São Paulo, Domingo, 05 de Setembro de 1999
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Ruínas da identidade

JOÃO CAMILLO PENNA
especial para a Folha

O lançamento de uma segunda biografia de Clarice Lispector "Eu Sou uma Pergunta - Uma Biografia de Clarice Lispector", de Teresa Cristina Monteiro Ferreira, publicada apenas quatro anos após a de Nádia Battella Gotlib, "Clarice -Uma Vida Que Se Conta" (Ática, 1995), recoloca em pauta questões recorrentes sobre o gênero biografia e nos força a encarar o "problema" específico de qualquer biografia de Clarice.
Em linhas gerais, o "problema" com o qual toda a biografia -ou, no fundo, toda a crítica- de Clarice se depara é o seguinte: Clarice não cessa de se criticar ou de se biografar em seus próprios textos. No caso específico da biografia, como demonstram os dois livros até agora publicados, o problema se desdobra na estratégia de introduzir os textos biográficos de autoria da própria Clarice, numa narrativa que se quer o arrolamento de fatos importantes de uma vida.
Impressiona, assim, inicialmente, um dado de semelhança entre as duas: ambas perscrutam de perto o texto de Clarice, reduzido frequentemente à confirmação da informação biográfica -ou simplesmente a substituindo. A biografia suplementa o dado obtido na investigação do pesquisador com o que nos conta sobre sua vida a própria autora; ou então ocorre o inverso, é o texto que suplementa alguma lacuna do dado, algo que o pesquisador não conseguiu obter pelas vias de fato.
Na época, a biografia de Nádia foi criticada por parafrasear Clarice em excesso, mas, ao mesmo tempo, embutida na paráfrase estava a descoberta de um duplo movimento de "ficcionalização", interno à escritura de Clarice, que a biógrafa detectou, a meu ver, com precisão.
Por um lado, Clarice ficcionaliza a vida, ou seja, transforma em ficção o que em geral se mantém como reserva não-literária, como se pode ver, por exemplo, nos textos autobiográficos, que biografizam a sua ficção, ou nos depoimentos jornalísticos, que Clarice transforma em confrontos angustiados, revelando ou multiplicando versões de si mesma, manipulando a expectativa do público.
Por outro lado, e em sentido inverso, Clarice desficcionaliza a ficção, ou seja, abre dentro da literatura um espaço radicalmente neutro, da "brutalidade do fato", para usar uma expressão de Francis Bacon.
Assim sendo, a personagem que Clarice não cessa de criar dentro e fora da obra não passa desse exercício, um pretexto para a grande descoberta e instrumento de sua obra: a sensação nua, caracteristicamente não-literária, intervenção brutal ou simples do mundo. Busca de si mesma, essa "pergunta" sobre a identidade, a que tanto os críticos se referem, e que Teresa Cristina repete no título de sua biografia? Sim e não: a identidade é ainda uma versão reduzida do substrato de vida, tema da obra inteira de Clarice, cujos textos são sempre escritos sobre as ruínas do "bildungsroman", essa narrativização da existência, interessada justamente no ponto em que a vida se confunde com o que a limita, ilimitando-a, o que a contorna e transtorna, e que se transforma ou não em narração.
Dito isso, a estratégia de utilização de textos de autoria de Clarice é bastante diferente nas duas biografias. A biografia de Nádia é uma biografia de textos, e a de Teresa Cristina, de fatos. Ressaltem-se os problemas, talvez opostos, das duas: Nádia tem dificuldade de se desligar dos textos, atada a eles como que simbioticamente, e escreve uma biografia de crítico; enquanto Teresa Cristina não dá conta dos aspecto da linguagem na vida-obra de Clarice e escreve uma biografia que se quer romance.
Na biografia de Teresa Cristina, a referência textual é reduzida a quase nada. Os mesmos textos "memorialistas" utilizados por Nádia são aqui parafraseados ou simplesmente incorporados em itálico, sem nenhuma referência à sua procedência. A filtragem auto-reflexiva, marca da elaboração propriamente textual da matéria autobiográfica, não é levada em conta. Aqui não há mais complementação do dado da investigação com a crônica ou conto, há simples substituição. O texto é o próprio acontecimento como aconteceu.
Quando a reconstituição do fato não procede de textos da própria Clarice, ela vem de depoimentos ou cartas dos amigos e familiares. A ficcionalização da biografia é operada pela omissão do discurso indireto. Os depoimentos acabam se transformando em quase personagens, internalizados por uma narração onisciente que sabe o que elas pensam. Assim: "Pedro Lispector, pensativo e angustiado. Subitamente as estepes e os bosques da Rússia invadiam sua mente", (pág. 30); ou: "Clarice não via a hora de atingir a maioridade para se tornar cidadã brasileira" (pág. 68).
À maneira de um romance histórico do século 19, a narradora relaciona os acontecimentos da grande história (política) com os da pequena história (privada), com resultados em geral ingênuos -ou às vezes desajeitados.
Teresa Cristina reduz tudo -texto, depoimento, carta, crítica- a dado extralinguístico, numa narração que pontua os acontecimentos da vida de Clarice com acontecimentos históricos.

