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+ Sociedade
PROFESSOR DE SOCIOLOGIA DO ESPORTE DISCUTE SOLUÇÕES
PARA COMBATER A VIOLÊNCIA NOS ESTÁDIOS
E COBRA "RESPONSABILIDADE MORAL" DOS CLUBES
O urro das torcidas
Os clubes precisam se relacionar com o seu ambiente -prefeituras e associações civis-, em vez de focarem no marketing
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DO "LE MONDE"
O sociólogo francês
Patrick Mignon,
na entrevista abaixo, comenta a violência nos estádios
de seu país, onde bandeiras racistas causaram escândalo no
mundo esportivo -como em
jogos do PSG (Paris Saint-Germain)-, e a compara com a de
outros países europeus, como o
Reino Unido e a Alemanha.
Professor e pesquisador na
Escola de Altos Estudos em
Ciências Sociais (Paris), Mignon denuncia a tolerância com
que arruaceiros e xenófobos
são tratados.
PERGUNTA - Quem é o responsável
pela segurança nos estádios? Os organizadores (a Federação Francesa
de Futebol), a polícia?
PATRICK MIGNON - Os organizadores são os responsáveis pela
segurança, mas as revistas são
feitas pela polícia, pois só ela
está habilitada a fazê-las quando é o caso de ir mais fundo. São
responsabilidades diferentes.
PERGUNTA - É o caso de punir financeiramente ou mesmo dissolver as
torcidas organizadas?
MIGNON - Há várias questões
envolvidas. A primeira é saber a
natureza do delito.
Se há arruaça e violência, há
um delito caracterizado: golpes
e ferimentos. Se, além disso, há
um ataque contra uma pessoa
negra ou estrangeira, o delito é
mais propriamente de natureza racista. Se uma bandeira faz
referências explicitamente degradantes a uma categoria racial particular, também há um
delito bem caracterizado.
Um outro problema é saber
quem deve ser punido, e como.
Depois de identificar os indivíduos que cometeram o ato,
seria necessário ainda averiguar se, por exemplo, alguma
torcida organizada esteve por
trás de tudo, e só então buscar a
punição adequada.
Na Inglaterra, o problema se
põe de modo diferente. Lá, definiu-se o delito geral de "offence", que diz respeito a tudo que
possa ter caráter ofensivo ou
injurioso. O termo inglês é
"abusive" e o significado é claro: um excesso que visa a degradação de outrem.
Definido o delito, seguiram-se as multas, as proibições. Não
havia, na Inglaterra, torcidas
organizadas como as que há na
França, não havia torcidas organizadas a serem dissolvidas.
PERGUNTA - Esse tipo de proibição
não é uma arma muito utilizada pelas autoridades francesas, em comparação com a Inglaterra. Por quê?
MIGNON - Há dois tipos de proibição: a judicial, proferida por
um juiz, e a administrativa.
A primeira pode ser bem
mais longa, de vários anos até.
O problema é que ela pressupõe um procedimento judicial
em que se devem exibir provas
que justifiquem a sentença de
proibição por vários anos.
A decisão administrativa é de
ordem preventiva. Ela visa a
distanciar dos estádios pessoas
consideradas perigosas. Mas,
por essa razão, ela é de curto
prazo, pois não se baseia numa
investigação, numa acumulação de provas.
A solução seria multiplicar as
proibições judiciais, fundadas
num processo legal, enquanto a
decisão administrativa é necessariamente mais frágil do ponto de vista da legalidade.
Ao mesmo tempo, há mais
um fator a acrescentar: mesmo
no plano administrativo, há dificuldades ligadas à cooperação
entre os diferentes serviços de
polícia e à idéia de que certos
indivíduos devem ser mantidos
fora dos estádios durante a interdição administrativa.
PERGUNTA - Quais são os vínculos
entre os clubes e os torcedores?
MIGNON - É uma questão interessante e difícil de responder.
