São Paulo, domingo, 06 de janeiro de 2008

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Nós que os amávamos tanto

Walter Salles analisa legado de Michelangelo Antonioni e Ingmar Bergman, ambos mortos em 2007

ESPECIAL PARA A FOLHA

O tempo não existe. O presente e o futuro são apenas o mesmo instante -um agora" (Bergman).
"O homem vive num equilíbrio instável, que com os anos se estabiliza cada vez mais, até que ele encontra o equilíbrio absoluto, que é a morte" (Antonioni).
Trinta de julho de 2007. Morrem no mesmo dia Ingmar Bergman e Michelangelo Antonioni, dois cineastas que definiram o que é o cinema moderno. Não existem coincidências, dizia outro mestre, Borges.
Tanto Bergman quanto Antonioni fizeram filmes que alimentaram sucessivas gerações, que viam o cinema como uma forma de expressão "total" -para usar o termo que Godard elegeu para definir "O Deserto Vermelho".
O ponto de encontro entre a literatura, a filosofia, a arquitetura, e, no caso de Bergman, o teatro e a psicanálise. O conceito de "entretenimento", dominante hoje, não fazia parte da equação.

Bergman e Antonioni viam o cinema como uma forma de expressão "total"


Cinqüenta e oito filmes. De tão vasta, a obra de Bergman é dificilmente classificável. Há um fio condutor, no entanto, a permeá-la; uma reflexão sobre a finitude humana, o absurdo da existência, a recusa da culpa protestante, a ausência de um Deus. Seus personagens estão sempre à beira de um abismo, a alma exposta.
Bergman, como Clarice Lispector [1920-1977], não costurava para fora. Costurava para dentro. Por isso, o rosto humano é seu território predileto. Cada recanto da face de seus atores, um mundo.

Desmascarar
"Persona", título escolhido após o filme ter ficado pronto, dá o mapa da mina: em latim, a palavra designa a máscara atrás da qual o ator dissimulava o seu rosto. Toda a obra de Bergman é dedicada a esse desmascaramento impiedoso dos sentimentos.
A gramática cinematográfica que ele instaurou com a ajuda de seu fiel diretor de fotografia, Sven Nykvist, parte sempre do close para o plano geral. Não há espaço, aqui, para aquilo que é morno: o plano médio.
"Morangos Silvestres", obra-prima que ganhou o Urso de Ouro do Festival de Berlim em 1958, permitiu que a obra de Bergman ultrapassasse as fronteiras da sua Suécia natal. Mas foi outro filme, "Monika e o Desejo", que rompeu cinco anos antes com a fase romântica que marcou os primeiros anos de trabalho.
Depois vieram os filmes que compuseram a chamada "Trilogia de Farö", ilha onde ele viveu, recluso, grande parte de sua vida: "A Hora do Lobo", "Vergonha", "A Paixão de Ana". Todos de uma violência aguda.
A mesma violência que Bergman tinha consigo mesmo, prova de uma honestidade intelectual sem par. Numa conversa com o cineasta e ex-crítico Olivier Assayas, Bergman disse uma vez que detestava "Sonata de Outono" (1978): "Um crítico francês escreveu que o sr. Bergman começou a fazer filmes a la Bergman. Ele não gostava do filme, como eu, e tinha razão. O desastre, com Tarkovski, foi que ele começou a fazer filmes a la Tarkovski ".

