São Paulo, domingo, 06 de março de 2005

Texto Anterior | Índice

+ história

Biografia mostra como o britânico James Aitken se transformou, no século 18, no primeiro terrorista e incendiário a cometer atentados em favor da independência de uma potência estrangeira, os EUA

Fogo amigo

JESSICA WARNER

James Aitken, também conhecido como James Boswell ou James Hill ou James Hind, nasceu em Edimburgo em 1752, e tinha 11 irmãos. Ele adquiriu o ofício de pintor de paredes, mas não encontrava trabalho e vagou pelo país procurando emprego, invadindo casas e batendo carteiras.
No percurso -apesar de um período de dois anos tentando encontrar trabalho nos EUA, sem sucesso-, ele se tornou um defensor apaixonado da Revolução Americana. E, em conseqüência, se transformou no primeiro terrorista britânico a cometer atos de terror em nome de uma potência estrangeira.
Aitken era um homem comum, de mau comportamento. Invadia as casas das pessoas e assaltava diligências. Quando trabalhava -e o fazia o mínimo possível-, chegava atrasado e roubava do empregador. Mas durante quatro meses agitados, em 1776 e 1777, ele ocupou a mente de todos. [O rei] George 3º [1738-1820] recebia informes diários de seus ministros. Os jornais publicavam matérias sensacionais, algumas verdadeiras, outras não.


Uma grande catástrofe foi evitada, mas a cidade ficou tensa e alerta


O Parlamento aprovou às pressas uma lei que suspendeu o habeas corpus; afirmava-se que a medida se justificava quando um país estava em guerra e havia "traidores desconhecidos do público; talvez (...) incendiários, agentes secretos dos EUA espreitando neste reino...". Os cidadãos formaram patrulhas, convencidos de que nem eles nem seus bens estavam em segurança.
Aitken causou tudo isso, provocando incêndios. Tentou queimar duas cidades: primeiro, Portsmouth e, depois, Bristol. Se não fosse detido, teria queimado todos os cais que mantinham a Marinha real flutuando; e, se tivesse sucesso a Guerra Revolucionária Americana poderia ter terminado em 1777, e não em 1783.
Como fazem os terroristas, Aitken decidiu atacar onde pudesse causar maior prejuízo. Seu primeiro ato de terror foi queimar as docas de Portsmouth em 1776, mas só a casa de cordas foi destruída. Depois veio a cidade de Bristol.
Aitken chegou a Bristol em 13 de janeiro de 1777 e passou dois dias vigiando de perto os navios mercantes que ancoravam. À noite ele fazia caminhadas, familiarizando-se com as ruas da cidade e buscando outros alvos. Poderia ter passado completamente despercebido se não tivesse repetido o mesmo erro que cometeu em Portsmouth: ateou fogo a seu quarto de estalagem. Foi enquanto queimava uma de suas camisas que chamou a atenção de um homem.
Os dois se reconheceram imediatamente -tinham se encontrado em Portsmouth-, e Aitken fugiu, deixando para trás uma trouxa que despertou ainda mais suspeitas. Nela estavam sua camisa chamuscada, uma quantidade de "combustíveis", várias latas e o mais recriminador, sua nova "pequena biblioteca", que consistia na "Henriade", de Voltaire, [1694-1778] e dois panfletos pró-americanos. Mas ninguém o perseguiu, e em pouco tempo ele recobrou a coragem. Atacou na noite do dia 15, por volta de meia-noite.

Reação imediata
Movendo-se livremente pela cidade deserta, colocou dispositivos incendiários caseiros em três navios mercantes: o "Savanna la Mar", o "Fame" e o "Hibernia". Ainda despercebido, invadiu um armazém pertencente a um droguista, esperando usar seu estoque de óleos e substâncias voláteis como combustível. Ali depositou mais um dispositivo incendiário caseiro, e depois de acendê-lo voltou para os três navios, incendiando-os em rápida seqüência. Confiando que havia dado início à "destruição de toda a cidade ou pelo menos da parte mais importante dela", ele deixou Bristol antes do amanhecer.
Assim que partiu, os cidadãos acordaram com a notícia de que haviam ocorrido incêndios em vários locais, e que em todos eles combustíveis haviam sido deixados para trás.
Estes foram encontrados porque os incêndios não se alastraram. Uma grande catástrofe foi evitada, mas de todo modo a cidade ficou tensa e alerta. A reação dos prejudicados foi imediata.
Cada um ofereceu uma recompensa pela prisão e condenação dos criminosos (o fato de os incêndios terem surgido em vários locais mais ou menos ao mesmo tempo levou todos a acreditarem que fossem obra de vários homens). Alguns dias depois, quando Aitken já havia provocado mais incêndios em Bristol, o próprio rei interveio, oferecendo a soma principesca de mil libras por informações que levassem à prisão e condenação dos criminosos.
Mas Aitken voltou a Bristol e redobrou seus esforços. Depois de várias outras tentativas de incendiar a cidade, sempre agindo à noite, ele finalmente conseguiu causar sérios danos em 19 de janeiro de 1777.
Foi o último incêndio que Aitken provocou. Os vigilantes, com energia redobrada, estavam deixando-o nervoso, e ele partiu de Bristol naquele dia, 19 de janeiro, e nunca retornou. Assim como em Portsmouth, a população colaborou para extinguir os fogos, e o clima ameno favoreceu seus esforços. Não houve perda de vidas e nenhum navio foi seriamente danificado.

