São Paulo, domingo, 05 de junho de 2005

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Ponto de fuga

A cruz e o crescente

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Prisioneira no harém, a cristã Giselda exclama, ao constatar a barbárie dos cruzados: "Não!... Não é justa causa de Deus regar a terra de sangue humano; é insânia torpe... Não, Deus não quer -Ele desceu ao mundo falando só de paz". Cena de formidável desespero, da ópera "Os Lombardos na Primeira Cruzada", que Verdi compôs em 1843. Antes, no ano de 1825, Walter Scott publicava um romance, "O Talismã": a tradução brasileira, de 1946, pela Pongetti, está esgotada há muito. Também se inspirava no confronto entre a cruz e o crescente, apresentando um Saladino sábio e generoso.
Os românticos misturaram nobreza e atrocidade para caracterizar tanto cristãos quanto maometanos. Ridley Scott disse, numa entrevista, que não queria tomar esse caminho para seu filme, "Cruzada", preferindo retratar a curta paz que reinou em Jerusalém entre a segunda e a terceira cruzadas, graças à ponderação de Balduíno 4º, rei cristão leproso, e o sultão Saladino. Mas os dois Scott, sir Walter e sir Ridley, têm muito em comum, e as fontes românticas do filme são transparentes. Elas instauram a loucura dos homens como um mecanismo implacável, motor absurdo da história, numa pulsão dolorosa, épica, de tom justo e visionário. Mais e mais, Ridley Scott confirma a sugestão, feita por André Bazin, de que o cinema é máquina de fabricar fantasmas. Seus personagens são tomados pela morte, são mortos em vida, como esse Balduíno que apodrece sob suas máscaras de prata, como, ainda, o protagonista, Balian, que deixou a alma enterrada com sua mulher e seu filho.

Gazua
Uma cena de "Cruzada", vista do alto e de prumo, mostra os exércitos inimigos tentando engolfar-se numa brecha estreita da muralha. As massas são cegas e absurdas. Ao contrário, os personagens de Ridley Scott dizem o sentido paradoxal do mundo, que é sua própria falta de sentido.
Neles, a razão e a desrazão encontram suas palavras.

Fantasmas de carne
Política e religião são uma e mesma coisa, declarou Ridley Scott numa entrevista. Política e religião, em princípio, possuem a natureza mental de abstrações. Mas, nas guerras que elas desencadeiam, as vítimas são os homens, atingidos em seus corpos. "Cruzada" sintoniza-se com a grande pintura do século 19, instrumento do romantismo, que reconstitui a história, pondo em evidência os combates e suas vítimas.
No Museu de Versalhes existem cinco "salas das cruzadas", em que pintores, contemporâneos de Walter Scott e de Verdi, recobriram telas vastas com combates sanguinários.
A semelhança delas com as imagens do filme são claras: torres de assédio às muralhas, arbaletas e catapultas, balsões, auriflamas e estandartes; mesmo, num quadro de Pierre Révoil, o guerreiro Tancredo levanta a bandeira cristã num baluarte de Jerusalém, tal como faz o herói do filme. Se, nos anos de 1970, muitos cineastas foram buscar uma rudeza visual, primitiva, criando nova verossimilhança para o passado (a Idade Média de Pasolini, os cruzados picarescos de Monicelli e mesmo as caricaturas dos Monty Python), Ridley Scott herda dos românticos o pesadelo suntuoso de uma guerra visualmente física. Esse esplendor de outros tempos estava ausente no "Falcão Negro em Perigo" (2001), que retrata acontecimentos contemporâneos, mas nos dois casos o diretor reitera: não são políticas nem religiões que se defrontam nas batalhas; são homens que se trucidam.

Ciclo
"Falcão Negro" trazia, em epígrafe, uma frase de Platão: "Só os mortos viram o fim da guerra". O término de "Cruzada" indica o reinício de batalhas que não terminarão nunca e, desse filme aos combates terríveis mostrados em "Falcão Negro", as mesmas violências se repetem. Passado distante e atualidade premente reiteram o mesmo movimento de destruição.
Nos dois casos, o espetáculo grandioso, amplo, absoluto, alucinado, fascina, mas não anula a intuição agoniada de uma barbárie imensa, interminável, apenas interrompida aqui e ali por frágeis hiatos de ponderação que nem o tempo, e muito menos o progresso, conseguem ampliar.


Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br


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