1) Não há vínculo, pois em geral
as organizadas se definem contra o clube, representam a oposição ao clube, no que diz respeito ao preço das entradas, ao
calendário de partidas, ao comportamento da equipe etc.
2) Ao mesmo tempo, as torcidas são necessárias aos clubes.
Por quê? Porque as torcidas radicais mobilizam um público
importante, entusiasta e fiel.
Para muitos clubes, as organizadas representam a torcida
que mais apóia o time.
3) Essa importância que as
organizadas foram adquirindo
lhes deu algum poder político
nos clubes. São um grupo de
pressão que se manifesta por
greves, manifestações de hostilidade ao treinador, aos jogadores, aos dirigentes etc.
Os clubes são forçados a ter
relações de negociação ou de
compromisso com esses grupos de torcedores.
4) Uma das conseqüências é
que, em certos casos, os clubes
sustentam financeiramente,
por via direta ou não, essas torcidas, facilitando seus deslocamentos, auxiliando na realização de manifestações.
Esse é, ao mesmo tempo, um
modo de manter relações não
conflituosas com os torcedores.
Isso pode chegar a casos extremos, como em Marselha, onde
Bernard Tapie, quando presidente do Olympique, entregou
aos torcedores a gestão das entradas para as arquibancadas
que eles ocupavam. Em Marselha, uma torcida radical recebe
um certo volume de entradas
para o ano inteiro e se encarrega de comercializá-lo.
Mas também pode acontecer, como parece ser o caso no
PSG, que antigos hooligans
montem empresas de segurança que vendem seus serviços
para as partidas de futebol.
PERGUNTA - Sabe-se que a arquibancada Boulogne [no estádio Parc
des Princes, em Paris] é a mais violenta e racista. Por que as autoridades não fazem nada a respeito?
MIGNON - Para começar, não é
bem verdade, pois desde os
anos 80 surgiram muitas leis
para combater o racismo e a
violência. Mas, vejamos, por
que persistem os mesmos problemas? Por várias razões.
A primeira é que os atos violentos ou racistas não são realmente obra de toda a arquibancada. São obra de elementos
que não devem passar de 3% ou
4%. Uma minoria.
A questão é como agir contra
esses indivíduos. É preciso levantar provas, testemunhos,
dar início a um processo etc. E
nem todo mundo quer testemunhar e se ver envolvido num
processo.
Por outro lado, às vezes parece preferível saber que as pessoas mais turbulentas e perigosas estão num lugar bem identificado, e não à solta. Em termos de controle, é preferível
saber que os elementos perigosos estão no Parc des Princes
do que deixá-los sair pela noite
parisiense.
Finalmente, sucessivos dirigentes de clubes como o PSG fizeram erros de cálculo em relação a racistas e a hooligans, pensando que mais valia integrá-los à gestão dos torcedores,
o que no final apenas prolongou o problema por muitos
anos. Houve uma dose de tolerância. O problema parecia
muito difícil de resolver.
A questão central, para um
clube de futebol, é como arrecadar fundos para montar um
time. Todos os outros problemas são complicados, ninguém
sabe o que fazer e acaba por
"deixar estar".
É preciso insistir: problemas
dessa ordem precisam de soluções policiais, penais, na medida em que há delitos inaceitáveis; mas é igualmente necessário que os clubes e o mundo do
futebol em geral se envolvam. E
aí voltamos à idéia da responsabilidade social ou moral dos
clubes diante do futebol e da
sociedade.
PERGUNTA - Por que algumas torcidas são mais violentas que outras?
MIGNON - Vale para os torcedores o que vale para os indivíduos em geral. Há pessoas mais
violentas que outras. Mas, se
entendi bem a pergunta, a
questão é: por que os torcedores de certos times têm a propensão a serem mais violentos.
A meu ver, há razões específicas para o que acontece em Paris e em Marselha. A primeira é
que Marselha e Paris têm clubes com grande número de torcedores. São também clubes
com forte competição interna
entre os torcedores.
Em Paris, houve essa longa
influência de elementos ativos
de extrema direita e de grupos
de hooligans.