Dano psicológico
Quando Aitken viu isso, ficou terrivelmente desapontado. Os incêndios provocados na manhã do dia 19 foram os mais dispendiosos, provocando prejuízos na faixa de 15 mil libras, segundo uma estimativa. Outra avaliação os situou em apenas 5 mil libras. O verdadeiro dano foi psicológico. Muito depois de Aitken partir, os cidadãos de Bristol continuavam acreditando que nem eles nem seus bens estavam em segurança. "Estamos muito confusos", escreveu um correspondente na manhã do dia 19.
Com exceção de dois suspeitos, todos os demais foram libertados depois do interrogatório. Dois outros, entre eles um marinheiro americano, foram apresentados por um homem identificado somente como Perry, mas também foram libertados. Somente então as autoridades locais se concentraram em Aitken.
Quase nada sabiam sobre ele, somente que era "um estranho que se hospedou no Pithay por uma ou duas noites, mas que agora não pode ser encontrado". Mesmo então, continuaram a perseguir outros suspeitos. Ninguém, eles raciocinavam, teria provocado tantos incêndios em tantos lugares diferentes.
Aitken havia partido, mas a cidade continuou sendo vítima de estranhos eventos. Logo havia imitadores, que só poderiam ser arruaceiros tóris [conservadores]; era o único grupo que poderia lucrar dando a impressão de que criminosos agindo em nome dos EUA continuavam livres e tão perigosos quanto antes.
Para os tóris da cidade, os incêndios foram um presente. Aproveitando o momento, o prefeito e seus aliados informaram que os incêndios eram obra de "pessoas enviadas pelo Congresso da América para perturbar a Inglaterra"; por implicação, qualquer um que simpatizasse com os EUA era cúmplice dos atos que aterrorizavam os cidadãos. Isso também se aplicava aos que se recusaram a assinar uma petição ao rei para agir com firmeza.
No mesmo dia em que Aitken atacou Bristol pela primeira vez, outro de seus dispositivos incendiários foi descoberto por acaso em Portsmouth. Com isso instalou-se o pânico geral, começando por Whitehall [palácio real inglês à época]. "A administração está extremamente alarmada com os relatos das últimas conflagrações malignas premeditadas em Bristol", relatou o "General Evening Post". "Vários conselhos foram realizados em Buckingham e Sua Majestade expressou grande ansiedade pela segurança da cidade e da parte leal dos habitantes, que parecem ser objetos inocentes dessa vilania deliberada".
A ligação entre os dois casos teve outra conseqüência: confirmou na mente de muitas pessoas que os incêndios eram obra de um grupo organizado e perigoso. A suspeita recaiu nos americanos e seus simpatizantes. Os incêndios foram obra de "nossos inimigos", insistiu um jornal. "Nada é mais certo que suas intenções diabólicas", acrescentou.
Os americanos eram os principais suspeitos, mas algumas pessoas acreditavam que agentes franceses ou espanhóis tinham provocado os fogos. Eram os suspeitos de sempre, tendo sido acusados por um incêndio que destruiu uma casa de cordas em Portsmouth em 1770.
O verdadeiro beneficiário desses eventos foi lorde Germain, o secretário colonial e inimigo ferrenho da independência americana. Ele vinha esperando o momento certo para apresentar uma lei que permitisse ao ministério deter combatentes americanos sem acusá-los. Aitken lhes deu a oportunidade perfeita.

