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Arbítrio dos outros
Demissão de professor reacende debate sobre censura e revela muito sobre o estatuto da arte na sociedade
de consumo
LUIZ COSTA LIMA
COLUNISTA DA FOLHA
Procuro pensar sobre
a incidência de dois
fenômenos de nosso
cotidiano, que encontram na mídia
tratamento oposto.
O primeiro, o que está na cara de qualquer um, teria uma
"bibliografia" considerável.
Bastará ouvir os informativos televisivos sobre "fatos diversos" -como a preservação
dos casarões das velhas fazendas de café do Vale do Paraíba
ou a arte das rendeiras no interior do Ceará- ou ler jornais
que ofereçam uma cobertura
mais ampla do país e do mundo. Poder-se-á verificar que cada vez mais se acentua a tendência de reutilização de dejetos industriais e orgânicos
-desde latas de cerveja até papelões de tamanhos variados
ou dos restos do dia-a-dia de
um restaurante.
Ser esse fenômeno amplamente noticiado não precisa de
explicação: a reutilização de
dejetos vai positivamente de
encontro a uma sociedade do
desperdício.
Nesse sentido, faz parte de
uma mais ampla mudança de
hábitos: diz respeito à conduta
da sociedade quanto às fontes
naturais, cuja abundância começa a escassear.
Poderíamos acrescentar que
as modificações aludidas se
tornam forçosas pelo próprio
modo de produção capitalista;
que, por conseguinte, enfatizá-las seria optar pela adoção de
paliativos, em vez de ressaltar-se a própria raiz do problema.
Sem que seja falsa, essa resposta, no entanto, torna-se cada vez menos eficaz.
A queda do Muro de Berlim
(1989) não decretou que, a partir de então, o capitalismo não
tinha alternativa.
A queda do muro, no máximo, escancarou para todos o
que o pensamento político
mais agudo há décadas já havia
formulado: o socialismo havia
deixado de ser uma alternativa
para o capitalismo desde que se
impôs o padrão stalinista.
(Suponho que ninguém pensará que a atual combinação
chinesa de poder ditatorial e
produção regida por um capitalismo selvagem represente
alguma alternativa).
Se, portanto, o modo de produção capitalista deixou de ter
um competidor pelo menos
desde 1928, quando Stálin assumiu o poder absoluto na
União Soviética, a queda do
muro era apenas a primeira
manifestação patente da dissolução, mais rápida do que qualquer outra já sucedida, do império soviético.
Se o estado de coisas acima
descrito é acessível mesmo a
um não especialista como eu,
parece evidente que a oposição
ao modo de ser, pensar e agir
capitalista precisa mudar de
estratégia.
Daí que, embora não deixe de
ser um paliativo, a reutilização
do lixo orgânico e industrial é
uma maneira de, quando nada,
aumentarmos o tempo de sobrevida de um mundo que, em
nome do lucro, se autodestrói;
tempo de sobrevida para que,
sem o advento de uma catástrofe (nuclear?), a expansão do
capitalismo ou assuma outra
direção ou seja rompida.
Mas alguém saberá o que, de
fato, sucederá? Se, como já foi
dito, hoje perdemos a dimensão do futuro e vivemos em um
monótono "presentismo", é o
caso de nos indagarmos o que
já não se perdeu e já não pode
ser reciclado.
Reificação
Leio em um texto recente: "A
arte está morrendo? Cercada
por uma natureza segunda e
hostil, a arte agoniza entre nós,
por nós, mas não para nós".
Isso me lembra que, há 38
anos, em sua obra póstuma,
"Teoria Estética", [o filósofo
alemão] T.W. Adorno declarava, a propósito do cubismo, que
"por ele, pela primeira vez, a arte se dava conta de que a vida
não vive".
A afirmação, contudo, era feita por alguém que discordaria
em absoluto da mudança que
aqui se defende. Muito ao contrário, para Adorno, qualquer concessão ao mundo das relações reificadas, isto é, ao mundo em que, pelo capitalismo,
tudo se converte em coisa e,
portanto, em objeto de troca,
não merece outro nome senão
o de concessão criminosa.
Quanto à arte -objeto de seu
último livro e a que dedicara
seu máximo empenho na vida-, seria então criminosa
qualquer tentativa de torná-la
comunicável. Para Adorno, é a
própria comunicação, a exemplo da que aqui tentamos, que,
no tempo do capitalismo avançado, se torna criminosa.
Sem condições
Não vamos daí inferir que
sua posição ajudaria a explicar
o tom cabalístico de seu estilo.
Mais cautelosamente, diríamos: talvez Adorno se permitisse o hermetismo porque
acreditasse que, como todo fenômeno histórico, o capitalismo um dia terminaria e, à medida que as relações fossem
perdendo seu caráter de puramente reificadas, sua linguagem deixaria de ser o obstáculo
que é. Mas o problema com que
hoje nos defrontamos é diferente de como se apresentava
na década de 1970.
Já não se trata de apostar em
que as relações capitalistas algum dia deixarão de ser a bússola reguladora das relações
humanas, mas, sim, se sua inflexão drástica será cumprida
antes que termine a agonia do
que tanto prezamos, a exemplo
da arte.
Pois, se os dejetos orgânicos
e industriais podem ser reutilizados, é na medida que são matéria, algo passível de reaproveitamento.
Essa regra não se aplica ao
que supõe um investimento valorativo. Um valor que agonize
pode, no melhor do casos, ante
condições favoráveis, converter-se em outra coisa.
Que adianta especularmos
sobre o que poderá ser a transformação da arte dita autônoma, quando nem sequer sabemos se a humanidade ainda conhecerá condições que a favoreçam? Se acima está a reflexão
de imediato despertada pela
questão da reciclagem, passemos mais rapidamente para
um fenômeno sobre o qual
pouco nos detemos.
Sem defesa
Refiro-me especificamente à
censura intelectual. Ressalto
um fato concreto, que sucede
no momento mesmo em que
escrevo, e não noutro lugar senão que no Rio de Janeiro.
Um professor de português
que tem a má sorte de ser também um poeta e ensina(va) em
um colégio secundário particular da zona sul, por ter publicado, no seu blog, um conjunto de
poemas eróticos, é sumária e
discretamente demitido.
A medida foi tomada pela
instituição ante a reclamação
de pais de alunos, que acharam
que escrever poemas eróticos
não é tarefa para um professor
de seus filhos.
Não chamo nem sequer a
atenção para o fato de que tal
colégio foi fundado com uma
plataforma liberal, que, ao ir
crescendo, etc. etc.
Pergunto-me, sim: que defesa tem um poeta que, para sobreviver, precisa dar aulas de
português, caso sinta a necessidade de escrever poemas eróticos? Não adianta atentar para a
cegueira desses pais ou para a
covardia hipócrita de tal direção. A questão concreta é como
pode alguém, no caso o poeta-professor, defender-se ante
uma decisão arbitrária que interfere em sua sobrevivência
material?
Não acentuo nem sequer a
discrepância entre os princípios de uma sociedade que se
diz liberal, recém-saída de uma
ditadura, e uma medida assim
absurda. Acentuo, sim, que o
marginal ao noticiário midiático revela o aspecto autoritário
que, como sombra perversa,
permanece entranhado na sociedade brasileira.
LUIZ COSTA LIMA é crítico e professor na Universidade do Estado do RJ e na Pontifícia Universidade Católica (RJ). Escreve regularmente
na seção "Autores", do Mais! .
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