São Paulo, domingo, 05 de agosto de 2007

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+ Cultura

Negócio das ARÁBIAS

O autor Michel Houellebecq e o arquiteto Rem Koolhaas discutem o turismo de massa e a "invenção" de novos destinos, como Dubai

IGNACIO VIDAL FOLCH

Rem Koolhaas, o arquiteto mais influente da atualidade, e o romancista Michel Houellebecq, célebre por suas teses provocantes e amorais sobre o turismo e o prazer, conversaram em março, em um encontro promovido em Barcelona como parte do simpósio Turismo XXL (ou seja, tamanho extragrande), sobre aquilo que falta ao que alguns vêem como o mais importante setor econômico mundial e, outros, como paradigma do excesso e do hedonismo.
A diferença entre os registros conceituais dos dois participantes freqüentemente conduziu a conversa a becos sem saída.
Apesar disso, algumas das percepções do desencantado romancista francês -autor de "Plataforma" e de "Possibilidade de uma Ilha" [ambos pela ed. Record]- e do inteligente arquiteto holandês -responsável pelo Escritório de Arquitetura Metropolitana (www.oma.nl)- se provaram inspiradoras, como as idéias de Houellebecq sobre o futuro do turismo na Espanha.

 

MICHEL HOUELLEBECQ - Ibiza [na Espanha] permanecerá, porque Ibiza é festa e sexo, e isso sempre atrairá as massas, mas o turismo mais sofisticado encontrará mais estímulos em outros cenários, como, por exemplo, a Itália e a Croácia.
Acredito que a única oportunidade que a Espanha tem de manter o turismo como um grande negócio são os aposentados, que costumam se preocupar mais com as condições de segurança. Na Espanha existe um excelente serviço de saúde.
Isso seria fundamental para o objetivo que menciono. Hospitais estupendos, bons médicos.
Falo de um turismo de estrangeiros em idade avançada, que comprariam apartamentos para morrer aqui.
Nos anos 1950, a Espanha foi a pioneira no turismo como indústria. Naquela década, nem todo mundo tinha acesso a viagens aéreas, de modo que as primeiras massas começaram a viajar ao país de carro.
Mas, como agora o transporte aéreo se tornou barato, as novas massas optam por se deslocar para territórios novos, mais distantes, com a mesma facilidade. Penso , por exemplo, na Libéria, onde o clima é mais quente...
REM KOOLHAAS - De fato, hoje é possível chegar a qualquer lugar do mundo, e isso dá início a uma nova etapa da globalização, a última, a da "democracia do hedonismo". Mas isso suscita a questão: democracia ou hedonismo?
Talvez o propósito de abraçar o mundo com generosidade esteja se tornando um dilema; temo que, em breve, deva chegar o momento no qual teremos esgotado todo hedonismo possível no mundo -e à custa de tudo aquilo que tínhamos até agora.
O que Michel acaba de dizer me parece razoável, uma proposta precisa e economicamente viável no que tange à demografia e às futuras tendências.
Por que deveríamos considerar deprimente a idéia de turismo para idosos?
Por que não pensar que, pela primeira vez na história, as pessoas dessa idade têm possibilidades de vida maravilhosas?
HOUELLEBECQ - Na prática, o fato de que a expectativa de vida tenha aumentado é acima de tudo uma boa notícia.
A idade média da humanidade está avançando; os filhos vivem nas casas de seus pais até quase o final da juventude, e os velhos morrem cada vez mais tarde, o que fará aumentar a população de turistas na casa dos mais de 60 anos. Parece-me que, se o futuro do mundo são os velhos, os anciãos, a Espanha está bem situada para esse futuro.
É uma boa notícia para o país.
KOOLHAAS - Michel, por que você menciona a Croácia como a próxima "Costa XXL"?
HOUELLEBECQ - Pode esperar: a Croácia tem aquilo que mais agrada às pessoas ricas e mimadas: é um país com quase mil ilhas e pode oferecer acesso exclusivo a lugares aos quais quase ninguém vai.
Isso é próprio e muito característico das ilhas, por sua própria natureza -o fato de que chegar a elas dá um pouquinho mais de trabalho.
Além disso, a Croácia conta também com um importante fator de autenticidade, porque as pessoas lá falam um idioma que ninguém entende, comem alimentos pouco conhecidos. É exótico, e ainda assim chegar lá de avião continua a ser fácil.
Já a Espanha nunca promoveu um turismo sofisticado; o setor começou por meio da promoção do turismo de massa; quando ele começou a decair, o país teve um golpe de sorte com a queda do Muro de Berlim, que permitiu a chegada de novas massas procedentes do Leste Europeu, vindas de trem.
Mas nesses países o capitalismo está se desenvolvendo com muita rapidez, de modo que essa fonte lentamente vai secar.
Uma indicação bastante confiável sobre essa tendência é a evolução do turismo alemão.
Quando os alemães começam a ir menos a um lugar, quer dizer que o lugar está em queda, e acredito que seja evidente que os turistas alemães já não vêm tanto à Espanha.
Os ingleses continuam vindo, é certo, mas isso se deve ao conservadorismo natural dos ingleses, o que só confirma aquilo que estou dizendo.
Mas pelo menos restam os idosos à Espanha. E existe um outro dado importante: a Espanha tem um passado turístico. E isso representa um fator desfavorável, porque os turistas procuram sempre a novidade.
Por conseguinte, aqueles que um dia foram não poderão continuar a ser. E o atrativo da tradição só funciona em termos de festa e sexo -por isso eu afirmei, anteriormente, que Ibiza permaneceria. Ibiza não precisa se preocupar.
