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Em "Origem", o escritor austríaco Thomas Bernhard expõe uma visão
radical da miséria humana em uma das grandes narrativas do pós-guerra
Uma biografia da dor
MARCUS MAZZARI
ESPECIAL PARA A FOLHA
O
homem que não é esfolado não se educa": essa frase do grego Menandro,
que Goethe deu como epígrafe a sua autobiografia, encontra
nas narrativas enfeixadas em "Origem" ilustração das mais expressivas. Internato nacional-socialista e
depois católico; uma mercearia no
bairro mais pobre de Salzburgo;
"pavilhão da morte" em hospitais e
clínicas ao longo de quatro anos: eis
os espaços que catalisam as experiências do jovem Thomas Bernhard, que nasce em 1931 num convento holandês para "moças perdidas" e logo é entregue a uma mulher
que cuidava de bebês num barco de
pesca em Roterdã.
Intitulado "A Causa", o primeiro
livro publicado (e não "Uma Criança", que, por enfocar a infância mais
remota, abre a edição brasileira)
narra, em tom crasso e agudo, experiências num internato de Salzburgo
entre 1944 e 47. Embora autobiográfica, a narrativa apresenta várias afinidades com as chamadas "histórias
de alunos", gênero representado em
nossa literatura por "Doidinho", de
José Lins do Rego, e "Ateneu", de
Raul Pompéia. Em Bernhard, contudo, os pontos cardeais dessa temática configuram-se com insuperável
drasticidade, começando pela insônia de semanas a fio com que o recém-ingresso reage ao internato dominado pela figura sádica do diretor
Grünkranz, que não perde uma
oportunidade para expor o seu desprezo por todo "material humano
fraco ou enfraquecido".
A idéia do suicídio impõe-se de
imediato ao menino e, ensaiado inúmeras vezes, converte-se no "leitmotiv" da narrativa. O terror educacional não desaparece com a derrocada do nazismo: o internato vira católico, troca-se o diretor, a suástica é
substituída pela cruz e os internos
matraqueiam agora, em lugar de
"heil Hitler", "louvado seja Deus",
mas a estrutura opressiva se mantém inalterada em sua essência "católico-nacional-socialista", esmagando entre "decalques de Hitler e
Jesus Cristo".
O jovem liberta-se de tal "aparato
de ensino" com a decisão de assumir
um emprego na periferia da cidade,
o que introduz o "leitmotiv" da "direção oposta", que se desdobra no livro subseqüente, "O Porão".
O trabalho de ajudante de mercearia proporciona-lhe contato com a
população mais miserável e estigmatizada de Salzburgo e, pela primeira vez, a vivência de um verdadeiro processo de aprendizagem.
É o único período de vida não dominado pelo desespero, comparável
apenas aos passeios ao lado da pessoa que mais amou no mundo: o avô
anarquista e amante de Montaigne
(na verdade, o escritor de pouco sucesso Johannes Freumbichler). Um
resfriado contraído durante um descarregamento de batatas sob frio intenso evolui para a grave pleurisia
que o condena, pelos quatro anos seguintes, ao inferno de hospitais e clínicas em que as pessoas eram depositadas para morrer.
O jovem desenganado, sobrevivendo porém a cirurgias tão desnecessárias quão grosseiras, passa a
travar luta cotidiana contra a perversidade de um meio que estigmatiza
os que insistem em resistir.
A decisão pela "respiração" (título
de um dos volumes) pressupõe a
mais rigorosa autodisciplina, baseada nos ensinamentos do avô, na relação com música e literatura (avultam aqui "Os Demônios" de Dostoiévski) e, em etapa posterior, na
elaboração literária de suas experiências -justamente o processo
que dá origem ao ciclo autobiográfico que chega às mãos do leitor na excelente tradução de Sergio Tellaroli.
É verdade que algumas particularidades desse estilo marcadamente
hipotático se perdem em qualquer
tradução, sobretudo a tendência a
explorar os prefixos verbais da língua alemã (já na abertura de "A Causa" o verbo "stören", estorvar, modula-se como "verstören", atordoar,
e "zerstören", destruir).
Contudo, mesmo em tais passagens, não escapam ao tradutor o
sentido essencial assim como a musicalidade da prosa de Bernhard.
Nesse ponto valeria observar que
"Uma Indicação", o primeiro subtítulo do ciclo, explicita um traço fundamental do estilo bernhardiano,
pois ao procedimento da indicação,
da alusão, remonta uma discrepância característica dos cinco livros.
É que a alusão se dá com freqüência na esfera dos fatos vividos, em
oposição crassa aos extensos comentários posteriores do autobiógrafo, os virulentos ataques contra
escolas, hospitais, contra Salzburgo
e toda a Áustria.
Estilo hiperbólico
Do emprego seletivo da escrita alusiva advém em grande parte a força
desse estilo hiperbólico, calcado numa retórica da intensidade e da repetição. Tal discrepância torna-se
nítida à luz das passagens que tematizam o trabalho da memória na escrita autobiográfica, como a diferença entre o "sentir de outrora" e o
"pensar de hoje" ou a impossibilidade de transmitir a "verdade": "A verdade, só a conhece quem foi afetado
por ela, penso eu; e, se desejar comunicá-la aos outros, será de pronto
transformado num mentiroso. [...]
O que está sendo descrito aqui é a
verdade, e no entanto não é verdade,
porque não pode ser a verdade. [...]
Em última instância, o que conta é
apenas o conteúdo de verdade da
mentira".
A intensidade e a pungência que
impregnam esses relatos, a exposição radical da miséria humana mas
também a leveza e a musicalidade da
forma colocam a autobiografia de
Bernhard entre os momentos altos
da literatura do pós-guerra. É antes
de tudo uma "biografia da dor",
uma aprendizagem pelas puas esfoladoras de um meio que surge como
o imenso "ouriço invertido" de que
fala a poderosa metáfora do romance de Pompéia.
Num expressivo momento de "O
Frio", que narra suas vivências no
sanatório para moribundos de Grafenhof, o jovem Bernhard, confrontado com a recente morte do avô e
com o câncer terminal da mãe (todos vítimas de prepotência médica),
concebe o mundo como prisão insofismável, a vida como cumprimento
de uma pena. Mas em meio ao desespero avultam palavras em seu íntimo que, como a música e a literatura, reforçam-lhe a decisão de resistir:
"Compartilhe dessa pena com os demais prisioneiros, mas nunca se alie
aos carcereiros".
Marcus Mazzari é professor de teoria literária na USP, autor de "Romance de Formação em Perspectiva Histórica" (ed. Ateliê).
Origem
504 págs., R$ 61
de Thomas Bernhard. Tradução de Sergio
Tellaroli. Companhia das Letras (r. Bandeira
Paulista, 702, conjunto 32, CEP 04532-002,
SP, tel. 0/xx/ 11/3707-3500).
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