São Paulo, domingo, 5 de julho de 1998

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BERLIN
Meu percurso intelectual


Isaiah Berlin, filósofo inglês de origem russa, repassa sua formação e critica o marxismo em artigo escrito pouco antes de morrer, em 1997


HENRY HARDY
para o "The New York Review

Em fevereiro de 1996, aos 87 anos de vida, Isaiah Berlin recebia uma carta de Ouyang Kang, professor de filosofia na Universidade de Wuhan, na China, convidando-o a escrever um resumo de suas idéias para que fosse traduzido para o chinês e incluído num volume destinado a apresentar a professores e estudantes de filosofia na China a filosofia anglo-saxã contemporânea, até então não disponível de forma ampla em chinês.
Berlin não tinha escrito nada de substancial desde 1988, quando o seu credo intelectual, "Pursuit of the Ideal" (Em Busca do Ideal) -uma resposta ao fato de ter recebido o primeiro Prêmio Agnelli por sua contribuição à ética-, apareceu no "The New York Review". Apesar de seu raciocínio se manter inalterado e de continuar a escrever pequenos textos ocasionais, parecia evidente que ele tivesse, com efeito, abandonado a sua caneta de autor -uma decisão bastante razoável para alguém que já havia superado os 80 anos.
Mas o projeto chinês tomou conta de sua imaginação: ele encarava o seu novo público leitor com interesse e sentia a obrigação de entrar em contato com ele. Disse ao professor que tentaria escrever algo. Tendo à sua frente não mais que uma folha de papel com anotações, ditou para um gravador de fitas-cassete um primeiro esboço. Depois de ter aprovado a transcrição editada, fazendo algumas inclusões e ajustes finais, Berlin disse, com o costumeiro desgosto que sentia ao rever o próprio trabalho, que não queria ver o texto de novo. Este seria o seu último ensaio.

ISAIAH BERLIN

Meu interesse por questões filosóficas começou quando eu era graduando em Oxford entre fins da década de 1920 e o início dos anos 30, porque filosofia era parte do curso procurado naquela época por uma grande quantidade de estudantes. Como resultado do meu interesse contínuo por essa área, fui designado em 1932 para lecionar filosofia, e as minhas concepções naquele momento naturalmente sofreram a influência do tipo de discussão travada pelos meus contemporâneos filósofos em Oxford. Havia muitas outras questões em filosofia, mas, como sempre acontece, os tópicos nos quais meus colegas e eu nos concentrávamos eram fruto de um retorno ao empirismo que começara a dominar a filosofia britânica antes da Primeira Guerra Mundial, sob a influência sobretudo de dois célebres filósofos de Cambridge, G.E. Moore e Bertrand Russell.

Verificacionismo - O primeiro assunto sobre o qual nos debruçamos entre meados e fins dos anos 30 foi a natureza do significado -sua relação com a verdade e a falsidade-, do conhecimento e da opinião, mas sobretudo o teste do significado em termos da verificabilidade das proposições em que ele era expresso. Quem nos incentivava para esse tema eram os membros da Escola de Viena, eles mesmos discípulos de Russell e fortemente influenciados por pensadores como Carnap, Wittgenstein e Schlick.
A concepção da moda era de que o significado de uma proposição era a maneira pela qual ela se fazia verificável; se não houvesse uma maneira sequer de verificar o que estava sendo dito, então se tratava de uma afirmação passível de verdade ou falsidade, não fatual e, portanto, ou desprovida de sentido ou um caso de algum outro uso da linguagem, tal como acontece em comandos ou expressões de desejo, na literatura imaginativa ou em outras formas de expressão desprovidas de qualquer pretensão de corresponderem à verdade empírica.
Fui influenciado por essa escola no sentido de ter sido absorvido pelos problemas e teorias que ela suscitava, mas nunca me tornei um verdadeiro discípulo. Sempre acreditei que afirmações possivelmente verdadeiras ou falsas ou plausíveis ou dúbias ou interessantes, na medida em que se relacionavam de fato com o mundo empiricamente concebido (e nunca concebi o mundo de outra forma, desde aquele momento até o dia de hoje), não eram, contudo, necessariamente capazes de ser verificadas a partir de qualquer simples critério decisivo, como asseveravam a Escola de Viena e os seus seguidores do positivismo lógico.
Desde o início eu sentia que proposições gerais não eram verificáveis daquela maneira. Afirmações, seja no uso comum, seja nas ciências naturais (que correspondiam ao ideal da Escola de Viena), poderiam perfeitamente significar sem que fossem estritamente verificáveis.

