São Paulo, domingo, 05 de fevereiro de 2006

Texto Anterior | Índice

+ sociedade

A partir da análise do romance "Sábado", de Ian McEwan, o filósofo norte-americano Richard Rorty defende que o Ocidente abriu mão de seus ideais para "pensar pequeno"

Náusea em Londres

RICHARD RORTY

Quando não puderam mais acreditar na imortalidade da alma, muitos ocidentais trocaram o projeto de alcançar o paraíso pelo de melhorar a vida humana na Terra. A esperança na realização dos ideais do Iluminismo substituiu o anseio de ver a face de Deus. A vida social passou a girar em torno de movimentos por mudanças sociais, em vez de orações ou rituais.
A maioria dos que fizeram essa troca acreditava firmemente que o Ocidente manteria sua hegemonia por tempo suficiente para levar liberdade, igualdade e fraternidade ao resto do planeta. Mas essa hegemonia terminou. O Ocidente atingiu seu ápice; não pode alcançar maior riqueza e poder. Até mesmo os EUA só podem empregar o poderio militar correndo o risco da falência.
O século americano terminou, e começou o século chinês. Enquanto estavam no comando, os EUA fizeram mais bem que mal. Ninguém sabe o que a China fará, muito menos os chineses.
Mas o declínio econômico e militar não é o único problema do Ocidente. O medo poderá levá-lo a renunciar a seus ideais mesmo antes de perder sua influência.


Desejamos a autopu-nição por causa da culpa decorrente da capa-cidade de fazer pouco e da incapacida-de de nos imaginar fazendo mais


Imagine-se que uma bomba nuclear suja, escondida nas entranhas de um navio carregado de contêineres, explodisse na baía de San Francisco. A imprensa livre e o Judiciário independente poderiam sobreviver à lei marcial? A Alemanha continuaria sendo uma democracia constitucional se essa bomba explodisse no porto de Hamburgo? Os primeiros terroristas que utilizassem uma ogiva nuclear roubada poderiam até se vangloriar por terem destruído instituições que levaram dois séculos para ser construídas.
Ao longo desses séculos, os idealistas ocidentais oscilaram entre a exuberância e o desespero. A primeira é capturada por Alfred Tennyson [1809-1892] em "Locksley Hall" [tradução livre]:
"Não em vão a distância sinaliza. À frente, à frente avancemos.
Que o grande mundo gire para sempre pelas espirais de mudança.
Pela sombra do globo rumamos para um dia renovado:
Melhor cinqüenta anos de Europa que um ciclo de Catai."
Mas, quando as coisas vão mal, relemos "Dover Beach", de Matthew Arnold [1822-88]:
"... aqui estamos como numa planície sombria
Varrida por avisos confusos de combate e retirada
Onde exércitos ignorantes se chocam à noite."

