São Paulo, domingo, 05 de abril de 2009

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Afogando em letras

DE "BÔNUS" A "GANÂNCIA", DE "DETROIT" A "SUSTENTABILIDADE", CINCO EXPOENTES DO PENSAMENTO ECONÔMICO E SOCIAL CRIAM, EM 26 VERBETES, O DICIONÁRIO DA CRISE GLOBAL

Ben Stansall - 1º.abr.09/France Presse
Inglesas protestam contra a cúpula do G-20, em Londres

GUSTAVO FRANCO

>>Alan Greenspan
Metáfora viva da volubilidade dos enredos que encantam os mercados. Outrora sacerdote, maestro e reserva moral da economia globalizada, em curto espaço de tempo, de forma um tanto impiedosa e diante da dificuldade em identificar as falhas humanas relevantes, passou à condição de culpado pela gestação da crise que ora se enfrenta.

>>Bônus
Diz-se do produto da caça a que faz jus o predador na selva dos mercados. Em certos casos, são garantidas aos caçadores (pelos próprios) determinadas cotas de alimentação independentemente de seu desempenho na floresta. No caso de a caçada se mostrar insuficiente, os predadores são alimentados pelos acionistas e, mais modernamente, pelo contribuinte americano.

>>Capitalismo
Credo dominante no planeta Terra, possivelmente em outras partes, também designado como "neoliberalismo" ou mesmo "globalização". Seus simpatizantes, outrora designados burgueses, e seus detratores protagonizam esplêndidos debates, conferências e eventos festivos, sendo certo, todavia, que é impossível distinguir uns dos outros quando em posições de governo com responsabilidade por políticas públicas.

>>Detroit
Uma das maravilhas do mundo antigo, juntamente com o Colosso de Rodes, e origem das ideias originais a partir das quais japoneses e coreanos organizaram-se para a fabricação de veículos automotores. Como em outras civilizações da Antiguidade, um período prolongado de opulência pouco contestada terminou enfraquecendo os impulsos inovadores e fortalecendo maus hábitos em seus fundos de pensão.

>>Empréstimo
Em razão de sua disponibilidade em certas regiões do hemisfério Norte, tornou-se elemento químico catalisador de diversos preparos com vista a produzir o fenômeno conhecido como "alavancagem", central para a alquimia financeira moderna. Também conhecido como "crédito", fenômeno que, antigamente, dependia de algum lastro sob forma de ativos reais e de reputação, quando de valor indiscutível.


GUSTAVO FRANCO é professor de economia na PUC-RJ. Foi diretor de assuntos internacionais e presidente do Banco Central do Brasil.


MANUELA CARNEIRO DA CUNHA

>>Falibilidade
Qualidade regularmente invocada "post facto" para explicar decisões desastrosas. Afeta com especial frequência gestores de fundos e banqueiros.

>>Ganância
Doença socialmente contagiosa que consiste em querer sempre mais. Santo Agostinho a chama de avareza. É o contrapeso do desperdício e com este faz girar a roda da fortuna e alternar o bem-estar e a penúria. É pecado (do) capital.

>>Hedge fund
Literalmente, significa um fundo mútuo que se protege de risco de perdas em um mercado em baixa, usando vendas a descoberto, ou seja, vendendo o que não tem. Não entendeu? Não se preocupe, a definição acima já não vale: é um fundo especulativo de alto risco e sem regulamentação.

Inflação
Espectro brasileiro por excelência. Quando deixa de ser invocado, é sinal de que a situação da economia está mesmo preta.

Jabaculê
Variante de extenso vocabulário relativo a suborno, como agradinho, comissão, aliciamento, corrupção, peita, molhar a mão. Quer mais?
MANUELA CARNEIRO DA CUNHA é antropóloga, professora na Universidade de Chicago e ex-presidente da Associação Brasileira de Antropologia.


LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA

>>Karl Marx
Marx tinha razão: o capitalismo é tão dinâmico quanto instável. Os "30 anos gloriosos do capitalismo" (1945-75) demonstraram que era possível torná-lo mais estável, mas o neoliberalismo rejeitou esse modelo de capitalismo.

>>Leis e mercados
Coordenam o comportamento econômico. O mercado é uma excelente instituição de coordenação baseada na competição, mas com uma condição: ser bem regulado pela lei e, portanto, pelo Estado.

