São Paulo, domingo, 05 de março de 2006

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TROCANDO OS PAPÉIS

ANÔNIMAS OU NÃO, PRODUÇÕES SATIRIZAM "O SEGREDO DE BROKEBACK MOUNTAIN" A PARTIR DE FILMES COMO "TITANIC" E "CLUBE DA LUTA"

VIRGINIA HEFFERNAN

Os caubóis gays, ao que tudo indica, têm tudo para se tornarem uma piada que não pára de render outras. As colunas de humor sobre "O Segredo de Brokeback Mountain" começando com "quem quer ver isso?" vêm diminuindo, mas as paródias on-line do filme sobre a dupla de caubóis gays continuam a proliferar tão rapidamente que os sites de museus de vídeos, incluindo youtube.com, gorillamask.net e dailysixer.com (este último, aliás, tem uma seção intitulada "Paródias de "Brokeback'"), não conseguem acompanhar todas as novas sátiras acrescentadas.
Algumas são estúpidas. Outras são espirituosas e muito boas. Mas, como comentários sobre as formas e cerimônias de relacionamentos proto-homossexuais, elas são surpreendentemente argutas. Valem a pena serem levadas a sério.
Todas essas paródias têm o mesmo formato: são trailers de filmes imaginários que reúnem elementos de "Brokeback Mountain" com outros filmes. É claro que os filmes montados não existem na realidade -só existem os trailers. Eles são feitos de maneira anônima, por trupes de humor ou por firmas de criação.
Geralmente as paródias utilizam o tema sexy e melancólico de "Brokeback Mountain", juntamente com os letreiros e as chamadas do trailer do filme, para reenquadrar clipes tirados de outros filmes. A coisa funciona assim: quando cenas entre dois protagonistas homens ou entre um protagonista e um ator coadjuvante são passadas em câmera mais lenta, ao som de música romântica e acompanhadas de letreiros com dizeres carregados do tipo "uma verdade que eles não tinham como negar", a impressão que se tem é que um filme gay surge na tela.
A edição das imagens e o recurso à câmera lenta de fato sugerem que cenas em close, especialmente quando vistas por instantes prolongados, são intrinsecamente eróticas. Tudo aquilo de essas paródias precisam para sugerir o relacionamento homossexual é mostrar o rosto de um dos homens em detalhe, por tempo arrastado, e depois fazer um corte para o outro homem, que parece observar o primeiro com a mesma atenção hipnotizada que o espectador foi obrigado, pela câmera-lenta, a lhe dar. De repente, o subtexto gay parece ser claro e inegável.

