São Paulo, domingo, 04 de dezembro de 2005

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+ literatura

Kenzaburo Oe, o mais importante autor japonês vivo e ganhador do Prêmio Nobel em 1994, fala sobre o novo romance, "Adeus, Meu Livro", explica por que voltou a escrever e diz que seu país é "ambíguo"

A última comunhão

DA REDAÇÃO

Prêmio Nobel de Literatura em 1994, o escritor japonês mais prestigiado fora de seu país fala de seu processo de criação, de "Adeus, Meu Livro", que acaba de lançar, e discute o lugar do Japão no mundo de hoje nesta entrevista concedida ao jornal "Le Monde" em sua casa em Seijo, um subúrbio de Tóquio.
 

Pergunta - Há cerca de dez anos o sr. anunciou que renunciava ao romance. Por que recuou nessa decisão, escrevendo sucessivamente "Salto Perigoso" (1999) e uma trilogia cujo último volume, "Adeus, Meu Livro", acaba de ser publicado no Japão?
Kenzaburo Oe -
Ao me aproximar dos 60 anos, percebi que, desde a época em que era estudante, eu havia escrito romances e que minha vida inteira havia se centralizado na escrita. Pensei que, parando, poderia refletir sobre o que foi a essência de minha existência e assim preparar o inverno de minha vida.
A morte de meu amigo, o compositor Toru Takemitsu, em 1996, me instigou a me perguntar -se um dia nos encontrássemos no além e ele me indagasse sobre o que fiz na minha vida- o que eu lhe responderia. E comecei a ler, da manhã à noite. Depois, o desaparecimento de outros amigos queridos me trouxe de volta ao romance.


Envelhecer é aceitar a espera da morte como o ponto extremo de um processo contínuo


A escrita dessa trilogia ocupou os cinco últimos anos dos meus 60. "A Criança Trocada", o primeiro da trilogia, foi escrito depois do suicídio de meu amigo de infância e cunhado, o cineasta Juzo Itami, em 1997.
No seguinte, "A Criança de Rosto Triste", volto, por meio de um escritor que lê Cervantes, ao tema de "A Criança Trocada". O último é inspirado no poeta e dramaturgo inglês T.S. Eliot [1888-1965], mais particularmente nos "Quatro Quartetos", poemas sobre a experiência no tempo e além do tempo. Eu sempre amei essa obra, mas creio que pela primeira vez a compreendi.

Pergunta - O que fez durante os anos em que não escreveu romances?
Oe -
Li Espinosa. Fui fortemente influenciado pelo Sartre de "O Imaginário". E a leitura, um pouco por acaso, do livro de Gilles Deleuze "Espinosa - Filosofia Prática" me fez mergulhar novamente na "Ética".
Espinosa atribui o pensamento falso à força da imaginação. Uma idéia que me obrigou a refletir sobre mim mesmo, pois toda a minha vida foi habitada pela imaginação. Foi quando eu estava mergulhado nessa atitude espinosista do homem -visto como um ser menos de conhecimentos que de desejos, envolvido na perpetuação de sua existência- que Juzo Itami se suicidou.
O desaparecimento do amigo de infância subitamente me fez sentir a presença da morte, a possibilidade de eu também pôr fim a meus dias. Destruir a si mesmo é a antítese da "perseverança em seu ser" de Espinosa. A alegria livre que encontrei nesse filósofo me permitiu, entretanto, superar essa crise.
Mas, ao mesmo tempo, tomei consciência de que, ao ler a "Ética" da manhã à noite, acabava indo ao encontro dessa "perseverança no ser" e que me destruía aos poucos. Então voltei a escrever...

Pergunta - Como o senhor trabalha? Como o romance amadurece?
Oe -
Lendo. Não levo muito tempo para imaginar a intriga, os personagens. Mas o estilo é fruto de um lento amadurecimento ao longo de passeios por leituras. É por meio desse trabalho que começa a se forjar o estilo do romance em que eu penso. Leio sobretudo poetas estrangeiros. Às vezes, para me embeber, chego a copiar os textos. Para "Adeus, Meu Livro" foi Eliot. Esse autor acompanhou minha vida desde a universidade, mas foi preciso esperar 60 anos para que eu pudesse encontrar nele uma emulação.

Pergunta - Outro autor teve um papel determinante na sua trajetória, o francês Pierre Gascar.
Oe -
Sim. Eu estava na universidade quando o li na tradução de meu professor Kazuo Watanabe. Foi somente mais tarde que compreendi como eu havia sido influenciado por sua coletânea de contos "As Feras" e pela expressão "a imensa comunhão", que ele utiliza.
As palavras que nos marcaram quando éramos jovens ficam gravadas para sempre na memória. Hoje eu avalio o cruzamento que existe entre mim e o pensamento de Eliot e o de Pierre Gascar. A comunhão, isto é, o ato de compartilhar, é sem dúvida o ato mais nobre do homem. Eu tento refletir sobre isso na última parte de "Adeus, Meu Livro".