>>Mercados autorregulados
São produto de uma alucinação neoliberal apoiada "cientificamente" pela teoria econômica ortodoxa; seus representantes reconhecem as falhas de mercado, mas, fascinados pelo "modelo do equilíbrio geral", não compreendem que são intrínsecas ao sistema econômico.

>>Neoliberalismo
É originalmente uma ideologia dos ricos, e o liberalismo, das classes médias burguesas. Este surgiu no século 18 contra uma oligarquia e um Estado absolutos, aquele surgiu nos últimos 25 anos do século 20 contra os trabalhadores e o Estado democrático social.

>>Orwell
George Orwell, em "1984", mostrou como o Big Brother invertia o sentido das palavras. O neoliberalismo fez o mesmo: advogou retoricamente o "Estado regulador", mas promoveu na prática a desregulação dos mercados e a justificou apelando para a ortodoxia econômica.
LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA, professor emérito da Fundação Getulio Vargas, foi ministro da Fazenda, da Administração e Reforma do Estado e da Ciência e Tecnologia.


RONALDO VAINFAS

>>Paciência
Virtude de Jó celebrada na Bíblia. O conceito adquiriu importância no cenário da crise atual, pois é o que mais pedem os governantes a seus povos, a começar pelo presidente Barack Obama. Paciência com o desemprego, com o congelamento salarial, com eventual recessão, depressão ou estresse.

>>Quiproquó
Expressão pouco usual em economia, derivada do latim "quid pro quo", isto é, uma coisa pela outra. Numa tradução livre pode significar "toma lá, dá cá", designando as negociatas que deram origem à crise mundial. Além disso, dá prova definitiva da utilidade do latim para a ciência econômica contemporânea.

>>Responsabilidade fiscal
Conceito alusivo ao dever dos governantes de não gastarem mais do que arrecadam em impostos. A crise mundial se deve, em boa medida, à farra dos bônus concedidos a executivos de grandes empresas. Nesse caso, os governos aparentemente não têm responsabilidade nenhuma na crise. Sem trocadilho, claro.

>>Sustentabilidade
É a grande saída apontada por economistas e políticos para o mundo superar a crise. Pressupõe equilíbrio entre investimento econômico, distribuição de riqueza, valorização da cultura e do ambiente. Em termos bíblicos, era esse o estado em que viveram Adão e Eva antes do pecado original.

>>Tsunami
Palavra japonesa alusiva a levas de ondas gigantescas que inundam a terra, causando enorme destruição. É o contrário do vocábulo português marola. Tem sido cada vez mais utilizada para designar a crise econômica global. Definir a atual crise como tsunâmica se encaixa perfeitamente numa economia globalizada.
RONALDO VAINFAS é professor titular no departamento de história da Universidade Federal Fluminense (UFF).


LUIZ GONZAGA BELLUZZO

>>Underdeveloped (subdesenvolvido)
Expressão usada para designar as condições econômicas, sociais e políticas das regiões da periferia do capitalismo. Por suas práticas financeiras descuidadas e imprudentes, os dirigentes desses países são frequentemente admoestados por sabichões desenvolvidos.

>>Voodoo economics
Teorias dominantes na academia americana desde os anos 70. Apoiadas na Hipótese dos Mercados Eficientes, elas fundamentaram a desregulamentação financeira e levaram o planeta à maior e mais abrangente crise econômica desde 1929 (ver também "Alan Greenspan").

>>Walter Bagehot
Editor da revista "The Economist" nos anos 50 do século 19. Em seu famoso livro "Lombard Street", Bagehot recomendou que, nas crises dos mercados monetários, os bancos centrais emprestem aos bancos a taxas punitivas, mas sem restrições.

>>E(X)travagant finance
Modelos que, a pretexto de repartir o risco, promoveram as técnicas de "originar e distribuir" para livrar os balanços de empréstimos concedidos, entre outros, aos devedores Ninja ("no income, no job, no asset" -sem renda, emprego ou bens).

>>Yield (retorno)
Um princípio que, associado ao risco, orienta, em condições normais, a alocação dos porta-fólios. A dupla foi desfeita nos anos de formação da bolha imobiliária.

>>Zero
Valor de mercado residual dos bancos americanos na ausência de garantia explícita do governo.
LUIZ GONZAGA BELLUZZO é professor titular de economia na Unicamp. Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda.


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