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+ Cultura
De corpo aberto
Marina Abramovic fala da relação entre arte e vida e explica como a sobrevivência
à dor está na base de suas performances
NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
À
pergunta sobre
considerar-se uma
sobrevivente, Marina Abramovic
[1946, Belgrado, ex-Iugoslávia, hoje Sérvia] responde com um "sim" veemente, furioso. Grande parte de seu
trabalho como performer adquire sentido em razão da idéia
de sobrevivência: sobrevivência a um país de tradição e história estilhaçadas; a uma família de heróis militares comunistas e da resistência ao nazismo, que exercia sobre ela uma
cobrança opressiva de permanente atitude militante diante
das adversidades.
Mais tarde e paradoxalmente, a artista precisa também sobreviver à total liberdade da
Holanda, em que nada era proibido; às pressões de se manter
como performer em um circuito artístico que cada vez mais
valoriza o objeto e em que a fusão indiscriminada entre arte e
vida inviabiliza o trânsito no
mercado.
Sobrevivência também aos
limites do tempo, da fala, da
dor, já que suas performances
duram muitas horas, em condições físicas necessariamente
difíceis e quase sempre em silêncio total.
A condição do sobrevivente
-como mostram, entre muitos
outros autores, Primo Levi em
"Os Afogados e os Sobreviventes" (Paz e Terra) e Giorgio
Agamben em "O Que Resta de
Auschwitz"- é ambígua e dilacerante: o sobrevivente precisa, deve e quer falar, mas sabe
também que é impossível dizer
qualquer coisa.
Sua culpa, a vergonha, o medo, a consciência de que nenhuma forma de expressão irá
alcançar o núcleo da experiência o impedem de falar. Mas
são esses os mesmos elementos que o obrigam a falar. Dessa
forma, quase compulsoriamente, o sobrevivente sempre
acaba por falar sobre a própria
impossibilidade da expressão.
Semântica do silêncio
Mas ela vai além.
Na exploração radical dos limites do corpo e da linguagem,
Abramovic não se detém somente sobre o questionamento
da funcionalidade da palavra,
da utilidade do gesto, do convencionalismo do tempo.
Constrói também uma semântica do silêncio e da duração, superando a impossibilidade da fala com a proposição
de um outro vocabulário espacial e temporal -a idéia de lidar
com o impossível por longos
períodos e, portanto, educar a
memória e o corpo para novas
atitudes, menos condicionadas
à lógica inexorável de idéias
conformistas -como "tempo é
dinheiro", "é preciso continuar" ou "é impossível mudar o
mundo".
"Quem trabalha com performance é necessariamente um
sobrevivente. Ninguém mais
faz performance; só o fato de se
ater a uma mesma forma de arte já é um gesto de sobrevivência." Tudo em seu trabalho e
em sua vida tem um nexo necessário, de que resultam performances em que os limites da
própria vida são colocados em
cheque. Como se não bastasse o
país sempre em guerra, seus
pais eram ambos militares, heróis da resistência.
"Meu pai é um herói nacional: divisão Montenegro, número 13. Certa vez, ele atravessou um vilarejo sobre um cavalo branco e foi baleado várias
vezes; tirava as balas de seu corpo com a mão, enchendo os buracos com tabaco. Minha mãe
era tão rígida que eu, mesmo
com 29 anos, fazia minhas performances até no máximo dez
da noite."
Em razão dessas restrições, o
heroísmo do pai e a rigidez da
mãe, Abramovic fugiu de casa
para ser descoberta pela polícia
comunista, também intransigente, mas que, ao saber de sua
idade (29 anos), concordou em
que ela já partia tarde.
"Fui para a Holanda, o lugar
mais liberal dos anos 1970. Lá
nada era proibido. Eu podia ficar nua na rua que ninguém reparava. Não havia contra o que
se rebelar, o que pode ser pior
do que um inimigo que está por
toda parte. Parecia que a causa
do meu trabalho havia desaparecido, e eu precisei inventar
minhas restrições e ir além dos
meus limites."
Testar limites
Essa necessidade de testar os
limites se confirma em suas oficinas, ministradas em diversas
universidades, museus e centros culturais. Nelas, os participantes precisam assinar um
contrato em que se comprometem a permanecer durante dez
dias longe da cidade, em algum
retiro na floresta.
Durante pelo menos cinco
desses dias, é terminantemente
proibido falar e comer qualquer alimento (só é permitido
ingerir água quente ou fria).
Caminha-se muito, além do suportável; desperta-se no meio
da noite para pular nu no meio
da neve. Mas, aquilo que parece
insustentável, depois de dois ou
três dias provoca o que Abramovic chama de um "estado de
elevação mental".
"É preciso sofrer, errar, ninguém aprende nada acertando.
Quem acerta só se repete.
Quanto mais sofrida a vida de
uma pessoa, melhor sua arte. É
preciso fazer performances a
partir do nada, do vazio. Quem
preenche o espaço da performance com 300 coisas só está
encobrindo sua insegurança."
"No vazio e no silêncio seu
material é você e seu corpo, e
assim você se descobre e descobre o público que lhe assiste.
Quero que as pessoas pensem
que minhas performances são
intermináveis, que elas não se
dão no tempo. As pessoas vão
jantar, voltam e eu ainda estou
lá; o museu fecha e eu ainda estou lá. Não quero que as pessoas pensem no tempo, quero
que elas se esqueçam de que o
tempo existe."
Generosidade
Diante de um público de jovens que a escutam com uma
curiosidade quase mística
diante do "Fiteiro Cultural", de
Fabiana de Barros [evento organizado no início de outubro
no anfiteatro do Tuca, em São
Paulo], Abramovic ri, gesticula,
pergunta, vai além do tempo
combinado.
"Existe uma necessidade de
orientação nos mais jovens,
eles precisam de um guia. E eu
detesto artistas que acham que
seu ego é maior do que seu trabalho. Aprendi a ser generosa
com John Cage; ele era tão curioso, parecia uma criança. É
por isso que adoro esse fiteiro;
porque as obras atuais precisam ser nômades, móveis e ir
atrás do público. Não acredito
em periferia, só acredito em
centros. Onde quer que você
esteja, você é o centro."
Isso talvez explique por que,
em seu último trabalho, "Balkan Erotic Epic" [em exposição
no Sesc Pinheiros até hoje], a
artista tenha ido tantas vezes a
Belgrado e passado muito tempo entre as camponesas para
realizar essa performance. "Eu
nunca teria feito este filme se
ainda morasse lá. Enquanto vivia na Iugoslávia, não conseguia gostar daquele misto de
amor e morte. Agora, consigo
olhar para seus arquétipos,
compreendê-los e amá-los."
"Balkan Erotic Epic" apresenta mulheres em antigos rituais agrícolas pagãos, mostrando-se nuas para o céu, entre outras coisas, para provocar
a chuva.
Para realizar esse filme, Marina Abramovic passou mais de
dois anos na Sérvia selecionando mulheres, trabalhando com
elas a idéia da nudez, dos significados dos antigos rituais, das
funções de homens e mulheres
em uma comunidade, além de
também atuar no filme.
Não faz concessões. "Se for
preciso fazer acordos, é melhor
desistir da arte e ir fazer outra
coisa. Se eu fosse pintora, agora
estaria rica, porque é muito fácil vender quadros, mas não
performances."
Quem assiste a "Balkan Erotic Epic" só pode agradecê-la
por isso.
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