São Paulo, Domingo, 05 de Setembro de 1999
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Coletânea de ensaios de Eduardo Lourenço trata de Portugal e da saudade
Uma desistência maravilhosa

MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas

Um livro sobre a saudade, escrito por um intelectual português, tem tudo para provocar reações alérgicas no público brasileiro. Não há coisa a que sejamos mais refratários do que a cultura portuguesa. Para nós, é quase uma contradição em termos. Fernando Pessoa e José Saramago só passam por nossa alfândega porque recalcamos a lusitanidade deles.
Pessoa é, para nós, um mestre do ventriloquismo moderno, um passageiro do enorme transatlântico de si mesmo, hóspede dos "grandes hotéis cosmopolitas", como dizia Álvaro de Campos. Os poemas portugueses de "Mensagem" não entram na nossa cabeça; a auto-imagem brasileira do "herói sem nenhum caráter", criada por Mario de Andrade, harmoniza-se com o "poeta fingidor", o poeta das máscaras e heterônimos, a ponto de considerarmos Fernando Pessoa um autor brasileiro ou europeu, pouco importa, mas nunca português.
Saramago, a despeito da "Jangada de Pedra", desfruta de uma universalidade que o Nobel veio reiterar e de uma espécie de internacionalismo minoritário, no qual se congregam os inconformados com o privatismo e a globalização. É como se seu sotaque, nas entrevistas, fosse uma teimosia ideológica, com a qual simpatizamos.
Tomamos posse virtual desses dois grandes escritores portugueses, portanto, sem abandonar nossa estranheza, nosso desdém, pela lusitanidade.
O livro de Eduardo Lourenço pode corrigir esse preconceito. A desconfiança que tenhamos diante de qualquer reflexão sobre "a saudade" -a velha história de que o termo é intraduzível, indefinível etc.- logo se dissipa diante da inteligência, do desencanto, da sutileza sóbria desse grande ensaísta.
Em vez de ser um apologeta da especificidade portuguesa, Eduardo Lourenço desenvolve os vários textos de "Mitologia da Saudade" numa clave elegíaca. A princípio, tudo parece um pouco repetitivo. Leiamos o índice. Há ensaios como "Melancolia e Saudade", "Da Saudade como Melancolia Feliz", "Romantismo, Camões e a Saudade", "Tempo e Melancolia em Fernando Pessoa".
Mas esse perpétuo retornar ao tema da saudade não torna o livro de Lourenço um remoer de sensaborias e sentimentalidades. Há certa malícia no volume, que é a de identificar a eterna procura portuguesa pelas glórias e identidades do passado com a incessante busca de temas como "saudade" e "melancolia" ao longo de cada ensaio. Os textos de Eduardo Lourenço exercem, sublimado, o mesmo tipo de inquietação que ele vê na alma portuguesa.
Mesmo para quem não se interessa pela identidade nacional desse "extremo Ocidente" português, os ensaios de Lourenço trazem uma enorme lição.
Não há sarcasmo, não há inconformismo no que ele escreve sobre seu país. Há crítica e lucidez, sem dúvida, mas temperadas quase por um cavalheirismo, um decoro, na análise.
É como se Eduardo Lourenço estivesse falando de alguém que já morreu. A inserção de Portugal na Comunidade Européia teria rompido a insularidade, a modéstia, a pequenez desse país que terá sido, se podemos dizer assim, órfão de seus filhos.
Desse ponto de vista, o texto mais longo que encerra o livro, "Portugal Como Destino", talvez deva ser lido em primeiro lugar. A reminiscência heideggeriana (que, a meu ver, compromete alguns ensaios do autor) cede, aqui, a um fôlego interpretativo muito largo e que, sendo ainda triste, tem nobreza. Dou apenas um exemplo do desencanto e da bela dignidade desse livro. É o parágrafo final.
"Povo missionário de um planeta que se missiona sozinho, confinados no modesto canto de onde saímos para ver e saber que há um só mundo, renunciemos à mitologia da pureza, da transparência, à angélica pretensão de sermos, mais do que todos somos, um povo entre os povos. Que deu a volta ao mundo para tomar a medida de sua maravilhosa imperfeição."
Uma desistência, sem dúvida; mas uma maravilhosa desistência, essa que Eduardo Lourenço, com estilo admirável, propõe a Portugal.
Quanto a nós, brasileiros, acostumados à imagem de um país futuro, o contato com esse país do passado pode nos esclarecer bastante.



A OBRA
Mitologia da Saudade - Eduardo Lourenço. Cia. das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 72, CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/ 11/866-0801). 158 págs. R$ 18,00.




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