São Paulo, domingo, 06 de janeiro de 2008

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O castelo do ermitão

O escritor francês Julien Gracq, morto em dezembro, construiu uma obra profunda que não condiz com sua imagem de arrogante

ANDRÉ VELTER

A dmirado, celebrado, apresentado como um comandante altaneiro e quase invisível, Julien Gracq devia se perguntar com freqüência por que pérfida maldição ele era tão confundido com outro. Sua morte discreta em Angers [França], em 22/12, aos 97 anos, modificará a imagem de escritor atemporal e um pouco arrogante que era ligada ao seu nome?
Das primeiras páginas de "Au Château d'Argol" às últimas dos "Carnets du Grand Chemin" [No Castelo de Argol e Cadernos do Grande Caminho, editados na França pela José Corti], não havia ele recorrido aos poderes de uma liberdade que queria ilimitada, maravilhosa, excessiva e, às vezes, demoníaca? À diferença dos estetas semi-surdos e semicegos, seus leitores fervorosos sabiam o que esperar.

Estômago
No entanto, se ele permanecia escrupulosamente afastado do meio literário e de seus costumes, esse homem de discrição marcante e franqueza mordaz avançava sem qualquer máscara em seus romances, seus relatos e ensaios, e, é claro, em "La Littérature à l'Estomac" [A Literatura no Estômago], o panfleto de grande influência publicado em 1950. Percebia-se nele, claramente expressa, uma tensão despertada pelo contato com o surrealismo e que o mantinha em estado de fria revolta, disposto a todas as subversões lúcidas, a todas as aventuras verdadeiras.
Assim, ele saudou como um traço incandescente, sempre exemplar, sempre atual, "essa virtude essencial de reivindicar a todo instante a expressão da totalidade do homem, que é recusa e aceitação misturadas, separação constante e também constante reintegração, (...) mantendo em seu ponto extremo de tensão as duas atitudes simultâneas que esse mundo fascinante e intolerável em que estamos não deixa de suscitar: o maravilhamento e a fúria" ("Préférences", ed. José Corti).
Longe de se afastar de tudo, Gracq buscava precisamente, por caminhos singulares, participar desse Todo, nunca se desligar de seu misterioso campo de atração. Era para não romper esse acordo frágil e incerto com a unidade do mundo que ele ignorava palcos e desfiles.
Ele concebia um real mais vasto, mas sem fissura, aberto a todas as linhas de fuga, mas sem evasão radical. "Da vida banal ao cume da arte, não há ruptura, mas florescimento mágico, que implica uma inversão íntima da atenção, uma maneira totalmente outra, de orientação totalmente diferente, infinitamente mais rica em harmonias, de escutar e olhar" ("Julien Gracq, Qui Êtes-Vous?", Quem é Você?, entrevistas a Jean Carrière, ed. La Manufacture).

Tão pouco
Sua obra é primeiramente um testemunho dessa "inversão íntima" que de repente faz da palavra poética uma força imantada. Gracq nunca se preocupou muito com os debates de professores ou filósofos que não paravam questionar a validade, a eficácia, a verdade da literatura.
O autor de "Litoral das Sirtes" [ed. Guanabara] salientou que era importante "escrever como nos atiramos à água, fazendo um ato de confiança no elemento portador" (Na "Nouvelle Revue Française").
Em uma de suas breves anotações, Julien Gracq, evocando a região de Aubrac, escreveu: "É preciso tão pouco para viver aqui". Desse pouco, dessa vida, desse aqui, Gracq soube como ninguém reconstituir o rigor e o fausto, a nobreza e os poderosos malefícios, o prazer e o encantamento insondável.


A íntegra deste texto foi publicada no "Monde". Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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