São Paulo, domingo, 05 de março de 2006

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A OBRA-PRIMA FANTASMA

Tazio Secchiaroli
Cenas das filmagens de "A Viagem de Giuseppe Mastorna"


PARCEIROS EM SUCESSOS COMO "A DOCE VIDA" E "OITO E MEIO", FELLINI E MASTROIANNI JÁ SE ESTRANHAVAM NAS FILMAGENS DE "A VIAGEM DE GIUSEPPE MASTORNA", QUE SE TORNARIA UMA OBSESSÃO PARA O CINEASTA

NATALIA ASPESI

As 48 fotografias de Tazio Secchiaroli, exibidas em Roma, documentam melancolicamente que o filme em fase de filmagem estava destinado a não nascer nunca. Mais ainda: naquela altura, ele já estava morto e enterrado, e Fellini, em 1969, estava apenas desencavando seus restos para o documentário "Block Notes di un Regista" [Anotações de um Diretor], encomendado por uma TV norte-americana.
Percebe-se nele um ar de cansaço, de encenação, e é óbvio que ninguém mais ali acreditava no projeto: Mastroianni se olha no espelho, sonolento, e se irrita quando lhe metem na cabeça o habitual chapéu felliniano; perdido na fumaça do cigarro, como para disfarçar-se, quase não olha o mestre, que por sua vez parece inquieto, concentrado nos gestos típicos de diretor, que observa através da câmera apertando um olho, enquanto o ator ajusta o paletó. Apenas o violoncelo, com toda sua corpulência, tem um aspecto concreto, apesar de deslocado e melancólico: um objeto que sabe que nunca será protagonista de nada.
A aventura inútil de "A Viagem de Giuseppe Mastorna" tinha começado em 1966, quando Marcello Mastroianni estava com 42 anos e Federico Fellini com 46 -ambos venerados, estrelas de um cinema italiano que havia conquistado o mundo. Juntos, diretor e ator haviam criado "A Doce Vida" [1960] e "Oito e Meio" [1963], obras-primas que já faziam parte da história do cinema.

Sonhos, litígios e doenças
Agora, para aqueles testes sem objetivo, eles se reencontravam e se estranhavam, incapazes de se entenderem, e tentavam representar, juntos, um filme inexistente, que Fellini já havia descartado depois de episódios de fúria, sonhos infaustos, litígios e seqüestros judiciais, doenças misteriosas.
Um filme que jamais foi rodado, como se o cineasta temesse sua realização e o percebesse como uma profecia maléfica, uma nêmesis aterradora, um espantalho a ser mantido à distância. Um filme que nunca morreu, que se tornou uma lenda, sobre o qual o próprio diretor dava a cada vez, e a quem lhe perguntasse, uma versão diferente, imaginando-o para sempre como uma meta suspensa no futuro, que cedo ou tarde seria alcançada, a "obra-prima fantasma" que teria imortalizado sua arte.
Há um caráter amável e esquivo, conciliador e irredutível, do grande autor em seu longo adiamento, inclusive nessa sessão de fotos que ele sabia inúteis, um pretexto para libertar-se da armadilha criativa em que se deixara cair sem se dar conta.
A vida breve e o coma infinito de Giuseppe Mastorna são muito bem relatados por Tullio Kezich no livro "Fellini, uma Biografia" [lançado no Brasil pela ed. L&PM]. A idéia surgiu muito antes, em 1938, quando Fellini ainda morava em Rimini e tinha seus 18 anos; foi então que ele leu no semanário "Omnibus" um conto de Dino Buzzati em que um garoto de 12 anos morre e se vê diante de uma odisséia no mundo do além, para depois voltar à terra, após ter compreendido o segredo da vida.
Essa história ficou na sombra de seus pensamentos durante quase 30 anos, como um refúgio à realidade do trabalho e do sucesso crescente.
Depois algo se rompe, e ele filma "Julieta dos Espíritos" [1965], seu primeiro longa-metragem em cores, experiência que o deixa insatisfeito, notando a decepção do público. Foi na primavera de 1965, ao passar por Milão, que lhe veio a vontade de conhecer Buzzati, autor daquele conto inesquecível: faz a proposta de escreverem juntos o roteiro, e juntos freqüentaram magos videntes, conversaram por mais de um ano, tudo inutilmente.
O violoncelista Giuseppe Mastorna continua sendo uma figura nebulosa, plantada numa praça desconhecida, silenciosa e sombria, diante de uma catedral gótica.
À medida que o roteiro avança na história como se entrasse num sonho, o produtor Dino de Laurentiis, que pouco antes havia fundado a "Dinocittà", vai investindo milhões no filme, todo entusiasmado com sua primeira parceria com Fellini, sem se preocupar com que o diretor lhe prometesse vagamente uma história que será "uma experiência inefável, mística, o sentimento do todo". Escolhem-se figurantes, preparam-se locações, desenham-se cenários e figurinos, busca-se um ator principal que alivie o crescente mau humor do cineasta.
Fellini já está cansado de Mastroianni, e, além disso, o ator estava comprometido com uma peça; Giorgio Strehler gostaria de fazer o papel; Laurence Olivier não se interessa; Steve McQueen impõe condições; quem sabe Paul Newman?
Isso leva mais de um ano, e nesse meio-tempo morre Ernst Bernhard, o analista de Fellini, o que o deixa desconsolado. Então ele escreve: "Caro Dino, estou me sentindo exausto e sem ânimo; nessas condições, não posso realizar o filme".
Fora de si, o napolitano De Laurentiis processa o diretor, declarando um prejuízo enorme, sem contar que, com esse "comportamento irresponsável", 70 pessoas ficaram sem trabalho.
Na casa de Federico em Fregene, agentes apreendem quadros e objetos, enquanto o cineasta se entrincheira em casa, recusando-se a dar declarações. Poucos meses depois, os dois se reconciliam em um passeio pela Villa Borghese [em Roma], acompanhados pelos respectivos advogados. "Mastorna" será feito, e finalmente é firmado um contrato com Ugo Tognazzi [1922-90], eufórico, enquanto Fellini o considera muito terreno, ou seja, pouco neurótico para o seu "Mastorna".

Maldição
Em abril de 1967, o filme já se tornou um pesadelo: certa noite, sozinho em casa, Fellini passa muito mal e desmaia. Por sorte é socorrido a tempo: a maldição de Mastorna abateu-se sobre ele sob o misterioso diagnóstico de síndrome de Sanarelli-Schwarzmann. De Laurentiis consegue vender por quase metade de seu prejuízo o material filmado de "Mastorna" a um advogado napolitano, Alberto Grimaldi, que já havia produzido dois faroestes com Sergio Leone. Também ele será desiludido por Fellini, que se recusa a fazer o filme, recomprando-o depois, em prestações, em 1971.
Mas a vida inexistente do pobre violoncelista sem rosto ainda não terminou: em 1992, o cineasta o cede a Milo Manara, para que o transforme em HQ.
Por que Fellini nunca realizou esse filme? Muito se disse sobre o assunto, e ele mesmo falou de sonhos premonitórios que o teriam feito abandonar o projeto. Talvez, mas ninguém jamais levantou a hipótese de que o grande diretor tivesse simplesmente intuído que o filme nunca chegaria a ser a obra-prima digna de suas ambições e de sua fama.
Numa das tantas entrevistas que generosamente concedia a jornalistas que o adoravam, Fellini disse: "Como a carcaça de um navio afundado, "Mastorna" alimentou todos os meus filmes seguintes".

A íntegra deste texto foi publicada no jornal "La Repubblica".
Traduções de Maurício Santana Dias.


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