Fenomenalismo - O outro tema fundamental discutido pelos meus contemporâneos era o fenomenalismo -isto é, a questão relativa a se a experiência humana estava confinada ao que lhe era provido pelos sentidos, como tinha sido ensinado pelos filósofos britânicos Berkeley e Hume (e, em alguns dos seus escritos, por Mill e Russell), ou se existia uma realidade independente da experiência sensível. Para alguns filósofos, como Locke e seus seguidores, havia uma tal realidade, apesar de não ser diretamente acessível a nós -uma realidade que causava as experiências sensíveis, que são tudo o que conseguimos saber diretamente.
Outros filósofos, por sua vez, sustentavam que o mundo externo fosse uma realidade material que podia ser percebida diretamente ou, dependendo do caso, mal-percebida. Isso recebia o nome de realismo, em oposição à concepção de que o nosso mundo tinha sido inteiramente criado pelas faculdades humanas -razão, imaginação e assim por diante-, o chamado idealismo, no qual eu nunca acreditei. Da mesma forma, nunca acreditei em quaisquer verdades metafísicas, fossem elas verdades racionalistas, tal como expostas por Descartes, Spinoza, Leibniz e, à sua maneira bem peculiar e bastante diferente, Kant, ou nas verdades do idealismo (objetivo), cujos pais são Fichte, Friedrich Schelling e Hegel, que ainda contam com discípulos.
Um dos fenômenos intelectuais que causaram maior impacto em mim foi a busca universal, por parte dos filósofos, da certeza absoluta, de respostas que não pudessem ser postas em dúvida, da segurança intelectual total. A meus olhos, desde o início, isso parecia ilusório. Independentemente de quão solidamente fundamentados, difundidos, inescapáveis e "auto-evidentes" um dado direto ou uma conclusão pareçam ser, é sempre possível conceber que algo possa modificá-los ou desordená-los, mesmo que seja impossível no momento imaginar o que seria esse "algo".
E essa suspeita de que uma grande parcela da filosofia se encontrava num caminho ilusório mais tarde passou a dominar as minhas concepções de maneira bastante nova e diferente.
Assim, enquanto estava engajado em lecionar e discutir o tipo de filosofia que esbocei acima, fui contratado para escrever uma biografia de Karl Marx. As idéias filosóficas de Marx nunca me pareceram particularmente originais ou interessantes, mas o meu estudo das suas idéias me levou a investigar as de seus predecessores, em particular os "philosophes" franceses do século 18 -os primeiros adversários organizados contra o dogmatismo, tradicionalismo, religião, superstição, ignorância, opressão. Fiquei admirado com a enorme tarefa que os pensadores da "Enciclopédia" se propuseram, e com o notável trabalho que eles empreenderam para liberar os homens da escuridão -clerical, metafísica, política e assim por diante.
E, apesar de eu chegar num determinado momento a opor alguns dos fundamentos das suas crenças comuns, nunca perdi a admiração e o senso de solidariedade para com o Iluminismo daquele período: o que me levou a criticá-lo foram -independentemente das suas falhas empíricas- algumas das suas consequências, tanto lógicas quanto sociais. Percebi que o dogmatismo de Marx e de seus seguidores derivava em parte das certezas do Iluminismo setecentista.

