda a mobilização visou a
dar uma aparência de união
nacional, suprapartidária,
mesmo sem ter nenhum país
concorrente: uma espécie de
Batalha de Itararé.
Imagens de pontos turísticos, com algumas dezenas de
pessoas exibidas na televisão,
simulavam um interesse popular pela escolha. Simulavam, pois a imagem mais patética foi a do estádio do Morumbi vazio, sem viva alma.
A partir de agora começará
a mais intensa campanha de
propaganda do ufanismo nacional. Sete anos de "ame-o
ou deixe-o". O coronel Octavio Costa, chefe da Assessoria
Especial de Relações Públicas
(AERP) do governo Médici,
uma espécie de mini-DIP
criado pela ditadura militar,
montou um grande operação
de propaganda durante os
preparativos para a Copa do
Mundo de 1970.
Até a organização da comissão técnica da seleção
brasileira teve interferência
militar: do chefe da delegação
aos preparadores físicos, onde pontificavam os capitães
Cláudio Coutinho e Carlos
Alberto Parreira. Mas a ação
da AERP, seus slogans e marchinhas, será, como gosta de
dizer Lula, "café pequeno".
O ufanismo -que esbarra
no xenofobismo- deverá
marcar os próximos anos. Lula fez questão de atacar os argentinos logo após a divulgação da escolha do Brasil de
forma gratuita -numa ação
"galvãobuenista".
Se começou assim, não será
exagero imaginar um clima
bélico em 2014.
Em 1950, quando foi organizada a Copa no Brasil, o clima do país era outro. Assim
como em 2014, o evento
ocorreu em pleno calendário
eleitoral, que reconduziu, em
janeiro de 1951, Getúlio Vargas à Presidência.
A grande obra pública foi a
construção do Maracanã, em
meio a acusações de corrupção. Estávamos caminhando
para a democracia depois da
ditadura do Estado Novo e de
um governo ultraconservador, como foi a Presidência
Dutra. Mas a seleção brasileira acabou perdendo a final.
Uma das acusações foi a de
clima de "desordem", especialmente na véspera do jogo
contra a seleção uruguaia.
Vinte anos depois, a "ordem"
militar foi elogiada pelos cronistas esportivos e até pelos
jogadores, mesmo aqueles
que buscaram reescrever o
seu passado pessoal.
Os empresários brasileiros,
que protestam contra a fabulosa carga tributária e os gastos excessivos e perdulários
do governo, podem dar uma
demonstração de que combinam o discurso com a ação.
Ou seja, diversamente do
que ocorreu no Pan do Rio,
quando os gastos governamentais superaram dez vezes
as primeiras previsões -favorecendo grupos econômicos que tinham ligações preferenciais com os organizadores-, poderiam assumir a
direção do evento e de todos
os gastos, dando um exemplo
de compromisso com o país.
E também de coerência
com o discurso anti-estatista.
No Brasil, iniciativa privada tem um curioso significado: a iniciativa é estatal, porém os lucros são privados.
A burguesia é muito dependente do Estado. Organizando a Copa pode dar seu grito
de Independência.
Como tudo no Brasil gira
em torno do futebol, inclusive os exemplos e as metáforas do cotidiano e da política,
a Copa de 2014 poderá ser a
nossa revolução burguesa -e
com um custo humano, social
e material infinitamente menor do que as revoluções
Francesa ou Inglesa.
O Terror, tal qual na França [1793-94], só existiria se [o
jogador] Júnior Baiano fosse
convocado como zagueiro
central. Mas desse perigo, ao
menos, estamos livres.
MARCO ANTONIO VILLA é professor de história
da Universidade Federal de São Carlos (SP) e autor de "Jango, um Perfil" (ed. Globo).
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