Já em Marselha, há a idéia de
que a cidade é um caso único na
França, de que é uma cidade fora do território francês. E a violência que você menciona é
particularmente presente entre as equipes de Marselha e
Paris, mais do que entre Marselha e Bordeaux ou Marselha e
Toulouse, por exemplo.
Em todos os clubes, há elementos mais violentos que outros, que preferem ser violentos a ser pacíficos. Às vezes por razões ideológicas, mas nem
sempre.
PERGUNTA - O sr. fala de responsabilidade moral ou social dos clubes
pelo comportamento de seus torcedores. Mas o que os clubes podem
fazer de concreto para evitar esses
excessos?
MIGNON - Há muitos anos preconizo a criação, no interior
dos clubes, de departamentos
voltados para os torcedores, cuja missão principal consistiria
num trabalho permanente de
relacionamento. Com uma dimensão de trabalho educativo,
preventivo, como acontece na
Alemanha.
Tudo isso para que um clube
de futebol seja tanto um fator
social e cultural de uma cidade
ou região quanto uma empresa
de espetáculos cuja meta essencial é rentabilizar investimentos. Os clubes precisam se
relacionar com o seu ambiente,
com as prefeituras, com as associações civis que trabalham
para desenvolver as relações
sociais e lutar contra o racismo.
Os clubes poderiam dar destaque a isso, em vez de focar no
marketing. Há meios de combater os radicais. Mas a luta não
seria fácil, porque se trata de
torcedores poderosos.
Outro ponto importante, que
já foi destacado: os radicais
também têm responsabilidade
social e moral. É perfeitamente
normal que alguns elementos
radicais tenham também idéias
políticas.
Mas, na medida em que os radicais querem defender um futebol que seja popular, acho
que deveriam ser bem mais
atuantes na luta contra a violência e contra as formas de racismo e xenofobia.
Sobretudo, penso que, antes
de demonstrar solidariedade
para com outros torcedores radicais, os radicais deveriam se
mostrar solidários com todas
as pessoas que amam o futebol,
que vão às partidas e que partilham dessa idéia de um futebol
popular, sem racismo, xenofobia ou violência.
Digo isso porque há uma forte tendência, entre os radicais,
a privilegiar a união entre radicais contra o mundo do futebol,
o Estado, os torcedores não-radicais -quando se poderiam
criar vínculos com as pessoas
de boa vontade.
PERGUNTA - Deve-se seguir a Inglaterra e aumentar o preço das entradas para os jogos?
MIGNON - Do meu ponto de vista, não. Por duas razões. A primeira é de princípio. Acho que
o futebol deve ser um esporte
acessível a todos.
Segunda razão: não acredito
que a medida funcionaria na
França, porque não sei se na
França, em Paris, Marselha ou
Lyon há pessoas fora dos estádios esperando uma chance de
entrar. Na Inglaterra, é possível
aumentar os preços porque há
uma fila de espera.
Não acho que estejamos na
mesma situação.
PERGUNTA - O sr. não acha que a
idéia de dissolver os Boulogne Boys
[ala extremista da torcida do PSG]
revela um total desconhecimento
da situação parisiense? Não há o risco de repercussões perigosas?
MIGNON - O problema é o seguinte: uma organização como
os Boulogne Boys, que não é
exatamente agradável, que é
muito ambígua em seu comportamento, propicia ao menos
a vantagem de se reunir e atrair
para uma mesma arquibancada
indivíduos que, antes dela, se
fragmentavam em pequenos
grupos incontroláveis.
É uma das razões pelas quais,
no esporte ou fora dele, pode
ser difícil dissolver uma torcida
constituída. Dito isso, gravitam
em torno dos Boulogne Boys
uma série de pessoas que estão
ao mesmo tempo dentro e fora,
com um pé na clandestinidade,
e que, mesmo sem a organizada, continuariam a praticar a
agitação e a transgressão de diversas leis.
Tradução de Samuel Titan Jr.
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