São Paulo, domingo, 5 de janeiro de 1997.

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Nosso século não é mais o da mecânica, mas o de um conjunto de informações e gestos que visam modificar tecnicamente o real
Os dois salões

ROLAND BARTHES


Dizem que os antigos egípcios inscreviam seus templos num espaço simbólico afim ao contorno de um corpo humano. Da mesma maneira, o Salão do Equipamento de Escritório, instalado sob a vasta concha de La Défense, é bem a imagem do nosso cérebro: aqui as funções de memória (arquivos), ali as da linguagem escrita (máquinas de escrever) ou falada (máquinas de ditar), acolá ainda as funções motoras (transmissão e difusão de comandos). É um salão bem mais civilizado do que seu rival triunfante, o Salão do Automóvel.
No Grand Palais expõem-se variações de modelos de um mesmo e único objeto: nenhuma relação entre essas variações senão a de concorrência; aqui, ao contrário, os objetos não apenas diferem, eles ainda se complementam, fazem parte de uma economia do espírito. O Salão do Automóvel é uma feira, no sentido quase ritual da palavra; o Salão do Escritório é uma pequena cosmografia, a representação de uma estrutura.
O automóvel é um objeto de lazer, ele serve a atividades de deleite, não de conquista; seu desenvolvimento técnico não corresponde mais a um trabalho renovado da inteligência sobre o mundo. Qualquer que seja sua acolhida popular, o automóvel participa de um mito já exaurido -o da Mecânica. Ora, o que o Salão do Escritório indica é a transformação desse mito. Por muito tempo, a máquina foi, miticamente, uma coleção de engrenagens, isto é, de substituições; seu percurso era, simbolicamente, o de uma causalidade intricada, mas afinal de contas linear: um líquido entra por aqui, o movimento sai por lá; de roda em roda, de alavanca em alavanca, circulava um influxo obstinado, como que consciente de sua meta; e é esse o trajeto que despertava o espanto, isto é, o mito. Hoje em dia, o acento mítico não recai mais sobre um trajeto, mas sobre uma distribuição: paradoxalmente, a imaginação cibernética dá novo alento à noção de cérebro humano, propondo na máquina o espetáculo de uma organização, de uma inteligência, de uma qualidade. Poder-se-ia dizer que é chegado o momento (falo apenas de dados míticos, não de dados sociais) em que a máquina não mecaniza mais o homem: é o homem que humaniza a máquina, impondo-lhe a estrutura do seu próprio cérebro (1).
A própria promoção do Salão do Escritório, seu prestígio crescente a cada ano, é bom testemunho de que nosso século não é mais o da mecânica. É verdade que, nesse salão, as máquinas abundam, sem entretanto criarem espécie: elas não são mais o objeto da linguagem (do espanto), elas são a própria linguagem, ou por outra: elas são insignificantes em si mesmas, inteiramente dissolvidas em seu uso. O equipamento é aqui uma noção meramente comercial; o mito, o espetáculo, está na organização. Vendem-se artigos, mas o que se contempla é uma matéria complexa, feita de objetos, de gestos e de tempos, matéria trabalhada e distribuída segundo uma Razão: esse não é um salão de técnicas, mas de estruturas, e é por isso que esse salão, bem mais que o do automóvel, é um salão de vanguarda: sua verdadeira vida não se dá no nível da máquina nova e miraculosa que causa sensação (a era do ``gadget'' vai chegando ao fim), ela está no esforço elegante (no sentido matemático do termo) que faz a inteligência humana para reinaugurar o real segundo a ordem dos homens e não segundo a ordem das coisas.
Em sua idade heróica, a máquina era o espetáculo de um efeito miraculosamente distante de sua causa; aqui, ao contrário, não se trata mais de um produto, mas de todo um conjunto topológico de gestos e de informações -cuja memória é representada pelo próprio salão em seu traçado material, da seção de máquinas de ditar à seção de arquivos. Pois o problema que se coloca aqui é exatamente aquele cuja solução exige a submissão da natureza: como, de um lado, chegar a um censo completo, mas vasto, do que jamais se poderia esperar, de todo o saber de uma empresa e como, de outro, extrair dessa reserva o elemento de que se necessita? Como construir essa pirâmide filosofal cuja base é o saber e cujo topo é o ato? Inserir para depois recuperar, desfazer em nome do singular o conjunto que acabou de se constituir, eis aí um movimento novo que, propriamente falando, não é mais de transformação, mas de disposição; ao mito das transmutações substanciais vem se substituir uma nova imaginação: a idéia de que a simples classificação do universo é o ato material pelo qual o homem se apropria do universo. Contra -ou ao menos após- a imagem romântica de uma matéria única passível de variações sem jamais perder seus liames, agora é o descontínuo que constitui a imagem motriz da pesquisa humana: distinguir, comparar, citar, rejeitar -agora são essas as operações universais, não mais destinadas, como durante séculos, a tranquilizar o espírito, a nutri-lo de álibis reconfortantes, mas a modificar tecnicamente o real. Enquanto a sociedade, suspeitando de qualquer atividade de análise, ainda é presa de toda uma mitologia antiintelectualista, é precisamente o ato intelectual por excelência -o ``distinguo''- que marca toda a pesquisa recente, das máquinas cibernéticas ao planejamento dos tecnocratas, valor doravante comum a todos os regimes, a todos os labores: descendo de seu antigo céu teológico, a Escolástica, aplicada ao real, torna-se outra vez progressista.

NOTA:
1. É por isso que qualquer contestação da máquina em nome de um humanismo parece-me um contra-senso completo diante da evolução da nossa sociedade.


Traduções de Samuel Titan Jr..

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