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Versões do desespero bíblico
"Judas Iscariotes" e "Abel Sánchez" ficcionalizam a traição e a inveja
ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA
É um ato de justiça editorial a
publicação de "Judas Iscariotes e Outras Histórias", do
russo Leonid Andreiév (1871-1919). Esquecido no Brasil, ele tem
provavelmente apenas um outro livro (dificilmente) encontrável por
aqui, "Os Sete Enforcados" (lançado
no país em 1987, com prefácio de
Fernando Sabino, pela ed. Rocco).
Quem leu esta obra, que deveria
ser lição de casa mais do que obrigatória para qualquer defensor da pena de morte, vai encontrar nos contos agora editados a mesma mistura
de desespero e crença na inevitabilidade do destino, aliados contudo a
uma surpreendente dose de humor.
É o que acontece por exemplo em
"O Nada", no qual um alto dignatário, "velho de certa importância",
morre e precisa escolher rapidamente -pois o diabo estava com
muita pressa- se preferia ir para o
inferno, onde teria vida eterna, ou
aceitar o fim definitivo, o "silêncio, o
vazio, o vácuo". E é o que acontece
também em "O Grande Slam", cuja
inspiração em "A Dama de Espadas", de Púchkin, é evidente, como
lembra na introdução a crítica Aurora F. Bernardini.
Mas o destaque do volume é seu
texto inicial, o longo conto "Judas Iscariotes". A primorosa caracterização do traidor como um ser vil, grosseiro, perspicaz e ao mesmo tempo
absolutamente predestinado, pronto para a sua glória cruel, em razão
de seu ato decisivo na construção
mítica de Jesus, impõe-se ao leitor
como quase definitiva, apesar das
outras várias figurações literárias
que o personagem conheceu nos últimos séculos: "Sim. Com um beijo
de amor Te entrego! Com um beijo
de amor O entregamos ao opróbrio,
à tortura, à morte. Com a voz do
amor chamamos os verdugos, ocultos em suas sombras, e levantamos a
cruz para Ti!".
Marcante do mesmo modo é o
próprio Cristo, retratado com traços
opostos, cheios de silêncio e olhares
significativos.
"Matemático do horror"
Como escreveu Fernando Sabino
no prefácio citado acima, "um dos
críticos dessa obra chamou mesmo
o seu autor de "matemático do horror", tal a mórbida precisão com que
ele retrata os aspectos mais trágicos
das criaturas que povoam o sombrio
universo de sua imaginação".
Em outro texto baseado numa dupla bíblica que acaba de ser traduzido, "Abel Sánchez - Uma História de
Paixão", o espanhol Miguel de Unamuno (1864-1936) também tenta
"retratar os aspectos mais trágicos"
de sua criação, que reconta na modernidade o conflito primordial entre Caim (agora Joaquín Monegro) e
Abel (agora Abel Sánchez).
Apesar de o título sugerir o contrário, é Joaquín o real protagonista da
história. A ele, e conseqüentemente
a Caim, o autor de "Do Sentimento
Trágico da Vida" (lançado no Brasil
pela Martins Fontes) procura resgatar neste estudo sobre a inveja: "Você acha que os afortunados, os agraciados, os favoritos não têm culpa de
nada? Eles têm culpa, sim, por não
ocultar, e ocultar como uma vergonha, que é isso que é, todo o favor
gratuito, todo o privilégio não alcançado por méritos próprios (...)
Aqueles que se crêem justos costumam ser uns arrogantes que oprimem os outros com a ostentação de
sua justiça. Alguém já disse que não
há canalha maior do que uma pessoa honrada...".
Infelizmente, talvez pelo fato de o
escritor não conseguir se desvencilhar de seus propósitos extraliterários, o romance acaba se tornando
um tanto esquemático. A comparação, por exemplo, com um livro como "Dom Casmurro", com o qual
"Abel Sánchez" guarda inúmeras semelhanças, é implacável e não deixa
dúvidas do lugar secundário que este ocupa.
Adriano Schwartz é doutor em teoria literária pela Universidade de São Paulo, autor
de "O Abismo Invertido" (ed. Globo) e organizador de "Memórias do Presente - Cem
Entrevistas do "Mais!'" (Publifolha).
Judas Iscariotes
e Outras Histórias
144 págs., R$ 29,00
de Leonid Andreiév. Trad. de Henrique Losinsky Alves. Ed. Claridade
(r. Dionísio da Costa, 153, CEP
04117-110, São Paulo, SP, tel. 0/
xx/11/5575-1809).
Abel Sánchez
220 págs., R$ 34,90
de Miguel de Unamuno. Trad. de
Luís Carlos Cabral e Eric Nepomuceno. Ed. Record.
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