São Paulo, domingo, 06 de fevereiro de 2005

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De Dante a Yeats e de César Vallejo a Pablo Neruda, a língua materna se sobrepõe à língua nacional e se torna a fonte inesgotável de inspiração para os escritores

O código secreto

JUAN JOSÉ SAER
COLUNISTA DA FOLHA

O fato que aqui vou comentar não carece de exemplos ilustres: os poetas latinos nutriram-se da cultura grega e, embora tenham adotado praticamente todos os gêneros literários gregos e seus leitores habituais conhecessem o grego tão bem quanto eles, sempre os cultivaram em latim.
No século 13, o famoso mestre zen-budista japonês Dogen Zenji [1200-1253] nutriu-se exclusivamente da cultura chinesa, mas escreveu os 95 sermões de seu tratado "Shobogenzo - Olho e Tesouro da Verdadeira Lei" em japonês, tosca língua vulgar imprópria para a meditação, segundo os preconceitos da época. "Nós, os vulgares, não nascemos no Império do Meio (China), e nosso país é uma remota borda do fim do mundo", escreve ele em seu tratado, mas em japonês. E o mais ilustre de todos, Dante [1265-1321], que dispensa apresentações, fez do dialeto toscano a mais universal das línguas poéticas.


O verde da relva não é um mero adjetivo, mas a vivência simultânea dos mil tons de verde


Depois de fazer um ardente elogio da língua gaélica, o grande poeta irlandês W.B. Yeats [1865-1939] esclarece: "Vocês se perguntarão por que razão, apesar deste elogio do gaélico, escrevi toda minha obra em inglês. Simplesmente porque, embora o gaélico seja minha língua nacional, o inglês é minha língua materna".
No Prata, no início do século 19, um exemplo muito modesto, mas de conseqüências decisivas para nossa literatura, mostra que a escolha da língua materna como veículo de expressão no contexto de uma cultura literária que dela prescinde é um motivo constante na história das letras. Refiro-me à breve obra de Bartolomé Hidalgo (1788-1822), o pioneiro da poesia gauchesca: das 150 páginas que, na caprichada edição da Biblioteca Artigas, de Montevidéu, constituem sua obra completa, as primeiras 60 se debatem no inútil esforço de imitar a retórica neoclássica que naqueles anos dominava as letras hispânicas, tanto na corte quanto nas colônias.

Retórica vazia
São imitações sem vida de uma retórica vazia, sem filiação empírica nem referências reconhecíveis. Até que, em 1816, aparece o primeiro "Cielito de la Independencia", no qual, partindo de certas canções populares, sua linguagem poética se transforma radicalmente, se revigora e regenera.
Os "Cielitos" e os "Diálogos Patrióticos" de Hidalgo, marcam a estréia literária da língua rio-platense, que, em certo sentido, é e não é o espanhol. O espanhol seria o marco estrutural de referência no qual a fala rio-platense, com o conglomerado histórico, multicultural e plurilíngüe que o formou -aborígine, castelhano, português, andaluz, galego e, mais tarde, imigratório-, obtém sua coloração específica.
Claro que essas considerações a posteriori não participaram das intenções de Hidalgo: soldado e funcionário militar durante as guerras de independência, seu objetivo era comentar em versos populares, muitas vezes festivos, as vicissitudes da guerra para, com essa poesia oral, incitar os gaúchos, em sua imensa maioria analfabetos, a se alistarem na luta contra os espanhóis. Ninguém ignora esse detalhe, mas a questão é outra: a imperiosa tendência da língua, no que ela tem de mais íntimo e privado, a nutrir permanentemente a literatura e produzir figuras universais a partir de uma estrita e subjetiva privacidade do uso lingüístico.
No caso de Hidalgo e do gênero gauchesco, o fato é evidente. A simples fruição verbal das formas populares -em certo sentido, privadas, não consagradas literariamente- percorre toda a história da poesia gauchesca, desde o primeiro "Cielito", de 1816, até "La Vuelta de Martín Fierro" [A Volta de Martín Fierro], de 1879. O impulso inicial da gauchesca, porém, com sua malícia jocosa, mas sempre envolta numa atmosfera de desafio e violência, já no "Martín Fierro" de José Hernández [1834-86] surge a serviço de uma construção narrativa e de uma intenção poética mais ambiciosas, cristalizadas em situações e personagens novos e autônomos. O verso festivo torna-se ironia trágica, e o desafio brincalhão, ameaça, sangue, morte.
Quando adotava o estilo neoclássico, Hidalgo desperdiçava suas intenções nos moldes de uma retórica tão petrificada que nela tudo estava dito de antemão de forma convencional, sem que do texto surgisse nenhuma idéia, sentimento, emoção nem expressão novos.
Seus poemas patrióticos em linguajar neoclássico nem sequer são poeticamente deploráveis. Pior ainda, são abstratos e sem vida. É quando ele assume a privacidade da fala que seus textos se tornam vivos e fecundos. Os mesmos temas abordados por duas retóricas distintas são objetivamente, na página, temas distintos, contraditórios, inconciliáveis.

