São Paulo, domingo, 05 de dezembro de 2004

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Versões do desespero bíblico

"Judas Iscariotes" e "Abel Sánchez" ficcionalizam a traição e a inveja

ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

É um ato de justiça editorial a publicação de "Judas Iscariotes e Outras Histórias", do russo Leonid Andreiév (1871-1919). Esquecido no Brasil, ele tem provavelmente apenas um outro livro (dificilmente) encontrável por aqui, "Os Sete Enforcados" (lançado no país em 1987, com prefácio de Fernando Sabino, pela ed. Rocco).
Quem leu esta obra, que deveria ser lição de casa mais do que obrigatória para qualquer defensor da pena de morte, vai encontrar nos contos agora editados a mesma mistura de desespero e crença na inevitabilidade do destino, aliados contudo a uma surpreendente dose de humor.
É o que acontece por exemplo em "O Nada", no qual um alto dignatário, "velho de certa importância", morre e precisa escolher rapidamente -pois o diabo estava com muita pressa- se preferia ir para o inferno, onde teria vida eterna, ou aceitar o fim definitivo, o "silêncio, o vazio, o vácuo". E é o que acontece também em "O Grande Slam", cuja inspiração em "A Dama de Espadas", de Púchkin, é evidente, como lembra na introdução a crítica Aurora F. Bernardini.
Mas o destaque do volume é seu texto inicial, o longo conto "Judas Iscariotes". A primorosa caracterização do traidor como um ser vil, grosseiro, perspicaz e ao mesmo tempo absolutamente predestinado, pronto para a sua glória cruel, em razão de seu ato decisivo na construção mítica de Jesus, impõe-se ao leitor como quase definitiva, apesar das outras várias figurações literárias que o personagem conheceu nos últimos séculos: "Sim. Com um beijo de amor Te entrego! Com um beijo de amor O entregamos ao opróbrio, à tortura, à morte. Com a voz do amor chamamos os verdugos, ocultos em suas sombras, e levantamos a cruz para Ti!".
Marcante do mesmo modo é o próprio Cristo, retratado com traços opostos, cheios de silêncio e olhares significativos.

"Matemático do horror"
Como escreveu Fernando Sabino no prefácio citado acima, "um dos críticos dessa obra chamou mesmo o seu autor de "matemático do horror", tal a mórbida precisão com que ele retrata os aspectos mais trágicos das criaturas que povoam o sombrio universo de sua imaginação".
Em outro texto baseado numa dupla bíblica que acaba de ser traduzido, "Abel Sánchez - Uma História de Paixão", o espanhol Miguel de Unamuno (1864-1936) também tenta "retratar os aspectos mais trágicos" de sua criação, que reconta na modernidade o conflito primordial entre Caim (agora Joaquín Monegro) e Abel (agora Abel Sánchez).
Apesar de o título sugerir o contrário, é Joaquín o real protagonista da história. A ele, e conseqüentemente a Caim, o autor de "Do Sentimento Trágico da Vida" (lançado no Brasil pela Martins Fontes) procura resgatar neste estudo sobre a inveja: "Você acha que os afortunados, os agraciados, os favoritos não têm culpa de nada? Eles têm culpa, sim, por não ocultar, e ocultar como uma vergonha, que é isso que é, todo o favor gratuito, todo o privilégio não alcançado por méritos próprios (...) Aqueles que se crêem justos costumam ser uns arrogantes que oprimem os outros com a ostentação de sua justiça. Alguém já disse que não há canalha maior do que uma pessoa honrada...".
Infelizmente, talvez pelo fato de o escritor não conseguir se desvencilhar de seus propósitos extraliterários, o romance acaba se tornando um tanto esquemático. A comparação, por exemplo, com um livro como "Dom Casmurro", com o qual "Abel Sánchez" guarda inúmeras semelhanças, é implacável e não deixa dúvidas do lugar secundário que este ocupa.


Adriano Schwartz é doutor em teoria literária pela Universidade de São Paulo, autor de "O Abismo Invertido" (ed. Globo) e organizador de "Memórias do Presente - Cem Entrevistas do "Mais!'" (Publifolha).

Judas Iscariotes e Outras Histórias
144 págs., R$ 29,00 de Leonid Andreiév. Trad. de Henrique Losinsky Alves. Ed. Claridade (r. Dionísio da Costa, 153, CEP 04117-110, São Paulo, SP, tel. 0/ xx/11/5575-1809).
Abel Sánchez
220 págs., R$ 34,90 de Miguel de Unamuno. Trad. de Luís Carlos Cabral e Eric Nepomuceno. Ed. Record.



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