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Coletânea de ensaios de Eduardo Lourenço trata de Portugal e da saudade
Uma desistência maravilhosa
MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas
Um livro sobre a saudade, escrito por um intelectual português,
tem tudo para provocar reações
alérgicas no público brasileiro.
Não há coisa a que sejamos mais
refratários do que a cultura portuguesa. Para nós, é quase uma contradição em termos. Fernando
Pessoa e José Saramago só passam por nossa alfândega porque
recalcamos a lusitanidade deles.
Pessoa é, para nós, um mestre
do ventriloquismo moderno, um
passageiro do enorme transatlântico de si mesmo, hóspede dos
"grandes hotéis cosmopolitas",
como dizia Álvaro de Campos. Os
poemas portugueses de "Mensagem" não entram na nossa cabeça; a auto-imagem brasileira do
"herói sem nenhum caráter",
criada por Mario de Andrade,
harmoniza-se com o "poeta fingidor", o poeta das máscaras e heterônimos, a ponto de considerarmos Fernando Pessoa um autor
brasileiro ou europeu, pouco importa, mas nunca português.
Saramago, a despeito da "Jangada de Pedra", desfruta de uma
universalidade que o Nobel veio
reiterar e de uma espécie de internacionalismo minoritário, no
qual se congregam os inconformados com o privatismo e a globalização. É como se seu sotaque,
nas entrevistas, fosse uma teimosia ideológica, com a qual simpatizamos.
Tomamos posse virtual desses
dois grandes escritores portugueses, portanto, sem abandonar
nossa estranheza, nosso desdém,
pela lusitanidade.
O livro de Eduardo Lourenço
pode corrigir esse preconceito. A
desconfiança que tenhamos diante de qualquer reflexão sobre "a
saudade" -a velha história de
que o termo é intraduzível, indefinível etc.- logo se dissipa diante
da inteligência, do desencanto, da
sutileza sóbria desse grande ensaísta.
Em vez de ser um apologeta da
especificidade portuguesa,
Eduardo Lourenço desenvolve os
vários textos de "Mitologia da
Saudade" numa clave elegíaca. A
princípio, tudo parece um pouco
repetitivo. Leiamos o índice. Há
ensaios como "Melancolia e Saudade", "Da Saudade como Melancolia Feliz", "Romantismo, Camões e a Saudade", "Tempo e
Melancolia em Fernando Pessoa".
Mas esse perpétuo retornar ao
tema da saudade não torna o livro
de Lourenço um remoer de sensaborias e sentimentalidades. Há
certa malícia no volume, que é a
de identificar a eterna procura
portuguesa pelas glórias e identidades do passado com a incessante busca de temas como
"saudade" e
"melancolia"
ao longo de cada ensaio. Os
textos de
Eduardo Lourenço exercem,
sublimado, o
mesmo tipo de
inquietação
que ele vê na alma portuguesa.
Mesmo para quem não se interessa pela identidade nacional
desse "extremo Ocidente" português, os ensaios de Lourenço trazem uma enorme lição.
Não há sarcasmo, não há inconformismo no que ele escreve sobre seu país. Há crítica e lucidez,
sem dúvida, mas temperadas
quase por um cavalheirismo, um
decoro, na análise.
É como se Eduardo Lourenço
estivesse falando de alguém que já
morreu. A inserção de Portugal
na Comunidade Européia teria
rompido a insularidade, a
modéstia, a pequenez desse
país que terá
sido, se podemos dizer assim, órfão de
seus filhos.
Desse ponto
de vista, o texto
mais longo que
encerra o livro, "Portugal Como
Destino", talvez deva ser lido em
primeiro lugar. A reminiscência
heideggeriana (que, a meu ver,
compromete alguns ensaios do
autor) cede, aqui, a um fôlego interpretativo muito largo e que,
sendo ainda triste, tem nobreza.
Dou apenas um exemplo do desencanto e da bela dignidade desse livro. É o parágrafo final.
"Povo missionário de um planeta que se missiona sozinho,
confinados no modesto canto de
onde saímos para ver e saber que
há um só mundo, renunciemos à
mitologia da pureza, da transparência, à angélica pretensão de
sermos, mais do que todos somos, um povo entre os povos.
Que deu a volta ao mundo para
tomar a medida de sua maravilhosa imperfeição."
Uma desistência, sem dúvida;
mas uma maravilhosa desistência, essa que Eduardo Lourenço,
com estilo admirável, propõe a
Portugal.
Quanto a nós, brasileiros, acostumados à imagem de um país futuro, o contato com esse país do
passado pode nos esclarecer bastante.
A OBRA
Mitologia da Saudade -
Eduardo Lourenço. Cia. das Letras
(r. Bandeira Paulista, 702, conjunto
72, CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/
11/866-0801). 158 págs. R$ 18,00.
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