Pergunta - O sr. falou em envelhecimento. O que significa envelhecer?
Oe -
Sem dúvida, no entardecer da vida, a "perseverança em seu ser" de que fala Espinosa enfraquece. Pelo menos é o que sinto. Se tomarmos o exemplo de Yukio Mishima, que é um pouco minha antítese pelas idéias que ele defendia (o dogma do imperador como símbolo da perenidade cultural) e que pôs fim a sua vida (ele se suicidou em 1970, com 45 anos), penso que houve um duplo motivo para seu ato.
Primeiro, os limites de um estilo que nunca evoluiu acompanhando as etapas de sua vida. Ainda que tivesse vivido mais, ele nunca teria sido um Junichiro Tanizaki, que soube fazer sua escrita evoluir ao longo do tempo. Além disso, Mishima era assombrado pelo fim de Thomas Mann, ferido, mortificado. Um destino que lhe parecia insuportável.
Para mim, envelhecer é aceitar a espera da morte como o ponto extremo de um processo contínuo. Essa aceitação não significa passividade. Como Eliot em um de seus poemas, penso que não se deve esperar sabedoria do homem velho, mas, ao contrário, a "loucura" em relação ao senso comum, uma espécie de irreverência diante da ordem estabelecida. A definição de obra última ("later work") de Edward Said me atrai muito. Um intelectual ou artista conhecido deve se revoltar até o fim contra a sociedade. Ibsen ou Beethoven se inclinam para a catástrofe.
Quanto a mim, tomaria sobretudo o exemplo dos últimos textos de Louis-Ferdinand Céline, notadamente a admirável caricatura que é "De Castelo em Castelo" (Companhia das Letras).

Pergunta - Em "Adeus, Meu Livro", o herói é um velho escritor hospitalizado, chamado Kogito (do "cogito" cartesiano), que é visitado por um arquiteto que sonha com uma máquina infernal para se opor à violência do Estado. Kogito tem um prenome, Choko, que significa "rio longo", enquanto seu sobrenome, Oe, significa "grande rio". Quem é Kogito?
Oe -
Um escritor que sobreviveu a uma catástrofe e não consegue mais escrever. Ele está à procura da atitude que adotará diante da morte. Como eu, é um homem que nunca se sentiu sereno, tranqüilo no coração. Ele é um idoso, mas no fundo de si mesmo continua um adolescente, isto é, um ser "imaturo", que estará "em formação" até o fim.

Pergunta - O senhor já descreveu o intelectual como o canário que é colocado em uma mina de carvão para detectar um risco de vazamento de gás e cujo grito anuncia a morte. Qual pode ser seu lugar no Japão contemporâneo, onde se confirma um consenso apático caracterizado pela falta de questionamento?
Oe -
Para mim, um intelectual é aquele que pode e deve falar "como amador", fora do seu campo de especialidade, para lembrar que existem outras maneiras de ver, de conceber o real, além das veiculadas pelo discurso dominante. Continuo escrevendo opiniões críticas todo mês em jornais e fazendo conferências. Continuo sendo "perturbador". Alguns me denigrem ou me consideram com condescendência. Mas é preciso constatar que no Japão existem cada vez menos intelectuais contestadores.
A consciência democrática desse país não fez surgir nenhuma personalidade capaz de exprimir com vigor o sentimento de cólera e de traição de nossos ideais que constitui a guerra no Iraque.
Eu sou sem dúvida esse canário na mina, já prestes a morrer, mas pretendo continuar "cantando" até o último sopro, para me esforçar, simplesmente, a viver com dignidade.

Pergunta - O senhor intitulou seu discurso de recebimento do Prêmio Nobel, em 1994, de "Eu, de um Japão Ambíguo". O Japão ainda é ambíguo, apesar de ser mais do que nunca pró-americano?
Oe -
Pela primeira e única vez, o ex-primeiro-ministro Yasuhiro Nakasone [entre 1982 e 87], considerado um "falcão", citou meu discurso em Estocolmo: se o Japão é ambíguo, é preciso reformá-lo, a começar por sua Constituição pacífica. É evidentemente o contrário do que eu dizia, pois acredito que é preciso preservar essa Constituição a qualquer preço. Somos muitos a animar uma Associação de Defesa do Artigo 9º da Lei Fundamental (de renúncia à guerra). Mas hoje o Japão tem menos espírito crítico. O Japão não é mais uma potência independente e, enquanto sua Constituição lhe permitiria tomar iniciativas independentes do uso da força, ele caminha na direção contrária.
Tenho muito poucas esperanças de que as coisas mudem. Sou pessimista sobre o futuro de um mundo dominado hoje pelas "guerras de vingança" dos EUA, apresentadas como "guerras justas". Mas, quando o homem está encurralado, perseguido, às vezes aparece uma saída... Escrever um romance é apostar nessa esperança, dar crédito à vida.

Pergunta - O sr. acaba de criar um prêmio literário cujo júri é formado apenas por si mesmo [o Oe Prize, criado pela editora Kodansha para premiar novos talentos, cujo primeiro premiado será divulgado em 2007]...
Oe -
A literatura japonesa carece de crítica sólida. Quero dar a conhecer o que considero um "dizer autêntico" de autores cujas obras não são obrigatoriamente sucessos de venda. Eu gostaria assim de ajudar jovens escritores a tomarem consciência de que a literatura é um verdadeiro trabalho... Uma idéia absurda de velho, não é?


Esta entrevista foi publicada no "Le Monde".
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.


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