Diálogos originais
O que é mais hábil nessas paródias, porém, é a utilização que fazem dos diálogos dos filmes que misturam com "Brokeback Mountain". Muito pouco dos diálogos de "Brokeback" são reapresentados em outros contextos nessas montagens. A maioria deles se esforça ao máximo para arrancar uma trama gay daquilo que já existe nos filmes mais antigos.
O que não faltam nos filmes usados nas montagens -"Fogo Contra Fogo", "Amigos, Sempre Amigos", "Titanic", "Clube da Luta"- são diálogos evocativos que se prestam ao objetivo dos parodistas. Quase toda cena em que um homem mais experiente tenta encorajar outro mais ingênuo a ir atrás de seus sonhos, por exemplo, parece prestar-se a ser interpretado como diálogo gay. "Pare de tentar controlar tudo e se solte, cara, deixe rolar!", diz Tyler Durden (Brad Pitt) ao personagem de Edward Norton em "Clube da Luta". Na paródia de "Brokeback", a fala dá a impressão de fazer parte de uma cena de sedução impositiva.
Em "The Empire Breaks Back" [paródia de "O Império Contra-Ataca"], Anakin Skywalker fala: "Algo está acontecendo. Eu quero mais, mas sei que não deveria". Em outro momento, Palpatine o aconselha: "Com o tempo você vai aprender a confiar em seus sentimentos". Quando as falas são justapostas na paródia, elas funcionam convincentemente como cenas de amor.
Outros problemas típicos de heróis hollywoodianos, quando inseridas em novos contextos, soam como expressão sincera e direta dos sentimentos de homens gays. Em "Caçadores de Emoção", o personagem de Keanu Reeves, Johnny Utah, se lamenta: "Não consigo descrever o que estou sentindo". Quando essa fala é dita em "Point Brokeback", a paródia, ela parece exprimir sua incapacidade de encarar seus próprios desejos homossexuais. Para aumentar o "frisson" ou, quem sabe, a autenticidade, algumas das paródias utilizam cenas com atores como Reeves e Tom Hanks, que já representaram personagens gays em outros filmes.
Um problema do herói tradicional dos filmes de ficção científica, especialmente o viajante no tempo, é que ele não consegue descrever seus relacionamentos com outras pessoas.
É o caso de Marty McFly, o personagem de Michael J. Fox em "De Volta para o Futuro". Na cena usada pelos parodistas, Marty apresenta o dr. Brown (Christopher Lloyd) dizendo "este é meu -ahn- doc (médico). Meu tio! Doc!". No novo contexto, soa como a apresentação confusa e gaguejada que um rapaz mais jovem, que ainda não saiu do armário, poderia fazer de seu namorado mais velho, tentando fazê-lo passar por seu chefe, sócio ou tio.
Quase 60 anos atrás, o crítico Leslie Fiedler argumentou que os grandes romances americanos do século 19 dramatizam uma história de amor entre homens, tipicamente um branco e um não-branco: Ishmael e Queequeg ("Moby Dick"), Natty Bumpo e Chingachgook ("O Último dos Moicanos" e outros livros de James Fenimore Cooper), Huck e Jim ("Huckleberry Finn").
Fiedler ergueu sua carreira acadêmica brilhante sobre a base dessa tese espantosa, que levou adiante em "Love and Death in the American Novel" [Amor e Morte no Romance Americano], em 1960.
Agora sua tese parece aplicar-se também aos filmes de Hollywood, mas, desta vez, as leituras esmiuçadas que refinaram e ampliaram seu argumento foram feitas não por pós-graduandos, mas por pessoas que brincam on-line, usando pouco mais do que um laptop, uma conexão de banda larga e o software Final Cut Pro.
Mas a minha favorita entre as paródias não exigiu muita tecnologia ou edição, apenas um bom senso das cenas de intensidade emocional entre homens que podem dar lugar a duplos sentidos. É a montagem de "Brokeback" com "Fogo Contra Fogo", o filme subestimado de Michael Mann estrelado por Al Pacino e Robert De Niro. "Fogo Contra Fogo" mostrou uma espécie de tango psicológico no qual os megaatores representam respectivamente um investigador de polícia, Vincent, e um bandido, Neil.
A idéia é que estão falando sobre a vida de tiras e ladrões, mas em "Brokeback Heat", que simplesmente repassa uma cena inteira entre eles, sem truques, a impressão que se tem é que eles estão de fato falando sobre seu amor, sobre o amor gay de modo geral e sobre sua pouca vontade de viver como heteros.
"Quer dizer que, se você me vir virando aquela esquina, você vai simplesmente abandonar essa mulher?", pergunta Vincent. "Sem nem sequer se despedir dela?"
"É essa a disciplina", responde Neil.
"Isso é omissão, você sabe", diz Vincent.
"É o que é", Neil responde. "Ou é isso, ou seria melhor a gente ir fazer outra coisa, meu amigo."
"Não sei fazer outra coisa", fala Vincent.
"Eu também não", diz Neil.
"Nem quero muito fazer outra coisa", diz Vincent.
"Também não quero", diz Neil.
Visto pelo ângulo da interpretação tradicional ou da paródica, isso é simplesmente Pacino e De Niro representando uma cena marcada por emoções fortes contidas. E o que eles querem dizer com isso não é da conta de mais ninguém -só deles.


A íntegra deste texto foi publicada no "New York Times".
Tradução de Clara Allain.



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