Jardins fechados
No início de 1914 ainda era possível confiar que, com mais 50 anos de Europa, o mundo se transformaria e melhoraria muito. Mas conforme o século 20 foi acumulando suas catástrofes, um número crescente de autores nos disse que seria tolice ter esperanças. "É hora de encerramento nos jardins do Ocidente", escreveu Cyril Connolly pouco antes da Segunda Guerra, "e de agora em diante um artista será julgado somente pela profundidade de sua solidão ou pela qualidade de seu desespero".
Mas Connolly estava errado. A guerra teve um desfecho melhor do que ele poderia esperar, por qualquer motivo. Nem mesmo Auschwitz impediu as sucessivas gerações do pós-guerra de pensar que o mundo, sob a liderança do Ocidente, ainda poderia avançar para um dia renovado.
Mas o ímpeto do pós-guerra vacilou, e os atentados de 11 de setembro de 2001 nos fizeram perceber quão improvável é que o Ocidente seja capaz de determinar o futuro do mundo. As nações não-ocidentais estão se dando conta de que seus destinos estarão mais ligados a Pequim do que a Washington. Quanto tempo os europeus e os americanos ainda têm para passear pelos jardins depende de quanto tempo interessa a Catai mantê-los abertos.
A tragédia do Ocidente moderno é que ele exauriu suas forças antes de conseguir realizar seus ideais. A vida espiritual dos ocidentais secularistas se concentrou na esperança de realizar aqueles ideais. Conforme essa esperança diminui, suas vidas tornaram-se menores e mais mesquinhas. A esperança se restringe a pequenas coisas privadas -e é cada vez mais substituída pelo medo.
Essa mudança é o tema do romance "Sábado" (Companhia das Letras), de Ian McEwan. Um dos personagens -Theo, de 18 anos, filho de Henry Perowne, um neurocirurgião de meia-idade que é o protagonista do romance- diz a seu pai: "Quando pensamos nas coisas grandes -a situação política, o aquecimento global, a pobreza mundial-, tudo parece realmente terrível, nada está melhorando, não há nada a esperar. Mas, quando penso pequeno, mais perto -você sabe, numa garota que acabei de conhecer ou na canção que estou compondo com Chas ou em fazer "snowboard" no mês que vem, tudo parece ótimo. Por isso, este será meu lema: Pense pequeno".
John Banville, que no "New York Review of Books" [em 26/5/2005] considera o romance um terrível fracasso, diz que esse "também poderia ser o lema do livro de McEwan". Mas pensar pequeno não é o lema do romance; é seu tema.
McEwan não está nos convidando a pensar pequeno. Está nos lembrando de que somos cada vez mais tentados a fazê-lo. Banville erra novamente ao dizer que "a política do livro é banal". O livro não tem uma política. É sobre nossa incapacidade de ter uma -de esboçar uma agenda verossímil para mudanças em grande escala.
"Sábado" traz uma epígrafe de "Herzog", de Saul Bellow, que fala do "recente fracasso das esperanças radicais". A longa citação por McEwan de um solilóquio de Moses Herzog termina com: "As belas supermáquinas abrindo uma nova vida para a humanidade incontável. Você lhes negaria o direito de existirem? Você lhes pediria para trabalharem e continuarem famintos enquanto você mesmo desfrutaria valores antiquados? Você... Você mesmo é um filho dessa massa e um irmão de todos os demais. Ou então é um ingrato, um superficial, um idiota. É para lá, Herzog -pensou Herzog-, já que você quer um exemplo, que as coisas caminham".
O problema dos ocidentais bem-intencionados como Henry Perowne é que eles parecem destinados a passar suas vidas como idiotas (no antigo sentido de "idiota", em que o termo se refere simplesmente a uma pessoa privada, que não participa dos assuntos públicos). Eles são ingratos e superficiais -ingratos porque sua afluência é possibilitada pelo sofrimento dos pobres e superficiais porque não conseguem mais relacionar o pensamento à ação. Não conseguem imaginar como as coisas poderiam ser melhoradas.
Mas os liberais seculares do Ocidente ainda gostam de se considerar irmãos de todos os demais. Assim, quando Henry vê um homem de sua idade varrendo energicamente a sarjeta perto de sua casa, ele pensa: "Seu vigor e empenho são desconfortáveis de ver, uma acusação silenciosa na manhã de sábado".
Mas sua única resposta a essa acusação é pensar: "Como devia ser repousante, em outra era, ser próspero e acreditar que uma força sobrenatural onisciente havia destinado as pessoas a suas posições na vida. E não ver como essa crença servia a sua própria prosperidade... Agora que pensamos ver, como ficam as coisas? Depois das experiências ruinosas do século recém-morto, depois de tanto comportamento ignóbil, de tantas mortes, um agnosticismo nauseante se instalou em torno dessas questões de justiça e distribuição da riqueza. Chega de grandes idéias. O mundo deve melhorar, se puder, a passos muito pequenos. As pessoas geralmente têm uma visão existencial -ter de varrer ruas para viver parece simplesmente uma falta de sorte. Não é uma era visionária. As ruas precisam ser limpas. Que os desafortunados se apresentem".

