São Paulo, domingo, 04 de dezembro de 2005 |
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O grotesco imobilizado
Em tom monocórdico, o romance "Maldita Morte", de Fernando Royuela, revive a picaresca espanhola
Essa retórica escatológica, inerente à estética do grotesco, que na tradição da picaresca espanhola salta com a fisgada do humor, aqui se imobiliza: é monocórdico o infinito monólogo autobiográfico do anão Goyo. Começa na miséria e desemboca na riqueza por meio do crime e da traição. O personagem corrige Hobbes, "o homem é um mercado para o homem", e assim constrói seu império, esbanjando fortunas "nas noites floridas de vulvas". O mesmo tom invariável achata o cenário histórico e político -do fim da Guerra Civil Espanhola aos anos 70-, que surpreendentemente em nada se diferencia do universo degradado do circo onde viveu o protagonista. A violência dos espetáculos, com palhaços de "riso oco", dirigidos por "um filho-da-puta decadente", equilibra-se com o "franciscanismo laico dos marxistas" reunindo-se em "antros gerontológicos" que cheiravam tão intensamente como "o fedor das jaulas do circo Stéfano". Esse traço de brutalidade sem tréguas transforma em fichinha as ousadias que servem de modelo a "Maldita Morte". A dívida maior é com Quevedo, que revitaliza o gênero ao estruturar "El Buscón" no afã de ascensão social do protagonista, como faz Royuela com seu anão. Mas os excessos de Quevedo se misturam não à ofensa, mas à comicidade popular, o que o une a autores como Rabelais e Cervantes. Em Royuela isso é traço rasurado. Contudo existem dois procedimentos que procuram abrir brechas em "Maldita Morte", na busca de um ritmo de tensão e distensão, necessário tanto na arte como no amor. O primeiro é a descoberta da poesia, após o protagonista furtar as "Rimas", de Bécquer, do grupo escolar. "Eu, além de anão, tenho a desgraça de estremecer com a poesia." Dentro de um estábulo e "fugido do mundo", incógnito saboreia "a espuma da rima entre as bostas dos bichos". Aqui e em vários momentos a metáfora inflama as formas brutalizadas, provocando uma centelha que abala o achatamento intencional do tom. A morte anunciada O segundo procedimento encerra o livro dentro dele mesmo: o final retoma a epígrafe, extinguindo os mundos imaginários. Essa é a morte anunciada no título: o livro é apenas livro, o tempo da vida é o tempo da leitura e o leitor, ao ler a obra, se transforma no "verdugo" do agonizante, no "carrasco da providência". Mas, mesmo aqui, o narrador rebaixa o nível: literatura e pintura são "entretenimento macabro", "atos baixos e condenáveis", devendo ser tratados com "desprezo, desdém e rigor cívico". Provocação? Chicotada na suposta eficácia das artes no mundo cão em que vivemos? É cedo para decidir. Mas podemos também entrever no exibicionismo da manobra o avesso do cinismo, isto é, a condenação violenta de tudo isso. Não nos esqueçamos que o narrador-personagem é o anão, criatura pérfida, deformada física e moralmente. A verdade é que, apesar de tudo, vigor não falta a Royuela. Nem a disposição de beber o veneno até a última gota (conforme a dedicatória). Deveria ser leitura obrigatória a autores que também esquecem a violência necessária para usar apenas o escândalo como o cristal de suas vitrines. Mas, ao contrário do espanhol, sem nenhum mau-humor, furor ou melancolia asfixiante, sentimentos certamente imprescindíveis. Vilma Arêas é professora de literatura brasileira na Universidade Estadual de Campinas e autora, entre outros livros, de "Clarice Lispector com a Ponta dos Dedos" e "Trouxa Frouxa" (ambos pela Cia. das Letras. Maldita Morte 350 págs., R$ 45 de Fernando Royuela. Tradução de Elisa Amorim Vieira. Ed. Bertrand Brasil (r. Argentina, 171, 1º andar, CEP 20921-380, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/xx/21/ 2585-2070). Texto Anterior: + livros: Humanidade em negativo Próximo Texto: + livros: A polifonia do corpo Índice |
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