História das Idéias e Teoria Política
Durante a guerra servi como oficial britânico. Quando voltei a Oxford para lecionar filosofia, passei a ocupar-me de dois problemas centrais. O primeiro era o monismo -a tese central da filosofia ocidental desde Platão até os nossos dias- e o segundo, o significado e a aplicação da noção de liberdade. Devotei uma boa parcela de tempo a cada um deles, e eles moldaram o meu pensamento por um bom número de anos.

Monismo - Deslumbrados com os sucessos espetaculares que as ciências naturais tinham conquistado no século 18 e nos anteriores, homens tais como Helvécio, Holbach, D'Alembert, Condillac e propagandistas de gênio como Voltaire e Rousseau acreditavam que, uma vez que o método certo tivesse sido descoberto, verdades de tipo fundamental poderiam ser descobertas em relação à vida social, política, moral e pessoal -verdades do mesmo tipo das que tinham chegado a tantos triunfos nas investigações do mundo externo. Os enciclopedistas acreditavam no método científico como a única chave para tal conhecimento.
Rousseau e outros criam em verdades eternas descobertas por meios introspectivos. Mas, independentemente de quanto se diferenciassem entre si, esses filósofos pertenciam a uma geração que estava convencida de estar a caminho da solução de todos os problemas que tinham importunado a humanidade desde os seus primórdios.
Uma tese mais ampla subjazia a isso: a de que, para todas as questões verdadeiras, tem de haver uma -e só uma- resposta verdadeira, enquanto todas as outras respostas são falsas, já que, de outro modo, as questões não poderiam ser questões genuínas. Tem de existir um caminho que leve pensadores perspicazes às respostas corretas a essas questões, tanto nos mundos moral, social e político quanto no das ciências naturais, independentemente de o método ser ou não diferente.
Uma vez coletadas todas as respostas corretas para as mais profundas questões morais, sociais e políticas que ocupam (ou deveriam ocupar) a humanidade, o resultado representará a solução final a todos os problemas da existência.
Obviamente, é possível que nós nunca cheguemos a essas respostas: os seres humanos podem ter sido confundidos demais por suas emoções ou ser excessivamente estúpidos ou azarados para serem capazes de chegar a elas. As respostas podem ser difíceis demais, os meios podem ser deficientes e as técnicas, muito complicadas para serem descobertas. Entretanto, independentemente disso, desde que as questões sejam genuínas, as respostas têm que existir. Mesmo que nós não as conheçamos, nossos sucessores podem fazê-lo.
Uma vez que as respostas para questões sociais, morais e políticas tenham sido descobertas, então, conhecendo-as pelo que são -a verdade-, os homens não podem deixar de segui-las; já não existirá nenhuma tentação para que ajam diferentemente. E é possível conceber uma vida tão perfeita assim. Pode não ser atingível, mas em princípio essa concepção tem de ser passível de ser forjada.
Essa crença certamente não se restringe aos pensadores do Iluminismo, apesar de os métodos recomendados por outros pensadores serem diferentes. Platão acreditava que a rota indicada em direção à verdade fosse a matemática; Aristóteles, que fosse, talvez, a biologia; judeus e cristãos buscavam as respostas nos livros sagrados, nos pronunciamentos de professores com inspiração divina e nas visões místicas. Outros ainda concebiam, como Rousseau, que somente a inocente alma humana, a criança não-corrompida, o camponês simples conhecessem a verdade -melhor que os habitantes corruptos de sociedades arruinadas pela civilização.
Mas havia algo que unia todos esses pensadores. De fato, todos concordavam que as leis do desenvolvimento histórico podiam ser -e naquele momento tinham sido- descobertas. As respostas às questões sobre como viver e o que fazer -moralidade, vida social, organização política, relacionamentos pessoais- eram todas passíveis de ser organizadas à luz das verdades descobertas pelos métodos corretos, quaisquer que fossem estes.



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