São Paulo, domingo, 06 de março de 2005

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Ponto de fuga

O vôo de Ícaro

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

O Aviador", filme de [Martin] Scorsese, é falsamente biográfico. Não que os fatos ali narrados sejam mentirosos. Mas da biografia decola (com perdão do trocadilho) uma trajetória cuja verdade se fundamenta no artifício. As imagens mostram tons de cromo e de esmalte do antigo "technicolor". Howard Hughes, milionário americano, tem o rosto de Leonardo DiCaprio, sem semelhança com o do personagem "real". Cate Blanchett é a máscara de Katharine Hepburn [1907-2003], e os bigodes de Errol Flynn [ator australiano, 1909-1959] estão sobre a cara de Jude Law. A ilusão da verdade cede o passo à verdade da representação.
O percurso de Hughes só pode ser percebido como lenda, como fábula, e, quando a vida imita a arte, termina por se transformar em arte. No filme tudo é irreal, mas isso não importa, já que o irrealismo é alucinante de convicção. Hughes adorava os aviões, o cinema e o sexo, campos do sonho. Hughes temia os micróbios, as multidões, as traições, sombras do pesadelo. O filme de Scorsese é feito de sonho e de pesadelo. Hughes nasceu em 1905, morreu em 1976. Scorsese toma apenas 20 anos dessa trajetória, de 1927 a 1947.
Salvo por uma breve evocação, deixa de lado a infância e a maturidade. Afasta assim as origens da fortuna, a militância macarthista, o envolvimento no escândalo de Watergate, a morte patética. Para, como cristão angustiado que é, transformar a lenda em apólogo: num mundo suntuoso, um "golden boy" dominador graças a seu dinheiro e sua energia visionária, é habitado por demônios interiores, que buscam aniquilá-lo. Luta interna, luta na alma, do bem contra o mal. Mal infiltrado e inevitável, que Leonardo DiCaprio carrega em si com uma leveza de anjo.

Asas
DiCaprio nota, no filme de Scorsese, que só não se preocupa com dinheiro quem já o tem. Hughes nasceu milionário, é verdade, mas pôs os desejos grandiosos acima da fortuna. Lembra, nesse ponto, Assis Chateaubriand [1892-1968], que, se não veio em berço de ouro, ficou rico, buscando outra coisa, porém. O dinheiro foi, para Chateaubriand, um instrumento, não um fim. Sua paixão era o poder, um poder imenso, acima das instituições, maior que os dos políticos ou dos banqueiros.
Já há tempos Fernando Morais escreveu uma biografia à altura do personagem (Cia. das Letras). Livro de referência, faz história brasileira em modo estimulante. Com visada antropológica, varre os ambientes e as relações humanas. Numa passagem, Chateaubriand vê quase perdido o acervo do Masp [Museu de Arte de São Paulo] por falta de pagamento. Os quadros haviam se valorizado muito; os credores tinham todo o interesse em pôr-lhe a corda no pescoço. Ameaçavam seqüestrar a coleção, que estava sendo exibida em Nova York.
Extraordinária a cena na qual suplica a Juscelino [Kubitschek] que o ajude: "Se eu estivesse interessado num bom negócio, poderia vender agora, por telefone, aquela coleção por um preço 20 vezes superior a essa dívida, pagava ao banco e enfiava uma fortuna no bolso. Se eu não tivesse espírito público, fazia isso...".
Sabia chantagear os ricaços, mas não tinha a vaidade do dinheiro. Sem ser colecionador, criou o mais importante museu de arte da América Latina. Fernando Morais conta que a "Time" tratou Chateaubriand de Robin Hood: "O homem que rouba Cézanne dos ricos para dar aos pobres...".

Aerofagia
Em modos e proporções diferentes, Hughes e Chateaubriand amavam os aviões. O fascínio do vôo, que era certamente mais físico antes que surgissem os grandes jatos, fez vibrar os artistas modernos do século 20. Entre eles, Max Ernst [1891-1976], que deixou uma série de "Jardins Engole-Aviões" ("Jardins Gobe-Avions"), obras-primas de 1935. São pinturas em que plantas monstruosas parecem dissolver formas aerodinâmicas, vindas de máquinas voadoras. "Florações únicas", como escreveu André Breton, numa "efervescência radiosa da destruição".

Vão livre
De Ernst, o Masp possui "Bryce Canyon Translation". O quadro transfigura uma falésia vermelha em esculturas oníricas, sob a lua que paira num céu esverdeado.


Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br


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