São Paulo, domingo, 05 de janeiro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Integração crítica

Alain Touraine

Aliança entre transformação social e instituições democráticas, reforçadas na era FHC, é fato inédito no continente

A vitória eleitoral de Lula foi tão triunfal que deve ter causas profundas na sociedade brasileira. Mas essas causas estão longe de ser evidentes se adotarmos um ponto de vista histórico. O Brasil nunca teve um desenvolvimento liberal, e o fracasso das tentativas feitas nos anos 20 o conduziu à longa ditadura de Getúlio Vargas. A lentidão do retorno à democracia, depois do esgotamento do regime militar imposto ao país a partir de 1964, indicou igualmente a fraqueza das instituições democráticas, novamente enfraquecidas pela crise durante a era Collor [1990-92].

Superação de dualismos
O Brasil só teve duas grandes figuras democráticas durante o último meio século: JK e FHC. E ambos adotaram uma política que não era diretamente apoiada pelas categorias menos favorecidas. FHC atingiu objetivos importantes, que fizeram dele um presidente social-democrata, mas não conseguiu diminuir a desigualdade social maciça que esmaga o Brasil, assim como outros países latino-americanos.
Quais são as grandes transformações que possibilitaram a proclamada aliança entre a democracia e a vontade de mudança social?
Todas elas podem ser definidas com as mesmas palavras: o Brasil passou de um dualismo que separava as categorias sociais e as regiões para uma integração cada vez maior, que não suprimiu a gravidade dos problemas sociais centrais, mas fez avançar de maneira significativa a unificação do país.
A imagem do Brasil mais difundida no mundo é a da miséria rural do Nordeste, em oposição aos arranha-céus de São Paulo e às praias chiques do Rio, de Copacabana à Barra da Tijuca. Existiam de fato dois Brasis, um dualismo presente em quase todo o continente e que ilustrei com o título de meu livro "Palavra e Sangue" [ed. Trajetória Cultural, 1989]. Mas as migrações maciças esvaziaram o campo, incharam as grandes metrópoles e criaram novas zonas urbanas.

País unificado
A miséria mais maciça não está mais no Piauí ou no Ceará, mas em São Paulo ou na Baixada Fluminense. Os prefeitos das grandes metrópoles devem administrar a riqueza e a miséria igualmente presentes em seu território. De modo mais geral, a integração nacional fez grandes progressos, mesmo que São Paulo continue sendo _de longe_ o principal centro de atividade econômica do país.
O desaparecimento do analfabetismo, o esforço para diminuir a mortalidade infantil, o aumento do nível médio de educação reforçaram a unidade de um país onde os impostos também aumentaram muito.
Mais ainda que a população, foi a economia que se unificou. O Brasil tornou-se uma grande potência pelo desenvolvimento de seu mercado interno e por sua capacidade de exportação industrial e agrícola.
Mas esse país tão profundamente transformado há muito tempo não vê crescimento, e sua capacidade de integração social diminui, sobretudo nas grandes metrópoles.
O Brasil vive segundo uma lógica nacional, enquanto a Argentina se dissolveu há muito tempo na globalização das trocas financeiras e econômicas. Mas esse país forte não consegue reduzir suas desigualdades, que são enormes. O fato novo e muito positivo é que hoje essas desigualdades encontram uma expressão política forte, enquanto haviam sido tão invisíveis politicamente quanto visíveis socialmente.

Nova força política
A carreira política já extensa de Lula correspondeu a essa formação lenta e difícil de uma nova força política. E a distância não parou de diminuir entre essa autolimitação das reivindicações sociais e o reforço das instituições políticas que FHC fez funcionar no sentido de um programa social-democrata, e não de uma nova política de direita, como lhe censuraram tantos críticos cegos para a realidade.
O encontro do tema democrático com o da transformação social é um acontecimento sem equivalente no continente (com exceção do breve e frágil período da Unidad Popular no Chile, de 1970 a 1973) e um dos mais importantes do início do século 21.
É importante para o Brasil _e o é igualmente para a Argentina_ que agora possa participar do renascimento do Mercosul, já que não existe mais contradição entre um peso forte demais e um real fraco demais.
E não é por acaso que essa transformação política ocorra no momento em que os Estados Unidos, abandonando sua visão "global" da economia e da sociedade mundiais, concentram suas forças nos preparativos de uma cruzada contra o inimigo islâmico a fim de salvar ao mesmo tempo o petróleo e Jerusalém. A América Latina, como aliás a Europa, porque não tem nenhum peso na nova estratégia americana, pode dispor de uma maior capacidade de iniciativa política que antes.
Um tratado de comércio que deverá cobrir todo o hemisfério não deve impedir cada país de adotar uma política interna adequada às suas necessidades. E não há necessidade mais urgente que fazer recuar a desigualdade social. O novo governo brasileiro, apesar de uma fase de transição perfeitamente gerida por FHC, encontrará dificuldades, especialmente a desconfiança dos investidores estrangeiros.
Mas a economia brasileira já tem maturidade suficiente para resistir a essas pressões e também para impor ao FMI uma política macroeconômica de acordo com as realidades sociais e políticas do país.
O Brasil se tornará plenamente uma forte potência moderna e democrática quando tiver efetuado a grande tentativa que faz atualmente para associar a democracia às reformas econômicas e estruturais.


Alain Touraine é sociólogo e diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris. É autor de "A Crítica da Modernidade" (ed. Vozes). Escreve regularmente na seção "Autores" do Mais!.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.




Texto Anterior: Laymert Garcia dos Santos: República dos Silvas
Próximo Texto: Nicolau Sevcenko: Itīs only MPB
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.