São Paulo, domingo, 05 de novembro de 2006

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+ Cultura

De corpo aberto

Marina Abramovic fala da relação entre arte e vida e explica como a sobrevivência à dor está na base de suas performances

NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

À pergunta sobre considerar-se uma sobrevivente, Marina Abramovic [1946, Belgrado, ex-Iugoslávia, hoje Sérvia] responde com um "sim" veemente, furioso. Grande parte de seu trabalho como performer adquire sentido em razão da idéia de sobrevivência: sobrevivência a um país de tradição e história estilhaçadas; a uma família de heróis militares comunistas e da resistência ao nazismo, que exercia sobre ela uma cobrança opressiva de permanente atitude militante diante das adversidades.
Mais tarde e paradoxalmente, a artista precisa também sobreviver à total liberdade da Holanda, em que nada era proibido; às pressões de se manter como performer em um circuito artístico que cada vez mais valoriza o objeto e em que a fusão indiscriminada entre arte e vida inviabiliza o trânsito no mercado.
Sobrevivência também aos limites do tempo, da fala, da dor, já que suas performances duram muitas horas, em condições físicas necessariamente difíceis e quase sempre em silêncio total.
A condição do sobrevivente -como mostram, entre muitos outros autores, Primo Levi em "Os Afogados e os Sobreviventes" (Paz e Terra) e Giorgio Agamben em "O Que Resta de Auschwitz"- é ambígua e dilacerante: o sobrevivente precisa, deve e quer falar, mas sabe também que é impossível dizer qualquer coisa.
Sua culpa, a vergonha, o medo, a consciência de que nenhuma forma de expressão irá alcançar o núcleo da experiência o impedem de falar. Mas são esses os mesmos elementos que o obrigam a falar. Dessa forma, quase compulsoriamente, o sobrevivente sempre acaba por falar sobre a própria impossibilidade da expressão.

Semântica do silêncio
Mas ela vai além. Na exploração radical dos limites do corpo e da linguagem, Abramovic não se detém somente sobre o questionamento da funcionalidade da palavra, da utilidade do gesto, do convencionalismo do tempo.
Constrói também uma semântica do silêncio e da duração, superando a impossibilidade da fala com a proposição de um outro vocabulário espacial e temporal -a idéia de lidar com o impossível por longos períodos e, portanto, educar a memória e o corpo para novas atitudes, menos condicionadas à lógica inexorável de idéias conformistas -como "tempo é dinheiro", "é preciso continuar" ou "é impossível mudar o mundo".
"Quem trabalha com performance é necessariamente um sobrevivente. Ninguém mais faz performance; só o fato de se ater a uma mesma forma de arte já é um gesto de sobrevivência." Tudo em seu trabalho e em sua vida tem um nexo necessário, de que resultam performances em que os limites da própria vida são colocados em cheque. Como se não bastasse o país sempre em guerra, seus pais eram ambos militares, heróis da resistência.
"Meu pai é um herói nacional: divisão Montenegro, número 13. Certa vez, ele atravessou um vilarejo sobre um cavalo branco e foi baleado várias vezes; tirava as balas de seu corpo com a mão, enchendo os buracos com tabaco. Minha mãe era tão rígida que eu, mesmo com 29 anos, fazia minhas performances até no máximo dez da noite."
Em razão dessas restrições, o heroísmo do pai e a rigidez da mãe, Abramovic fugiu de casa para ser descoberta pela polícia comunista, também intransigente, mas que, ao saber de sua idade (29 anos), concordou em que ela já partia tarde.
"Fui para a Holanda, o lugar mais liberal dos anos 1970. Lá nada era proibido. Eu podia ficar nua na rua que ninguém reparava. Não havia contra o que se rebelar, o que pode ser pior do que um inimigo que está por toda parte. Parecia que a causa do meu trabalho havia desaparecido, e eu precisei inventar minhas restrições e ir além dos meus limites."

Testar limites
Essa necessidade de testar os limites se confirma em suas oficinas, ministradas em diversas universidades, museus e centros culturais. Nelas, os participantes precisam assinar um contrato em que se comprometem a permanecer durante dez dias longe da cidade, em algum retiro na floresta.
Durante pelo menos cinco desses dias, é terminantemente proibido falar e comer qualquer alimento (só é permitido ingerir água quente ou fria). Caminha-se muito, além do suportável; desperta-se no meio da noite para pular nu no meio da neve. Mas, aquilo que parece insustentável, depois de dois ou três dias provoca o que Abramovic chama de um "estado de elevação mental".
"É preciso sofrer, errar, ninguém aprende nada acertando. Quem acerta só se repete. Quanto mais sofrida a vida de uma pessoa, melhor sua arte. É preciso fazer performances a partir do nada, do vazio. Quem preenche o espaço da performance com 300 coisas só está encobrindo sua insegurança."
"No vazio e no silêncio seu material é você e seu corpo, e assim você se descobre e descobre o público que lhe assiste. Quero que as pessoas pensem que minhas performances são intermináveis, que elas não se dão no tempo. As pessoas vão jantar, voltam e eu ainda estou lá; o museu fecha e eu ainda estou lá. Não quero que as pessoas pensem no tempo, quero que elas se esqueçam de que o tempo existe."

Generosidade
Diante de um público de jovens que a escutam com uma curiosidade quase mística diante do "Fiteiro Cultural", de Fabiana de Barros [evento organizado no início de outubro no anfiteatro do Tuca, em São Paulo], Abramovic ri, gesticula, pergunta, vai além do tempo combinado.
"Existe uma necessidade de orientação nos mais jovens, eles precisam de um guia. E eu detesto artistas que acham que seu ego é maior do que seu trabalho. Aprendi a ser generosa com John Cage; ele era tão curioso, parecia uma criança. É por isso que adoro esse fiteiro; porque as obras atuais precisam ser nômades, móveis e ir atrás do público. Não acredito em periferia, só acredito em centros. Onde quer que você esteja, você é o centro."
Isso talvez explique por que, em seu último trabalho, "Balkan Erotic Epic" [em exposição no Sesc Pinheiros até hoje], a artista tenha ido tantas vezes a Belgrado e passado muito tempo entre as camponesas para realizar essa performance. "Eu nunca teria feito este filme se ainda morasse lá. Enquanto vivia na Iugoslávia, não conseguia gostar daquele misto de amor e morte. Agora, consigo olhar para seus arquétipos, compreendê-los e amá-los."
"Balkan Erotic Epic" apresenta mulheres em antigos rituais agrícolas pagãos, mostrando-se nuas para o céu, entre outras coisas, para provocar a chuva.
Para realizar esse filme, Marina Abramovic passou mais de dois anos na Sérvia selecionando mulheres, trabalhando com elas a idéia da nudez, dos significados dos antigos rituais, das funções de homens e mulheres em uma comunidade, além de também atuar no filme.
Não faz concessões. "Se for preciso fazer acordos, é melhor desistir da arte e ir fazer outra coisa. Se eu fosse pintora, agora estaria rica, porque é muito fácil vender quadros, mas não performances."
Quem assiste a "Balkan Erotic Epic" só pode agradecê-la por isso.


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