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O futuro não é longe daqui
Sai tradução de "O Último Homem", de Mary Shelley, escritora inglesa que deu início à ficção científica, no século 19
ROBERTO DE SOUSA CAUSO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Mary Shelley
(1797-1851) é a
conhecida autora de "Frankenstein"
(1818), a obra inaugural da ficção científica moderna. "O Último Homem", de 1826, não
havia sido publicado no Brasil
até esta edição bilíngüe.
São as duas obras de ficção
científica de Mary, mulher de
Percy Bysshe Shelley, um dos
grandes poetas do romantismo
inglês, parte do que Rubens
Scavone chamou de "séquito"
de outro grande nome da poesia britânica, lorde Byron.
Narrado por Lionel Verney,
o livro é ambientado no final do
século 21. Verney e sua irmã,
Perdita, são agregados de
Adrian, herdeiro do trono inglês (mas de pendor republicano). Ainda existe um Império
Britânico, o transporte rápido é
feito por dirigíveis, máquinas
cuidam das principais necessidades humanas. O desenvolvimento social mais saliente é a
instauração da república na Inglaterra.
Mas o interesse da autora
não está na especulação social
e científica, e sim na narrativa
dentro dos cânones do romantismo: estilo rico, celebração da
natureza, exaltação de sentimentos, viradas do destino,
aparições espectrais, donzelas
disfarçadas de soldados, intrigas amorosas.
É uma obra mais complexa
do que "Frankenstein". Mais
atenção é dada a questões políticas, e dados da biografia da
autora são costurados à narrativa -Adrian é modelado em
Percy; lorde Raymond corresponde a Byron; Perdita a Clair
Clairmont, meia-irmã de Mary;
e Clara, filha de Verney, tem o
nome da primeira filha de
Mary com Percy, morta na infância. A paisagem é aquela freqüentada por Mary e o séquito
de Byron, na Inglaterra ou na
Europa continental.
De fato, "O Último Homem"
é um "roman à clef", com fatos
da vida real disfarçados como
ficção. Especialmente a primeira metade, que narra como
Raymond liderou a liberação
da Grécia do jugo turco (Byron
participou do conflito) depois
de abdicar de sua posição política na Inglaterra. A guerra é
descrita como choque entre o
mundo cristão e o muçulmano.
Praga devastadora
Das ruínas de Istambul surge
a praga devastadora. Ela domina a segunda parte do romance,
narrada do ponto de vista
-central para a Inglaterra, mas
não global- das amizades de
Verney. A autora explicita o
efeito comparativo: "O mesmo
sentimento que primeiro me
levou a retratar cenas repletas
de ternas lembranças agora me
obriga a me apressar".
A humanidade vibrante desse círculo de amizades é confrontada com o seu rápido desaparecimento.
Buscando o sublime e mantendo uma separação de estilos,
Mary não desce aos detalhes
mais grotescos da peste.
Seu enfoque é devedor do romance de Daniel Defoe "A
Journal of the Plague Years"
[1722, Diário dos Anos da Peste] e da ficção científica francesa de 1806 "Le Dernier Homme" [O Último Homem], de
Jean-Baptiste Cousin de
Grainville, no qual o último homem se refugia no Brasil.
Nessas obras, a idéia do fim
do mundo sai do terreno teológico, assume a descrição do impacto social imediato e vai para
o terreno da especulação futurista -dentro de limites anteriores à microbiologia e ao darwinismo. A transição é expressa no livro, quando exilados ingleses liderados por Adrian encontram um velhaco profeta do
apocalipse, na França.
A partir da publicação de "O
Fim do Mundo" (1894), de Camille Flammarion, e do conto
"A Estrela" (1894), de H.G.
Wells, firmou-se até meados do
século 20 a tomada panorâmica, distanciada, no emprego da
idéia do fim do mundo-como-o-conhecemos (quer ele se concretize ou não).
Isso ocorre em romances de
desastre como "A Nuvem da
Morte" (1913), de Arthur Conan Doyle, e "A Nuvem Negra"
(1957), de Fred Hoyle. Uma exceção é "Só a Terra Permanece"
(1949), de George R. Stewart,
também sobre uma praga global. Esse romance inspirou Stephen King a narrar, sem medo
nem do grotesco nem do sobrenatural, a progressão de uma
supergripe planetária, em "A
Dança da Morte" (1978).
Sensibilidade exaltada
A essa visada impessoal que
viria a prevalecer, Mary oferece
a perspectiva inversa -toda a
tragédia do fim do mundo passa pela sensibilidade exaltada
do narrador, que descreve não
apenas a peste, o pânico e os
distúrbios civis mas a perda de
seus familiares e amigos íntimos, idealizados em sua caracterização de pessoas habilitadas ao "bem viver" da sensibilidade artística e humana.
O romance adquire uma perturbadora harmonia, da qual
emerge o seu real sentido trágico, admitindo o excessivo estilo
romântico e os dados da biografia da autora: o "leitmotiv" do
"último homem na terra", também firmado nesse livro, parte
talvez do sentimento da própria Mary, que em 1826 já havia
perdido Percy (em 1822) e
Byron (em 1824), ao antecipar a
dissipação da "boa sociedade"
de que participara.
ROBERTO DE SOUSA CAUSO é autor de "Ficção Científica - Fantasia e Horror no Brasil, 1875
a 1950" (ed. UFMG).
O ÚLTIMO HOMEM
Autora: Mary Shelley
Tradução: Marcella Furtado
Editora: Landmark (tel. 0/xx/11/
6011-2566)
Quanto: R$ 51,50 (496 págs.)
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