São Paulo, domingo, 05 de julho de 2009

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Transição dolorida

Instituição vive a modernização de seu corpo de funcionários, ainda divididos entre o favor e a meritocracia

FABIANO SANTOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

A afirmação, muitas vezes repetida, de se encontrar hoje o Senado Federal em uma situação de descrédito é até certo ponto irônica. Tento me lembrar de um momento, desde que leio jornais e acompanho a política, no qual nossas instituições legislativas estivessem em situação de "crédito".
Uma reflexão mais cuidadosa me leva a crer que devemos distinguir dois planos de análise em torno de "escândalos" envolvendo o Congresso. Um deles seria o terreno propriamente político. Atores políticos, representantes e partidos, são portadores de visões de mundo e defensores de interesses conflitantes. Em torno de tais ideias e interesses também se encontram organizados os cidadãos, de uma forma geral, além de formadores de opinião, analistas de imprensa, acadêmicos e a mídia.
Trata-se de propensão natural a nós, seres humanos, falíveis que somos, imputar má-fé àqueles que se orientam por valores e aspirações em conflito com nossos ideais e nossas expectativas. Por isso, a política envolve tanta paixão.
Por isso também a democracia é uma engenharia institucional tão delicada, sendo seu desafio maior moderar o exercício do contraditório na política e, ao mesmo tempo, definir a orientação majoritária a ser dada para as decisões de governo.
Mas, para além do imaginário das paixões, o histórico recente de escândalos congressuais possui um substrato real -trata-se de fato inegável. A questão passa a ser como enquadrá-lo e como evitar o perigoso efeito de despolitização que uma sistemática onda de "escândalos" pode causar.
O substrato real de que falei é, essencialmente, o problema da modernização administrativa por que passa o Senado e pelo qual já passou, faz algum tempo e sem grande alarde, a própria Câmara dos Deputados. A assessoria do Congresso, como de resto em toda a administração pública no Brasil, é composta por duas partes distintas quanto ao modo de ingresso na carreira -os concursados e os indicados.
Hoje em dia, somente concursados podem fazer parte do corpo permanente de funcionários do Legislativo, regra adotada após a incorporação da atual elite dirigente do Senado ao quadro de funcionários e que foi recentemente alijada.
Os indicados o foram por políticos e atuam, naturalmente, segundo lógica distinta dos concursados -não se trata aqui de ajuizar sobre a integridade dos que foram indicados. Trata-se de constatar o óbvio -os concursados são funcionários socializados em uma cultura de competição e contínua especialização. São, em sua maioria, pós-graduados e ativos participantes de debates acadêmicos de alto nível.
O Senado, portanto, vive um momento de transição administrativa no qual a assessoria permanente que ascendeu aos postos de comando seguia a tradicional lógica da patronagem, em contraste com o movimento inarredável de modernização administrativa trazido pelas gerações que foram incorporadas via concurso.

Transição na Câmara
O fato é que na Câmara, faz alguns anos, houve a substituição da elite dirigente, composta basicamente de nomeados, que durante muitos anos comandou os trabalhos burocráticos na Casa, segundo critérios nem sempre compatíveis com os quesitos de um órgão público plenamente racionalizado.
A transição ocorreu, sem grande alarde, no início dos anos 2000. O parto para a modernidade ocorrerá também no Senado, mas, como temos visto, trata-se de parto dolorido.
Dolorido porque as paixões políticas dão o tom em um processo em grande medida de caráter administrativo e que pode ter como resultado algo de positivo para o Legislativo e para a democracia.
Dolorido porque o hábito de pouca transparência é real, envolvendo assessores e senadores, não apenas o presidente da Casa, mas também oposicionistas aguerridos. Portanto, nada garante que a substituição da presidência redundará em melhoras significativas de procedimentos.
Pelo contrário, em nome da ética, há uma politização excessiva de um processo que é em boa medida administrativo e conta certamente com apoio de boa parte do corpo técnico. A politização excessiva leva também a exacerbação de ânimos e sentimentos acalorados e injustos da população com pessoas dedicadas e competentes e que têm feito um excelente trabalho pelo Brasil.
A questão política deve ser resolvida em seu âmbito, no voto e segundo a vontade do eleitor. Ele, sim, deve avaliar se o senador A ou B lhe traiu a confiança, se seu discurso é apenas contundente, ou se a contundência serve apenas para encobrir comportamentos tradicionais e injustificáveis para quem bate no peito defendendo ética.


FABIANO SANTOS é professor e pesquisador do Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro), onde coordenada o Núcleo de Estudos sobre o Congresso


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