Lixeiros e neurocirurgiões
Depois das experiências ruinosas, depois do recente fracasso das esperanças radicais, ficou difícil encontrar inspiração na visão de uma comunidade global justa e livre. Continuou sendo uma era visionária, e a possibilidade de uma vida espiritual intensa só continua existindo para os ocidentais secularizados na medida em que for possível dar passos um pouco maiores.
Mesmo que tenhamos algumas idéias de médio porte sobre como melhorar as coisas -diminuir a diferença de renda entre os neurocirurgiões grisalhos e os varredores de rua grisalhos, por exemplo-, não temos idéias plausíveis sobre como aliviar "a situação política, o aquecimento global, a pobreza mundial".
Mesmo que tivéssemos novas grandes idéias, parece improvável que houvesse tempo para implementá-las. Pois nossas cidades são vulneráveis. No início do romance, Henry olha pela janela de seu quarto e vê um avião em chamas. Ele voa ao longo do Tâmisa e poderá adernar e atingir a antiga Torre dos Correios. Se a torre cair, esmagará Henry e sua família.
Afinal, o avião não causa danos, mas mais tarde, naquele dia, Perowne pensa: "A avaliação do governo -de que um ataque a uma cidade européia ou americana é inevitável- é só uma negação de responsabilidade, uma promessa perturbadora. Todo mundo a teme mas também há um anseio mais sombrio na mente coletiva, um desejo doentio de autopunição e uma curiosidade blasfema".
Desejamos a autopunição por causa da culpa decorrente da capacidade de fazer pouco e da incapacidade de nos imaginar fazendo mais, seja pelos varredores de rua de Londres ou pelas crianças nas fabriquetas subumanas da Guatemala. Sentimos que nosso mundo não merece durar, por ser tão irremediavelmente injusto.
As reflexões de Perowne estão inseridas numa trama que gira em torno de um encontro casual -e potencialmente fatal- com um bandido chamado Baxter. Este está nos estágios iniciais de uma doença devastadora, o mal de Huntington. Perowne reconhece os sintomas. Ele evita ser agredido dizendo a Baxter, falsamente, que talvez consiga curá-lo. Mais tarde naquele dia, porém, um Baxter com fúria renovada invade a casa de Perowne acompanhado de um bandido subordinado. Os dois obrigam a filha de Perowne a se despir e encostam uma faca na garganta de sua mulher. A família talentosa, decente e generosa de Perowne está sob perigo mortal.
Então, manifestando a peculiar instabilidade de humor que é um dos sintomas de sua doença, Baxter apanha numa mesa o livro de poemas recém-publicado da filha nua e a obriga a recitar um deles. O avô dela, que é um poeta conhecido, intervém e lhe diz, em linguagem cifrada, para recitar "Dover Beach". A garota o faz e, milagrosamente, funciona. O humor de Baxter torna a mudar: ele é invadido pela límpida beleza dos versos de Arnold. Agora ele pode novamente ser enganado para acreditar que Henry o ajudará a encontrar a cura.
O fracasso de Baxter em seguir estuprando e matando enfurece seu comparsa, armado com a faca, e este vai embora contrariado. Isso possibilita que o jovem Theo ataque Baxter, o domine e mande chamar a polícia. A paz e a ordem retornam à casa dos Perowne, cujas janelas dão para "o quadrado perfeito da praça projetada por Robert Adam contendo um jardim em círculo perfeito -um sonho do século 18 banhado e abraçado pela modernidade, pela iluminação de rua vinda do alto, os cabos de fibra ótica por baixo, a água fresca e limpa correndo pelos canos e o esgoto carregado para longe num instante de esquecimento".
Afinal o avião a jato foi inofensivo, e Baxter, vulnerável. Mas é improvável que tamanha sorte dure. Haverá outros aviões e outros bandidos. O mundo fora do Ocidente está cheio de ambos. Alguns bandidos não-ocidentais poderão ser ludibriados pela beleza de um sonho do século 18, mas não todos, evidentemente. O humor de alguns poderá mudar, mas outros manterão o rumo.

Fim da esperança
Assim, durante a vida de Theo, a água fresca poderá deixar de correr sob Londres. "O futuro", Perowne medita, "nos verá como deuses, certamente nesta cidade, deuses felizardos, abençoados pelas cornucópias dos supermercados, torrentes de informação acessível, roupas quentes que não pesam nada, vidas longas, máquinas maravilhosas." Mas não só a afluência desaparecerá; a esperança também.
Em certo ponto do romance Perowne tenta superar o que ele considera "a fonte de sua vaga sensação de vergonha ou embaraço -sua disposição a ser convencido de que o mundo mudou inapelavelmente, que ruas inofensivas como esta e a vida tolerante que elas representam podem ser destruídas pelo novo inimigo". Ele tenta se convencer de que "o mundo não mudou fundamentalmente. Falar em uma crise de cem anos é uma indulgência.
Sempre houve crises, e o terrorismo islâmico se acomodará, juntamente com as guerras recentes, as mudanças climáticas, as políticas do comércio internacional, a escassez de terra e de água potável, a fome, a pobreza e o resto".
Talvez isso aconteça ou talvez o 11 de Setembro prove ser o arauto de acontecimentos muito mais terríveis. Talvez os jardins continuem abertos por um bom tempo ou talvez eles fechem muito mais cedo do que prevíamos. McEwan não tem mais certeza sobre essas questões do que qualquer um de nós. Mas seu romance ajuda a nos atualizarmos sobre nós mesmos. Ele ressalta nossas preocupações sobre o futuro e nosso agnosticismo nauseante, debilitante, sobre questões de justiça e distribuição de riqueza.

Richard Rorty é professor de literatura comparada na Universidade Stanford e autor de "Para Realizar a América" (ed. DP&A). Este texto foi publicado na "Dissent".
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.


Texto Anterior: Lançamentos
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.