O que permanece oculto
Por trás dessa trama complicada de textos e fatos, o leitor sente uma grande lacuna: a ausência de muitos textos e fatos da vida de Clarice que as biografias apenas sugerem ou nos quais muitas vezes nem tocam. Assim, a relação com Paulo Mendes Campos foi impossível porque "Paulo era casado" (pág. 277); a psicose do filho mais velho, Pedro, é apenas levemente tocada: "Mas nada se compara à preocupação com o filho mais velho. Seu universo tão peculiar e inacessível revelava um comportamento fora dos padrões. Clarice não podia acompanhar os caminhos tortuosos da esquizofrenia de Pedro, precisava do auxílio da psiquiatria" (pág. 238); as internações periódicas a que Clarice se submetia ainda são matéria de sigilo.
Pudor de ferir a imagem de "boa moça" da autora? Censura da família sobre os materiais biográficos e escritos de Clarice, receosos de que ferissem as pessoas de seu círculo que ainda vivem? Manter oculto o que a autora queria que fosse mantido oculto? Note-se que há um progressivo desvelamento de dados antigamente tabus, por exemplo, no que concerne à origem judaica, à infância imigrante da família Lispector, no trânsito que leva da Ucrânia a Maceió, a Recife e ao Rio de Janeiro. Pouco a pouco todos esses fatos e documentos vão vindo à tona. O mesmo não ocorre com as fases mais recentes de sua vida. Será preciso esperar para a entrada dos textos em domínio público?
O que parece ocorrer-e aí nos deparamos com uma questão não específica a Clarice, que se repete em outros casos recentes de autores brasileiros não menos ilustres- é um zelo das famílias em manter a imagem do autor tal qual ele ou ela o faria se fosse vivo. A continuação desse controle sobre a vida -que, é preciso acrescentar, os próprios autores nem sempre exerciam sobre suas vidas com tal sistematicidade e que não deixa de ser uma extensão do direito autoral- repousa sobre uma interpretação dos interesses do autor, autorizada pela herança.
Interpretação sem dúvida identificatória, sem dúvida arbitrária e sem dúvida armada de intenções, se não boas, pelo menos que se querem guardiãs da memória do autor, mesmo a custo de reforçar o esquecimento. Mas aí vale perguntar: por que tanto receio? Por que fazer tanto segredo? Seremos tão moralistas a ponto de ter vergonha da vida? Há aqueles que justificam o silencio dizendo que o autor só interessa mesmo pela obra e que a vida só interessa aos vivos que a compartilharam. Para Clarice -mas na verdade para todo escritor-, que elaborava constantemente a vida textualmente, como é sempre o caso, isto significa o silêncio sobre a origem do texto e uma perda terrível para o conhecimento da obra. Com isso os leitores permanecem esperando. E permanece a suspeita de que a biografia de Clarice ainda está por ser escrita.



A OBRA
Eu Sou uma Pergunta - Uma Biografia de Clarice Lispector - Teresa Cristina Monteiro Ferreira. Rocco (r. Rodrigo Silva, 26, 5º andar, CEP 20011-040, RJ, tel. 0/xx/21/507-2000). 302 págs. R$ 32,00.



João Camillo Penna é diretor da Escola de Letras da Univer-Cidade, Centro Universitário da Cidade (Rio de Janeiro), e autor de "Clarice Lispector and the Intention of Minority Literature in Brazil".


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