São Paulo, domingo, 05 de dezembro de 2004

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Redescobertas da escravidão

MANOLO FLORENTINO
ESPECIAL PARA A FOLHA

David Eltis e Stephen Behrendt encontraram-se pela primeira em 1990, enquanto escarafunchavam o tráfico de escravos no British Public Record Office. Logo sucederam-se os tragos que embalavam devaneios imprecisos e a idéia de montar um banco de dados com as viagens negreiras que cruzaram o Atlântico.
Historiadores experientes, sabiam dispor apenas de algumas séries de viagens, coletadas e codificadas nos anos 60, e do livro de Philip Curtin, "The Atlantic Slave Trade - A Census" [University of Wisconsin Press], o porto mais seguro quando se trata de estimar as entradas de africanos nas Américas -10 milhões, com margem de erro de 20%.
Em breve, o também inglês David Richardson emprestar-lhes-ia a sua experiência com a documentação naval setecentista. Não demorou a que os três consolidassem a mais completa base de dados sobre o tráfico britânico, estratégica, pois os longos tentáculos dos comerciantes de Bristol, Londres e Liverpool propiciavam o mapeamento inicial do tráfico realizado por holandeses, franceses e portugueses. O tão esperado suporte financeiro para a exploração detalhada dos arquivos europeus, americanos e africanos surgiu quando a idéia foi encampada por instituições como o Instituto Du Bois, da Universidade Harvard, e as fundações Mellon e Ford.

Novas rotas
Do esforço resultou a publicação de exatas 27.227 viagens negreiras no CD-ROM "The Trans-Atlantic Slave Trade" (Cambridge University Press, 1999), com variados graus de completude diante de dezenas de variáveis preestabelecidas -a origem e o destino americano das naus, o sexo e a idade dos escravos transportados, os mortos durante a travessia marítima e demais.
Preencher a maior lacuna do projeto, o tráfico para o Brasil, tornou-se então a obsessão do trio. Bases permanentes de pesquisa foram montadas em Lisboa, Luanda e Rio de Janeiro, enquanto outros pesquisadores esquadrinhavam arquivos na Espanha, em Cuba, na Holanda, França e Inglaterra.
Resultado: metade das viagens publicadas em 1999 viu-se acrescida de novas informações, e 7.000 expedições negreiras foram descobertas, a maioria para o Brasil. Encontram-se identificadas, hoje, 92% das 37 mil viagens que, estima-se, cruzaram o oceano desde o século 16.
O banco de dados será posto na web, de modo a possibilitar a livre consulta, a correção de erros e a inserção de novos dados. O Laboratório de Pesquisa em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro será o responsável pela versão em português.
Em breve, o ativo papel da África no estabelecimento dos padrões do tráfico assumirá contornos mais precisos, nas mudanças de rotas de acordo com as vicissitudes políticas de vastas regiões do continente negro, por exemplo.
A disseminação do acesso à web, favorecida pelo barateamento de máquinas, hardwares e softwares, facultará a latino-americanos e africanos o exercício da comparação, incipiente entre nós devido ao alto custo das missões ao exterior. Teremos, enfim, um sólido apoio para contrastar pontos de vista e cronologias e descentralizar linhas de interpretação, identificando aspectos essenciais que uniam e separavam os sistemas escravistas modernos.
Óbvio, dispor das séries de importações de africanos permite sobretudo estabelecer as flutuações da economia escravista, reafirmando a mineração (e não a agricultura de exportação) como o grande eixo consumidor de escravos. Desde já, a base de dados afiança a genial intuição de Maurício Goulart, que há mais de meio século estimou em 4 milhões os africanos desembarcados no Brasil, o maior dos tráficos americanos.
Entretanto o fato de seus números estarem inflacionados para o século 17 reconduz a América portuguesa à sua verdadeira dimensão antes de 1700 -pífia, especialmente diante da seção oriental do império luso. É igualmente claro haver Goulart subestimado os desembarques ocorridos após esse ano, o que descarta a existência de crises econômicas antes e depois de 1822, tornando urgente estabelecer os verdadeiros móveis da autonomia colonial.
Foram coletadas informações sobre outras importantes dimensões da escravidão. Lá está o inusitado nascimento de "dous escravos" na viagem do bergantim "Netuno Pequeno" entre a Costa da Mina e Salvador, em 1789, e também inúmeros ataques de piratas na década de 1820 -eles impuseram aos traficantes do Rio de Janeiro a perda de 800 contos de réis, o custo de 50 expedição negreiras. Mas nem só corsários se refestelavam arrancando infelizes a traficantes: em 1811, os 400 escravos do "São Manoel Ativo" foram apresados por um brigue de guerra dos revolucionários do Haiti. Depois de avaliados, mandou-se pagar ao capitão do negreiro o valor de cada um deles, mas em gêneros do país.
Há ainda revoltas em alto-mar, como a ocorrida em 1796, no negreiro de José Antônio Pereira -278 escravos apoderaram-se das armas, a tudo queimando e pondo em fuga a tripulação. O cruzamento entre o tráfico e as atitudes de resistência dos cativos nas Américas sugere haver certa correlação positiva entre a freqüência das evasões e os desembarques de africanos.
Ao concentrar dois terços das viagens, o século 18 talvez tenha representado a época áurea do protesto escravo em todo o continente. O mesmo raciocínio sugere terem sido as fugas e os quilombos mais comuns no Brasil e no Caribe em comparação com o sul dos Estados Unidos, onde congregavam menos gente e obtinham menor êxito.
Projetos para toda a vida são coisas de doidos varridos. Quando mais não seja, porque seus autores geralmente se equivocam ao imaginarem-se com suficiente ânimo para controlar suas existências incertas. David Eltis, Stephen Behrendt e David Richardson elidiram semelhante imponderável da maneira mais original que conheço: montaram um projeto para a eternidade.


Manolo Florentino é professor no departamento de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É autor de, entre outros, "A Paz das Senzalas" (ed. Civilização Brasileira). Ele escreve bimestralmente na seção "Autores".


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