São Paulo, domingo, 5 de julho de 1998

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LIVROS
Pichações de alto nível


Antologia do Retrato" reúne perfis de vultos como Rousseau e Napoleão


MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas

"O abade Du Bois era um homenzinho magro, ossudo, dissimulado, de peruca loura, cara de fuinha, ar inteligente (...). Todos os vícios travavam nele uma disputa para ver qual mantinha a supremacia. Produziam um ruído e um combate contínuo entre eles." É assim que o duque de Saint-Simon, em suas "Memórias", caracteriza um contemporâneo seu.
Textos desse tipo estão recolhidos na "Antologia do Retrato", organizada pelo pensador pessimista E.M. Cioran (1911-1995). São cerca de 40 perfis, quase todos encarregados de uma pichação em alto nível. Mme. de Genlis escreve sobre os caprichos e as violências de Rousseau; Tocqueville nota os limites de Luís Napoleão; Talleyrand acaba com Sieyès...
Há certamente um prazer em ler retratos tão agudos, tão violentos, tão clássicos no estilo.
Nem mesmo Napoleão escapa do olhar crítico de um autor como De Pradt (1759-1837): "O espírito de Napoleão era vasto, mas à maneira dos orientais. Por uma inclinação natural, voltava-se para o Oriente, por menos que o pusessem nessa direção; mas, por uma disposição contraditória, recaía como que sob seu próprio peso em minudências que se poderia dizer que são ignóbeis".
Todos esses retratistas se inspiram nas fraquezas de seus modelos. O Monsenhor de Falloux, segundo o marquês de Custine, "não é ágil, é instável, e todas as suas instabilidades não o fazem avançar (...), a cada decepção ele adquire uma nova pele (...), um gênio mau paralisa-o no meio de seus contínuos esforços, mas ele se agitará no mesmo lugar até a extinção, e é precisamente esta extinção que o impede de atingir seu objetivo. É um camaleão congelado".
O prazer que provoca este livro é, em primeiro lugar, o de familiarizar-se com uma fofoca de alto nível. Lemos o que Mme. de Genlis disse de Rousseau, o que Mme. de Stael acha de Talleyrand, ou o que Joubert diz de Chateaubriand: "Um fundo de tédio parece ter por reservatório o espaço imenso que está vago entre ele próprio e seus pensamentos".
Mas além desse prazer perverso em ver retratados os defeitos alheios, há outros níveis possíveis de leitura.
Pode-se encontrar, por exemplo, o processo de constituição do "caráter nacional" francês. Um mecanismo no qual o brilho intelectual interessa mais do que a profundidade, em que a paixão política interfere no exame dos fatos. Há toda uma crítica da "superficialidade" no espírito destes retratados: a mente de Luís Napoleão, segundo Tocqueville, era "incoerente, confusa, cheia de pensamentos mal combinados, que ele ia ora buscar nos pensamentos de Napoleão, ora nas teorias socialistas, às vezes na Inglaterra onde tinha vivido". Brienne, segundo Marmontel, tinha "uma sagacidade que se assemelhava à astúcia; clareza nas idéias e bastante amplitude, mas na superfície".
Essa crítica à superficialidade, ao brilho instável das idéias, é uma constante nesta antologia de escritos franceses e diz muito sobre o contraste entre um suposto espírito francês e a "profundida de" alemã ou a sobriedade prática dos ingleses.
Mas, para além de considerações sociológicas, talvez seja eloquente a respeito das dificuldades de cada escritor, de cada retratista, ante o objetivo de atingir o "âmago", a alma de cada retratado. O conhecimento profundo do interior de cada pessoa, ao qual se aspira, não tem por que não fracassar. E a acusação de superficialidade e de contradição íntima não seria mais do que a admissão desse fracasso, sob forma de acusação.
Seja como for, encontra-se aqui a busca de um equilíbrio no julgamento, de nuance no vocabulário, que faz deste livro uma fonte de ensinamento moral para o leitor. Nem todos os pecados são caracterizados aqui: a gula, a luxúria, a inveja, aparecem menos do que a vaidade e a vacilação.
Situação típica do século 18 francês, em que a malevolência se cerca de pompas e exigências. Mas o texto mais interessante desta antologia é a introdução do próprio Cioran.
Encontramos aqui a insatisfação pessimista, a gesticulação rumo ao absoluto que fizeram deste autor um ídolo do pensamento "dark". Cioran seleciona estes textos com uma exigência que faz empalidecer o rigor acusatório dos autores envolvidos. Por que, afinal, exigem tanta "perfeição" dos adversários, dos retratados? O próprio rigor da avaliação que fazem seria sinal de decadência... "Não será melhor viver sob um regime em que uma certa liberdade é garantida por crápulas do que sufocar sob a autoridade dos puros e fanáticos?"
Desse modo, Cioran desculpa os defeitos dos retratados; lança sobre os autores escolhidos um olhar mais absoluto, que vê nos defeitos de cada pessoa algo de desculpável diante dos defeitos universais do homem. E como que traça um retrato sombrio desses retratistas, intuindo nas exigências morais de cada texto uma visão absoluta, um ideal a respeito da espécie humana, que pelo bem desta ele quer desmistificar.
O esforço de Cioran tem algo de frívolo na violência. Corresponde, a rigor, a um ceticismo pós-queda do Muro, que se instrumentaliza num pessimismo edificante, a espojar-se prazerosamente na negação. Não por acaso, temos aqui um autor que se vira bem no mercado. Mas sua argumentação é fascinante. Os exemplos de malevolência luxuosa, de agudeza, de impaciência e de rigor que fazem parte deste livro não poderiam ser mais estimulantes. Esta "Antologia do Retrato" é imperdível.



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