Uso doméstico
No tempo de Hidalgo, a fala popular rural era privada, no sentido de que não se previa seu uso literário, intelectual ou filosófico. Era, para dizê-lo de algum modo, de uso doméstico. Em qualquer tradição literária é possível verificar a evolução dos gêneros, das linguagens e das formas na percepção imediata dessa intrusão renovadora de estilos, léxicos, expressões até então considerados não-literários. Como revela em uma carta a Balzac de 3 de outubro de 1840, Stendhal, enquanto escrevia "A Cartuxa de Parma", tinha por hábito ler diariamente duas ou três páginas do Código Civil, para "ser mais natural".
Esse ideal de prosa narrativa assim como o fluxo verbal joyciano, que tudo arrasta em sua corrente, exemplificam por diferentes caminhos essa necessidade que toda literatura tem de se renovar de tempos em tempos, anexando zonas da língua aparentemente destinadas a permanecer fora dela para sempre.
A privacidade em sentido restrito, o uso pessoal da língua, é o jardim secreto em que cada um cultiva suas espécies preferidas. Nesse espaço íntimo, as leis do idioma se relativizam, e a infância que persiste no adulto, o devaneio, a sonolência por vezes incitam a torcer o pescoço das palavras, assim como outros torceram o da retórica ou o do cisne.
A acumulação associativa única que o uso pessoal das palavras produz ao longo da existência dá a cada uma delas o teor de uma peça única que reúne, para além do significado restrito que as gramáticas lhe atribuem, a paleta multicor de conotações recolhidas em seu ir-e-vir pelos campos da experiência. O verde da relva não é um mero adjetivo, mas a vivência simultânea dos mil tons de verde percebidos e armazenados na memória.
Essa intimidade com as palavras só é possível no âmbito da língua materna. Para além da correção gramatical, da pertinência conceitual, nas zonas porosas e ambíguas da linguagem, vizinhas do fantasma e do sonho, da interpretação subjetiva e da materialidade pura do signo, em seus infinitos usos não-literários, a língua materna alimenta suas secretas e inesgotáveis reservas de poesia.

Liberdades insólitas
Como exemplo, bastam as três grandes figuras da vanguarda latino-americana: [o chileno Vicente] Huidobro [1893-1948], [o peruano César] Vallejo [1892-1938] e [o chileno Pablo] Neruda. Podemos considerar a poética de cada um deles como a conseqüência extrema de um uso privado da linguagem. "Trilce", "Altazor", "Residencia en la Tierra", livros tão diferentes entre si, têm no entanto esse ponto em comum, verificável à simples vista, qual seja, as liberdades insólitas que seus autores foram capazes de tomar em relação às normas, lingüísticas e gramaticais em geral e retóricas em particular, que regulavam a expressão poética de seu tempo.
Huidobro, que escreveu poesia em duas línguas, castelhano e francês, só alcança uma intensa invenção verbal quando trabalha em sua língua materna, como se o francês, sua língua de adoção, só lhe permitisse exercer um engenho limitado, mais artesanal que verdadeiramente poético, como o latim de Dante ou a retórica neoclássica de Hidalgo. Em francês, não passa de um epígono de [o poeta francês Pierre] Reverdy [1889-1960]; em castelhano, é o mágico inventor de "Altazor", inesgotável prestigiador do idioma.
Em "Residencia en la Tierra", o discurso poético muitas vezes parece não ter destinatário. O solilóquio torna-se tão vagamente alusivo que por momentos chega a ser incompreensível.
Mas, apesar da obscuridade da anedota, a emoção poética flui sem interrupções. As imagens, as associações parecem arbitrárias, desconexas, mas se integram numa paisagem rítmica e verbal de uma coerência exemplar do princípio ao fim do livro. O texto brota diretamente, sem mediações conceituais, dessa zona crepuscular em que a linguagem é branda e maleável, e as associações se libertam das correspondências lógicas entre as palavras de tal maneira que substantivo, adjetivo, verbo e praticamente todas as demais funções gramaticais são transgredidas mediante o uso privado da linguagem.
Mas é César Vallejo quem mais longe levou essa intrusão da língua privada na poesia. A obscuridade vallejiana provém da matéria subjetiva bruta que, sem explicações nem mediações, o autor incorpora ao poema. O leitor experimentado dessa poesia única acaba por reconhecer as evocações íntimas -lembranças, fragmentos de lembranças, imagens despedaçadas- que entram em cada poema e acabam tornando-se procedimentos, elementos construtivos, aposta retórica.

Lembrança infantil
Depois de repetidas leituras, o hermetismo cede, como uma fotografia que se vai revelando, sem no entanto atingir uma total nitidez, e nela se reconhece uma cena de hospital, uma lembrança infantil, um instantâneo das ruas, percebidos pelo leitor de maneira imperfeita devido à própria vagueza das imagens na memória do poeta. O essencial do poema não é a cena de rua, e sim a vagueza íntima que se tornou matéria poética.
A intrusão da língua privada, porém, nem sempre é hermética na poesia de Vallejo. Um de seus mais famosos poemas, o de número 23 de "Trilce", uma evocação da mãe morta, começa assim: "Tahona estuosa de aquellos mis bizcochos/ pura yema infantil innumerable, madre". Por três vezes a palavra "madre" serve para invocar a mãe no poema.
Mas no final, quando a emoção atinge sua máxima intensidade, a palavra íntima, doméstica, infantil rebenta no último verso: "Cuando tú nos lo diste/ ¨di, mamá?". "Madre" à literatura; "mamá" irrompe de um fundo pré-literário e, até sua dilacerante aparição na obra singular de Vallejo, parecia desterrada de antemão de toda poesia trágica.

Juan José Saer é escritor e ensaísta argentino, autor de, entre outros, "O Enteado" (ed. Iluminuras). Ele escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Sergio Molina.


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