Mas talvez estejamos falando demais do passado. Eu me pergunto: será possível construir alguma coisa? Por exemplo, uma estação de férias, mas sem saber se as pessoas virão? Construir do zero e...
KOOLHAAS - É claro que podemos. É perfeitamente possível prever a demanda real com incrível eficácia.
HOUELLEBECQ - Por exemplo?
KOOLHAAS - [O pólo turístico de] Dubai [nos Emirados Árabes Únidos] foi construído do zero e funciona. O índice de ocupação dos hotéis é de 90%...
HOUELLEBECQ - E por que a idéia funciona?
KOOLHAAS - Funciona porque fomos convencidos de que o lugar merece visita e porque lá faz calor durante metade do ano, o que é atraente para o turismo de baixo custo.
HOUELLEBECQ - Mas não se pode dizer que seja uma experiência comum, não? Como Dubai começou?
KOOLHAAS - Em 1994, aquilo que foi denominado aqui como "crise do petróleo" representou na verdade um grande sucesso.
Estados como [o emirado de] Dubai trabalharam com afinco, descobriram que o petróleo estaria esgotado em relativamente pouco tempo e que não dispunham de nenhuma infra-estrutura econômica, exceto aquela que pudessem instalar agora, com o que lhes resta de petróleo.
Ou seja, o processo representa uma transferência do petróleo para uma economia mais virtual.
Dubai é um lugar para jovens; o calor lá é definitivamente exagerado para os mais idosos.
HOUELLEBECQ - Quem se deixa atrair por um país abstrato, sem história? Não os jovens... Talvez as pessoas que procurem uma boa relação custo-benefício.
KOOLHAAS - Dubai está muito bem situado entre a Ásia, região que está em ascensão, e a Europa, que está em decadência.
Sua posição geográfica já bastaria para fazer do lugar um destino essencial em termos de tráfego aéreo. E está localizado no Oriente Médio, que é uma zona de estabilidade relativa...
Tudo isso faz do país uma abstração viva.
Também funciona bem para os russos, porque se localiza a apenas três horas de vôo de Moscou e a igual distância de Nova Déli [na Índia].
Ou seja, representa um centro real. [A capital] Dubai se converterá em uma cidade asiática, os indianos visitarão muito o local, e os trabalhadores serão asiáticos, ainda que no momento haja muitos trabalhadores poloneses e africanos chegando.
HOUELLEBECQ - Estou um pouco confuso. Esse sucesso de que você fala em Dubai me surpreende porque, mesmo na época em que começou o grande desenvolvimento do turismo, quando o Ocidente começou a ser rico, no fim dos anos 50, quando as pessoas vinham à Espanha e não viam nada, limitavam-se a ir à praia, tinham consciência de que a Espanha era alguma coisa e daquilo que a Espanha era.
Já Dubai... Ninguém nem sabe onde isso fica no mundo.
KOOLHAAS - Trata-se de um lugar abstrato, virtual. Gosto dessa sua idéia sobre coisas que estão "em baixa".
HOUELLEBECQ - Por exemplo, a política... Ela tem efetivamente cada vez menos importância, é um valor em baixa. Não gosto muito de insistir a respeito, porque não quero ser chamado de provocador, mas acredito que política seja uma espécie de setor adicional do show business.
Não acredito na tese sobre o final da história, mas...
KOOLHAAS - E a literatura? Está em baixa ou em alta?
HOUELLEBECQ - Bem, creio que esteja... estável. As potências capazes de impor uma arquitetura estética são as ditatoriais. E as últimas delas desapareceram.
As pessoas com muito dinheiro, ou seja, aquelas que poderiam suplantar alguém como Stálin, têm recursos para adquirir obras de arte, mas já não constroem palácios.
[O bilionário] Bill Gates talvez pudesse, mas não se atreveria. Talvez erigisse palácios disfarçados em casas... Mas não poderia ir além disso.
O que quero dizer é que a arquitetura precisa se relacionar com a economia, mas o mesmo não se aplica à literatura.
A literatura é livre. Mas, paradoxalmente, pouco mudou, resiste bastante bem ao ritmo do tempo, as transformações históricas pouco a influenciam.
A grande evolução da literatura aconteceu quando o povo aprendeu a ler; desde então, não houve outra revolução.
[Ao final da conversa, o público foi convidado a participar do debate. Algumas pessoas queriam saber o que Koolhaas tinha a dizer sobre o tamanho na arquitetura -seu famoso livro "S, M, L, XL" (Pequeno, Médio, Grande, Extragrande) inspirou o título do seminário-, sobre o futuro e sobre os motivos pelos quais o turismo em geral não interessa aos arquitetos.]
KOOLHAAS - Os arquitetos não levam o turismo a sério como tema porque somos todos moralistas e, já que somos contra o turismo, não pensamos em como intervir.
Quanto ao tamanho, os críticos vivem obcecados com o XXL e não prestam atenção a minhas pesquisas sobre o S [pequeno].
Creio que aquilo que mudou na arquitetura é que não enfrentamos mais um problema de tipologia, mas um problema de escala; o que mudou foi o tamanho das intervenções.
O que acontecerá no futuro?
Não creio que a promessa do liberalismo vá se cumprir, a promessa de que a democracia irá se expandindo e com ela a classe média, até que se torne maioria em todo o mundo.
Não sei que forma terá o mundo no futuro, mas uma coisa certa é que o turismo continuará crescendo. Não sou pessimista. Creio que podemos melhorar. E ainda espero por um novo Renascimento.

Este texto foi publicado no "El País". Tradução de Paulo Migliacci.


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