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Redescobertas da escravidão
MANOLO FLORENTINO
ESPECIAL PARA A FOLHA
David Eltis e Stephen Behrendt encontraram-se pela
primeira em 1990, enquanto escarafunchavam
o tráfico de escravos no British Public Record Office. Logo sucederam-se os tragos que embalavam
devaneios imprecisos e a idéia de
montar um banco de dados com as
viagens negreiras que cruzaram o
Atlântico.
Historiadores experientes, sabiam
dispor apenas de algumas séries de
viagens, coletadas e codificadas nos
anos 60, e do livro de Philip Curtin,
"The Atlantic Slave Trade - A Census" [University of Wisconsin
Press], o porto mais seguro quando
se trata de estimar as entradas de
africanos nas Américas -10 milhões, com margem de erro de 20%.
Em breve, o também inglês David
Richardson emprestar-lhes-ia a sua
experiência com a documentação
naval setecentista. Não demorou a
que os três consolidassem a mais
completa base de dados sobre o tráfico britânico, estratégica, pois os
longos tentáculos dos comerciantes
de Bristol, Londres e Liverpool propiciavam o mapeamento inicial do
tráfico realizado por holandeses,
franceses e portugueses. O tão esperado suporte financeiro para a exploração detalhada dos arquivos europeus, americanos e africanos surgiu quando a idéia foi encampada
por instituições como o Instituto Du
Bois, da Universidade Harvard, e as
fundações Mellon e Ford.
Novas rotas
Do esforço resultou a publicação
de exatas 27.227 viagens negreiras
no CD-ROM "The Trans-Atlantic
Slave Trade" (Cambridge University Press, 1999), com variados graus
de completude diante de dezenas de
variáveis preestabelecidas -a origem e o destino americano das
naus, o sexo e a idade dos escravos
transportados, os mortos durante a
travessia marítima e demais.
Preencher a maior lacuna do projeto, o tráfico para o Brasil, tornou-se então a obsessão do trio. Bases
permanentes de pesquisa foram
montadas em Lisboa, Luanda e Rio
de Janeiro, enquanto outros pesquisadores esquadrinhavam arquivos
na Espanha, em Cuba, na Holanda,
França e Inglaterra.
Resultado: metade das viagens
publicadas em 1999 viu-se acrescida
de novas informações, e 7.000 expedições negreiras foram descobertas,
a maioria para o Brasil. Encontram-se identificadas, hoje, 92% das 37
mil viagens que, estima-se, cruzaram o oceano desde o século 16.
O banco de dados será posto na
web, de modo a possibilitar a livre
consulta, a correção de erros e a inserção de novos dados. O Laboratório de Pesquisa em História Social
da Universidade Federal do Rio de
Janeiro será o responsável pela versão em português.
Em breve, o ativo papel da África
no estabelecimento dos padrões do
tráfico assumirá contornos mais
precisos, nas mudanças de rotas de
acordo com as vicissitudes políticas
de vastas regiões do continente negro, por exemplo.
A disseminação do acesso à web,
favorecida pelo barateamento de
máquinas, hardwares e softwares,
facultará a latino-americanos e africanos o exercício da comparação,
incipiente entre nós devido ao alto
custo das missões ao exterior. Teremos, enfim, um sólido apoio para
contrastar pontos de vista e cronologias e descentralizar linhas de interpretação, identificando aspectos
essenciais que uniam e separavam
os sistemas escravistas modernos.
Óbvio, dispor das séries de importações de africanos permite sobretudo estabelecer as flutuações da economia escravista, reafirmando a mineração (e não a agricultura de exportação) como o grande eixo consumidor de escravos. Desde já, a base de dados afiança a genial intuição
de Maurício Goulart, que há mais de
meio século estimou em 4 milhões
os africanos desembarcados no Brasil, o maior dos tráficos americanos.
Entretanto o fato de seus números
estarem inflacionados para o século
17 reconduz a América portuguesa à
sua verdadeira dimensão antes de
1700 -pífia, especialmente diante
da seção oriental do império luso. É
igualmente claro haver Goulart subestimado os desembarques ocorridos após esse ano, o que descarta a
existência de crises econômicas antes e depois de 1822, tornando urgente estabelecer os verdadeiros
móveis da autonomia colonial.
Foram coletadas informações sobre outras importantes dimensões
da escravidão. Lá está o inusitado
nascimento de "dous escravos" na
viagem do bergantim "Netuno Pequeno" entre a Costa da Mina e Salvador, em 1789, e também inúmeros
ataques de piratas na década de 1820
-eles impuseram aos traficantes
do Rio de Janeiro a perda de 800
contos de réis, o custo de 50 expedição negreiras. Mas nem só corsários
se refestelavam arrancando infelizes
a traficantes: em 1811, os 400 escravos do "São Manoel Ativo" foram
apresados por um brigue de guerra
dos revolucionários do Haiti. Depois de avaliados, mandou-se pagar
ao capitão do negreiro o valor de cada um deles, mas em gêneros do
país.
Há ainda revoltas em alto-mar,
como a ocorrida em 1796, no negreiro de José Antônio Pereira -278 escravos apoderaram-se das armas, a
tudo queimando e pondo em fuga a
tripulação. O cruzamento entre o
tráfico e as atitudes de resistência
dos cativos nas Américas sugere haver certa correlação positiva entre a
freqüência das evasões e os desembarques de africanos.
Ao concentrar dois terços das viagens, o século 18 talvez tenha representado a época áurea do protesto
escravo em todo o continente. O
mesmo raciocínio sugere terem sido
as fugas e os quilombos mais comuns no Brasil e no Caribe em comparação com o sul dos Estados Unidos, onde congregavam menos gente e obtinham menor êxito.
Projetos para toda a vida são coisas de doidos varridos. Quando
mais não seja, porque seus autores
geralmente se equivocam ao imaginarem-se com suficiente ânimo para controlar suas existências incertas. David Eltis, Stephen Behrendt e
David Richardson elidiram semelhante imponderável da maneira
mais original que conheço: montaram um projeto para a eternidade.
Manolo Florentino é professor no departamento de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É autor de, entre outros, "A Paz das Senzalas" (ed. Civilização
Brasileira). Ele escreve bimestralmente na
seção "Autores".
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