São Paulo, Domingo, 06 de Fevereiro de 2000


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A revista inglesa "Granta" traz em seu novo número doze histórias que têm o amor como tema
Impossibilidades do coração

Arthur Nestrovski
especial para a Folha

É dor que desatina sem doer", diz Camões do amor. "É desatino que dói sem desatinar" parece uma definição mais apropriada para os vários amores retratados no novo número da revista "Granta". Um certo desconforto, um sonambulismo acordado, uma varredura dos afetos -tudo aqui será relembrado com esforço e controle, compondo afinal um panorama estranho dessa nossa estranha era do amor. Dos Estados Unidos à Turquia, da Líbia a Israel e Austrália, entre outros lugares, o "amor" recriado nessas ficções sugere menos "permissão" (como dita a etimologia) do que o contrário: compulsões, constrangimentos. Não há uma história de amor bem-sucedido, entre as doze. Malsucedido, ao que tudo indica, é o destino inelutável do amor na virada do milênio, seja nas relações amorosas eróticas, seja nas vicissitudes do romance familiar. Amantes, cônjuges e namorados, tanto quanto pais, mães, filhos, sobrinhos, tios, avós: todos parecem condoidamente atinados com as impossibilidades do coração. A começar pelo começo, um conto inédito de Raymond Carver (1938-88). Fora dos países de língua inglesa, dificilmente alguém diria que ele é "o contista mais amado do nosso tempo", como quer o organizador Ian Jack. Mas Carver é o modelo, por excelência, de certo tipo de prosa, muito praticado nas oficinas literárias, e vai-se tornando mais conhecido na esteira do filme "Short Cuts" (baseado em suas histórias). "Call If You Need Me" é um ótimo exemplo dessa ficção "incansavelmente polida... que não tem nada, ela mesma, das confusões que descreve", como disse John Updike.

Malogro previsível
Não é exatamente uma história de amor. A não ser que o fim do amor caiba nesse mesmo rótulo; e com ele o fim do casamento, a tentativa malograda de reparar o irreparável e a disposição para se atirar num novo previsível malogro. Epifanias -uma última noite, um maravilhamento acidental, esperança ou lembrança compartilhada- salvam, quem sabe, mas não curam a alma. Desde Platão que o amor tende a ser visto como uma força demoníaca, capaz de alçar a alma às esferas divinas, mas também de forçá-la a se rebaixar no sofrimento -o próprio e o dos outros. Se a paixão tem lugar no reino das possibilidades humanas é uma pergunta que tem acento especial no caso do amor interétnico, como se vê em Ruth Gershon. Pode-se argumentar que a responsabilidade começa no amor; mas o amor também pode acabar onde começa, e a passagem de volta a um mundo prosaico, a tristeza que toma conta de tudo, quando a paixão é cerceada (por si mesma? pelos outros?), vem descrita sem autopiedade nessa história de amor entre uma judia e um palestino. Vista como um todo, a coletânea faz jus à reputação da "Granta" como uma das publicações literárias mais influentes da atualidade. Foi a revista que revelou e/ou promoveu a arte de autores como Kazuo Ishiguro, Salman Rushdie, Martin Amis e Richard Ford, para não falar de outros ainda mais conhecidos (Calvino, Grass, Roth, Bellow). Entre os autores das "Love Stories", há os mais famosos (Carver, W.G. Sebald) e os quase desconhecidos (Jonathan Kaplan, escrevendo sobre os horrores do plantão cirúrgico durante o regime de apartheid na África do Sul, ou Keith Fleming, relembrando sua adolescência com o tio, o romancista homossexual Edmund White, ou Aleksandar Hemon, desfiando extravagâncias ucranianas da família de imigrantes).

Lições de desamor
Um lugar de destaque cabe ao mestre turco Ohran Pamuk, até hoje não traduzido em português. Romancista experimentado, Pamuk é o autor de uma das melhores histórias, "Famous People". As misérias de um irmão menor, tripudiado num jogo de figurinhas pelo maior, são narradas em contraponto com as angústias da mãe, no dia em que o pai abandona a família. Imensidades disparatadas de afeto são comparáveis, na escala das cicatrizes. Romances se abrem nos detalhes. E os detalhes se fecham com a perfeição da literatura, em que a forma tem força para desexplicar o conteúdo. Aparentemente separada do resto, a viagem de W.G. Sebald por Viena, Veneza e Verona faz ver com outros olhos esse compêndio de desamor e amor perdido. Aqui, como no extraordinário romance "Os Imigrantes" (a sair no Brasil), Sebald combina descrições reflexivas de paisagens com fotografias e outros registros "materiais" da Europa devastada pela lembrança -e o esquecimento- da catástrofe. A depressão é sua via do esclarecimento. E a melancolia, para esse narrador no fim da linha de si mesmo, uma modalidade de resistência.

Um lado sombrio
Tudo somado, o "lustro evanescente desse mundo, que a gente jamais se cansa de olhar", é como um lado sombrio de outra paisagem, relembrada ou sonhada. Essas histórias de amor impossível são como ruínas de uma fonte perpétua, no reino da memória ou da esperança. Escrever sobre o desamor, quem sabe, é a maneira de escrever sobre o seu contrário, sem soçobrar na repetição.
Lição final, quase banal: ao contrário do que se aprendeu lendo tantas histórias de amor, amor não é comum. A falta de amor é. Palavra de cautela para os abençoados: amor é raro.


Arthur Nestrovski é professor de literatura na pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e autor de "Ironias da Modernidade - Ensaios sobre Literatura e Música" (Ática), entre outros.


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