Fantasmas do passado
Na mesma conversa, Bergman também contou que odiava o pai, pastor protestante que tentou inutilmente inculcar-lhe o sentimento da culpa, e não dissimulava o ressentimento que sentia em relação à mãe.
O seu último longa-metragem realizado para o cinema, "Fanny e Alexandre", iria reconciliá-lo com os fantasmas de seu passado. É o filme possivelmente mais acessível de Bergman e também um dos mais extraordinários, o ponto de encontro de toda a sua obra.
Alexandre, o menino que assiste impotente à morte do pai e à ascensão do padrasto, um pastor protestante chamado Vergerus, é o alter ego de Bergman. Todo o embate do filme se dá entre o menino-artista que cria e fabula e o padrasto que tudo castra.
Se existe o ódio, existe também o poder de subjugá-lo por meio da imaginação. E da lanterna mágica, o cinema. Alexandre e seu criador só sobrevivem graças a essa crença salvadora na imagem/imaginação.
Essa mesma fé na força expressiva do cinema e das imagens movia Antonioni.
Desde os seus primeiros documentários, a sua matéria-prima é o homem em crise num mundo em transformação acelerada. Próximo do existencialismo de Camus, Antonioni foi o cineasta que melhor falou da crise de identidade no mundo contemporâneo.
Uma mulher desaparece: "A Aventura", de tão renovador, foi recebido com uivos de reprovação no Festival de Cannes de 1960. Um ano mais tarde, Antonioni ganhou o Festival de Berlim com "A Noite", filme de uma acuidade rara, em que um casal formado por Marcello Mastroianni e Jeanne Moreau se esfacela numa cidade em constante reconstrução. Era Milão -mas poderia ser São Paulo, hoje.
Seguem-se outros dois filmes que confirmam Antonioni como um mestre do cinema dos anos 60, "O Eclipse" e "O Deserto Vermelho", filmes sobre a coisificação do homem na sociedade pós-industrial.
Mas é com a trilogia formada por "Blow-Up" (perda de identidade), "Profissão: Repórter" (troca de identidade) e "Zabriskie Point" (implosão da identidade) que a obra de Antonioni adquire a sua dimensão mais ampla.
A partir desse momento, o mestre de Ferrara está em perfeita sincronia com seu tempo: seus personagens são condicionados por uma realidade sociopolítica que desconhece fronteiras.
Enquanto para Bergman um casal pode ser um país, para Antonioni a relação dialética entre o artista e o mundo em transformação é essencial. Cinema político, mas nunca dogmático -e que se recusa a julgar. "Não quero apontar com o dedo, quero fazer sentir", dizia Antonioni.

Barthes
Roland Barthes escreveu que "Antonioni deixava o caminho dos sentidos aberto". E, citando o pintor Braque, lembrava que "um quadro só está terminado quando a idéia inicial não está mais à mostra". Poderia, provavelmente, ter escrito o mesmo de Bergman.
O sueco teve o privilégio de acertar o seu ato final. "Sarabanda" (2003) é mais do que um filme-testamento, é uma obra maior. Um acerto de contas de uma extrema violência, mas onde os personagens vividos por Erland Josephson e Liv Ullmann se salvam, mais uma vez, pela força dos afetos. A cena em que os dois ficam nus, frente a frente, pela última vez, é dilacerante -todas as máscaras estão no chão.
Poeta dos sentidos e do indizível, Antonioni não teve a mesma sorte. Em 1985, um acidente vascular cerebral o impediu de continuar a filmar livremente. Os filmes que realizou depois disso não estão a sua altura. Sobram mais de 20 longas-metragens ou documentários feitos antes da perda da fala e raros roteiros não filmados.
O que se perde com o desaparecimento de Bergman e Antonioni? Uma certa idéia do que pode ser o cinema. Uma maneira única de ver o mundo, muitas vezes complexa e dolorosa, mas necessária e reveladora. Sem piedade, bons sentimentos ou sentimentalismo.
Não há, no entanto, razão para nostalgia. Foram vidas plenas, que deixaram uma rica representação de si próprias e, por extensão, de nós mesmos.
E se Bergman, pelo caráter extremamente pessoal de sua obra, não deixou seguidores, o mesmo não aconteceu com Antonioni. Wenders, Angelopolous, Atom Egoyan e Hou Hsiao-hsien que o digam. Sem esquecer aquele que melhor traduz, hoje, a relação entre tempo e espaço tão central à obra de Antonioni: Jia Zhang-ke. (WALTER SALLES)


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