São Paulo, domingo, 05 de março de 2006

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Em "Origem", o escritor austríaco Thomas Bernhard expõe uma visão radical da miséria humana em uma das grandes narrativas do pós-guerra

Uma biografia da dor

MARCUS MAZZARI
ESPECIAL PARA A FOLHA

O homem que não é esfolado não se educa": essa frase do grego Menandro, que Goethe deu como epígrafe a sua autobiografia, encontra nas narrativas enfeixadas em "Origem" ilustração das mais expressivas. Internato nacional-socialista e depois católico; uma mercearia no bairro mais pobre de Salzburgo; "pavilhão da morte" em hospitais e clínicas ao longo de quatro anos: eis os espaços que catalisam as experiências do jovem Thomas Bernhard, que nasce em 1931 num convento holandês para "moças perdidas" e logo é entregue a uma mulher que cuidava de bebês num barco de pesca em Roterdã.
Intitulado "A Causa", o primeiro livro publicado (e não "Uma Criança", que, por enfocar a infância mais remota, abre a edição brasileira) narra, em tom crasso e agudo, experiências num internato de Salzburgo entre 1944 e 47. Embora autobiográfica, a narrativa apresenta várias afinidades com as chamadas "histórias de alunos", gênero representado em nossa literatura por "Doidinho", de José Lins do Rego, e "Ateneu", de Raul Pompéia. Em Bernhard, contudo, os pontos cardeais dessa temática configuram-se com insuperável drasticidade, começando pela insônia de semanas a fio com que o recém-ingresso reage ao internato dominado pela figura sádica do diretor Grünkranz, que não perde uma oportunidade para expor o seu desprezo por todo "material humano fraco ou enfraquecido".
A idéia do suicídio impõe-se de imediato ao menino e, ensaiado inúmeras vezes, converte-se no "leitmotiv" da narrativa. O terror educacional não desaparece com a derrocada do nazismo: o internato vira católico, troca-se o diretor, a suástica é substituída pela cruz e os internos matraqueiam agora, em lugar de "heil Hitler", "louvado seja Deus", mas a estrutura opressiva se mantém inalterada em sua essência "católico-nacional-socialista", esmagando entre "decalques de Hitler e Jesus Cristo".
O jovem liberta-se de tal "aparato de ensino" com a decisão de assumir um emprego na periferia da cidade, o que introduz o "leitmotiv" da "direção oposta", que se desdobra no livro subseqüente, "O Porão".
O trabalho de ajudante de mercearia proporciona-lhe contato com a população mais miserável e estigmatizada de Salzburgo e, pela primeira vez, a vivência de um verdadeiro processo de aprendizagem.
É o único período de vida não dominado pelo desespero, comparável apenas aos passeios ao lado da pessoa que mais amou no mundo: o avô anarquista e amante de Montaigne (na verdade, o escritor de pouco sucesso Johannes Freumbichler). Um resfriado contraído durante um descarregamento de batatas sob frio intenso evolui para a grave pleurisia que o condena, pelos quatro anos seguintes, ao inferno de hospitais e clínicas em que as pessoas eram depositadas para morrer.
O jovem desenganado, sobrevivendo porém a cirurgias tão desnecessárias quão grosseiras, passa a travar luta cotidiana contra a perversidade de um meio que estigmatiza os que insistem em resistir.
A decisão pela "respiração" (título de um dos volumes) pressupõe a mais rigorosa autodisciplina, baseada nos ensinamentos do avô, na relação com música e literatura (avultam aqui "Os Demônios" de Dostoiévski) e, em etapa posterior, na elaboração literária de suas experiências -justamente o processo que dá origem ao ciclo autobiográfico que chega às mãos do leitor na excelente tradução de Sergio Tellaroli.
É verdade que algumas particularidades desse estilo marcadamente hipotático se perdem em qualquer tradução, sobretudo a tendência a explorar os prefixos verbais da língua alemã (já na abertura de "A Causa" o verbo "stören", estorvar, modula-se como "verstören", atordoar, e "zerstören", destruir).
Contudo, mesmo em tais passagens, não escapam ao tradutor o sentido essencial assim como a musicalidade da prosa de Bernhard. Nesse ponto valeria observar que "Uma Indicação", o primeiro subtítulo do ciclo, explicita um traço fundamental do estilo bernhardiano, pois ao procedimento da indicação, da alusão, remonta uma discrepância característica dos cinco livros.
É que a alusão se dá com freqüência na esfera dos fatos vividos, em oposição crassa aos extensos comentários posteriores do autobiógrafo, os virulentos ataques contra escolas, hospitais, contra Salzburgo e toda a Áustria.

Estilo hiperbólico
Do emprego seletivo da escrita alusiva advém em grande parte a força desse estilo hiperbólico, calcado numa retórica da intensidade e da repetição. Tal discrepância torna-se nítida à luz das passagens que tematizam o trabalho da memória na escrita autobiográfica, como a diferença entre o "sentir de outrora" e o "pensar de hoje" ou a impossibilidade de transmitir a "verdade": "A verdade, só a conhece quem foi afetado por ela, penso eu; e, se desejar comunicá-la aos outros, será de pronto transformado num mentiroso. [...] O que está sendo descrito aqui é a verdade, e no entanto não é verdade, porque não pode ser a verdade. [...] Em última instância, o que conta é apenas o conteúdo de verdade da mentira".
A intensidade e a pungência que impregnam esses relatos, a exposição radical da miséria humana mas também a leveza e a musicalidade da forma colocam a autobiografia de Bernhard entre os momentos altos da literatura do pós-guerra. É antes de tudo uma "biografia da dor", uma aprendizagem pelas puas esfoladoras de um meio que surge como o imenso "ouriço invertido" de que fala a poderosa metáfora do romance de Pompéia.
Num expressivo momento de "O Frio", que narra suas vivências no sanatório para moribundos de Grafenhof, o jovem Bernhard, confrontado com a recente morte do avô e com o câncer terminal da mãe (todos vítimas de prepotência médica), concebe o mundo como prisão insofismável, a vida como cumprimento de uma pena. Mas em meio ao desespero avultam palavras em seu íntimo que, como a música e a literatura, reforçam-lhe a decisão de resistir: "Compartilhe dessa pena com os demais prisioneiros, mas nunca se alie aos carcereiros".


Marcus Mazzari é professor de teoria literária na USP, autor de "Romance de Formação em Perspectiva Histórica" (ed. Ateliê).

Origem
504 págs., R$ 61
de Thomas Bernhard. Tradução de Sergio Tellaroli. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 32, CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/ 11/3707-3500).



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