Invasão de domicílio
Os principais alvos da "Lei de Alta Traição Americana" eram os "privateers" [navios privados que atuavam como mercenários dos Estados Unidos], mas a lei também causou grande ansiedade para os americanos que viviam no Reino Unido. Eles temiam, com certa razão, que a lei fosse usada contra eles. Sua posição tornou-se ainda mais delicada devido a rumores sobre incendiários americanos, e, em 7 de fevereiro, Germain, confiando no apoio do país, apresentou sua lei.
Em 24 de fevereiro a lei foi aprovada por grande maioria. No caso de Aitken, acabou sendo desnecessária.
Quando ele foi preso mais tarde, havia evidências mais que suficientes para acusá-lo de invasão de domicílio, e foi sob essa acusação que o detiveram, enquanto seus crimes mais sérios eram investigados. Enquanto isso, novos recursos foram aplicados na investigação, mas somente na terceira semana de janeiro o Conselho Naval divulgou uma descrição do homem que ainda era conhecido como John, o Pintor. E ofereceu uma recompensa de 50 libras por sua captura.
Mas a investigação estava fracassando, e os ciúmes profissionais se tornavam um problema real e crescente. Foi nessa altura que o almirantado interveio, assumindo o lugar do Conselho Naval.
Menos de uma semana depois dos incêndios de Bristol, os lordes do almirantado convocaram o único homem na Inglaterra que sabia conduzir uma investigação criminal adequada: sir John Fielding, o mais famoso magistrado de Londres. Ele lhes disse exatamente o que deviam fazer. O conselho de sir John era a própria simplicidade. A melhor maneira de solucionar um crime era oferecer "uma recompensa adequada" -e não as irrisórias 50 libras propostas pelo Conselho Naval.

Criminoso incomum
Os lordes fizeram isso, e ofereceram mil libras por informações que levassem à detenção e condenação dos responsáveis pelo incêndio da casa de cordas em Portsmouth. O almirantado também colocou anúncios nos jornais. Menos de uma semana depois da publicação da recompensa, Aitken estava sob custódia, identificado por dois homens cujos caminhos ele havia cruzado.
Aitken foi enforcado diante dos muros do cais de Portsmouth, no patíbulo "mais alto já erguido na Inglaterra". Segundo uma estimativa, 20 mil pessoas se reuniram para vê-lo morrer. Foi um público e tanto -Portsmouth e as cidades vizinhas tinham uma população combinada de cerca de 13 mil habitantes permanentes, à época.
Afinal, Aitken foi tratado como qualquer criminoso. Mas não era um criminoso comum, e seus contemporâneos não encontravam palavras para descrever seus crimes. Para a maioria dos britânicos ele era simplesmente um "incendiário".

Palavra ausente
No "Dicionário da Língua Inglesa", de Johnson, um incendiário é "uma pessoa que incendeia casas ou cidades por malícia ou para roubar". Mas um incendiário também pode ser "alguém que inflama facções ou promove discussões". Ambas as definições não são suficientes. Aitken agiu por malícia, mas não como Johnson a entendia.
A palavra tampouco capta a dimensão mais ampla e sinistra de uma trama que visava não apenas docas e molhes, mas também os cidadãos que viviam e trabalhavam em suas proximidades. Sua disposição a sacrificar não-combatentes situa seus atos além do domínio da mera sabotagem.
Foi aqui que as palavras falharam. "Terrorismo" e "terrorista" não aparecem no dicionário de Johnson. As duas palavras só entraram na língua no final do século 18, durante o reinado do Terror jacobino [na Revolução Francesa] e, em sua primeira encarnação, referiam-se a atos de terror cometidos em nome do Estado -e não contra ele.
Os contemporâneos rapidamente esqueceram Aitken. Não acreditavam seriamente que eles ou seus descendentes teriam de acrescentar esses crimes à sua compreensão do mundo. John Fielding, filho do romancista Henry Fielding, falou por sua geração quando se declarou sem palavras para descrever "um crime de natureza tão atroz e incomum". Ele achou "impossível acrescentar ao crime qualquer epíteto que descreva sua enormidade", embora tenha se consolado com o pensamento de que aquela fora "a primeira instância de sua existência, e espero em Deus que seja a última". Infelizmente, não foi.

Jessica Warner é psiquiatra e pesquisadora do Centro de Dependência e Saúde Mental do Canadá. Este texto faz parte de seu livro "John, the Painter -Terrorist of the American Revolution" [John, o Pintor - Terrorista da Revolução Americana, ed Four Walls Eight Windows) e foi publicado no "Independent".
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.


Texto Anterior: + cultura: A fotografia suspeita
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.