São Paulo, domingo, 06 de maio de 2001

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Para Boris Schnaiderman, autor é o "escritor-filósofo por excelência"

Colunista da Folha

Quando se fala em literatura russa no Brasil, a referência obrigatória é o tradutor e ensaísta Boris Schnaiderman, 83, que verteu para o português obras de Tolstói, Tchecov, Dostoiévski e Maiakóvski, entre outros autores fundamentais. Como ensaísta, um de seus trabalhos mais importantes é justamente sobre Fiódor Dostoiévski. No livro "Dostoiévski Prosa Poesia" (Perspectiva, 1982), Schnaiderman traduziu e analisou o conto "O Sr. Prokhartchin", procurando mostrar como a prosa do romancista russo está próxima da poesia.
Nascido em Uman, na Ucrânia, mas de formação russa, Schnaiderman emigrou para o Brasil com a família aos oito anos de idade. "Sou tipicamente bilíngue, o que no início me atrapalhou muito", lembra. Estudou agronomia e trabalhou durante muitos anos como engenheiro agrônomo.
Só em 1964, aos 47 anos, publicou seu primeiro livro, o volume de memórias "Guerra em Surdina", baseado em sua experiência como combatente brasileiro na Itália, na Segunda Guerra Mundial.
Tornou-se em 1960 professor de literatura na USP, cargo do qual está aposentado. Entre os livros que publicou se destacam, além dos citados, "A Poética de Maiakóvski" (1979) e as antologias que realizou em parceria com Augusto e Haroldo de Campos, "Poemas de Maiakóvski" e "Poesia Russa Moderna".
De Dostoiévski, Boris Schnaiderman traduziu "Memórias do Subsolo", "O Crocodilo" e "Notas de Inverno sobre Impressões de Verão", o romance inacabado "Niétotchka Niezvânova", "O Jogador" e o conto "O Eterno Marido". Os dois primeiros foram relançados no ano passado pela 34, depois de revistos pelo tradutor. Os outros serão reeditados aos poucos pela editora.
Na entrevista a seguir, o ensaísta e tradutor repassa sua trajetória profissional, explica sua paixão por Dostoiévski e fala sobre as dificuldades de uma boa tradução do russo para o português. (José Geraldo Couto)


Quando e como começou seu trabalho de tradutor?
Minha primeira tradução assinada foi "A Dama do Cachorrinho e Outros Contos", de Tchecov, em 1959, quando eu já tinha 42 anos. Minhas traduções anteriores eu havia publicado com pseudônimo. Não as reconheço. Eu não tinha experiência. Mesmo com a tradução de "A Dama do Cachorrinho" não fiquei satisfeito e a refiz várias vezes. Aliás, faço isso com todas as minhas traduções.
E Dostoiévski, quando o sr. começou a traduzi-lo?
A maioria das traduções que estou refazendo para a coleção da 34 eu fiz para as chamadas "Obras Completas" da José Olympio, publicadas em dez volumes. Saíram entre 1960 e 1961. Digo "chamadas" completas porque nelas faltava muita coisa, assim como nas "Obras Completas" editadas pela Nova Aguilar. Agora espero que essas lacunas sejam preenchidas.

Que tipo de dificuldade especial a literatura de Dostoiévski apresenta ao tradutor?
Existem as dificuldades naturais da tradução da língua russa. Por exemplo, o russo não usa artigo. Quando digo "O Jogador", já estou interpretando. Poderia ser "Um Jogador". "O Herói de Nosso Tempo", que Paulo Bezerra traduziu com muita competência, poderia ser "Um Herói do Nosso Tempo", e assim por diante. Outra coisa: em russo não posso dizer "João foi à cidade". Tenho de dizer se ele foi a pé ou com algum meio de condução. Tudo isso aumenta a responsabilidade do tradutor e exige muita paciência e discernimento.
No caso de Dostoiévski, o problema é ainda maior por causa da sutileza de seu pensamento, com a qual é preciso muito cuidado para não cometer distorções e simplificações grosseiras. Há obras específicas em que a dificuldade aumenta por conta das opções de linguagem e estilo do autor. Em "Os Irmãos Karamazov", por exemplo, Dostoiévski usa uma sintaxe arcaica, próxima à linguagem eclesiástica.
Há quem diga que Dostoiévski escrevia mal, em termos de estilo, vocabulário, construção de frases. Há algo de verdade nisso?
Como é que ele escrevia mal se conseguia expressar idéias e sentimentos tão complexos? Ora, ele escrevia do jeito dele. Podia não se incomodar com a repetição de palavras, não escrever segundo os cânones, mas isso não quer dizer "escrever mal". É o mesmo que os franceses diziam de Balzac. Isso é acreditar que exista uma única maneira de escrever. Como o sr. situa Dostoiévski no conjunto da grande literatura russa moderna? O que ele trouxe de novo e essencial?
Dostoiévski é o escritor-filósofo por excelência. A grande força de sua obra consiste em ter dado intensidade dramática e ficcional a idéias. Em seus livros, elas deixam de ser abstratas e passam a ser algo vivo, carnal, de presença imediata. Dostoiévski fazia filosofia por meio de romances, mas uma filosofia viva, atuante, intensa. Trouxe, assim, uma grande contribuição à filosofia, o que é um caso singular na literatura. Exerceu influência sobretudo sobre Nietzsche e os existencialistas. Otto Maria Carpeaux dizia que Dostoiévski era um escritor essencial do século 20, embora tenha escrito no século 19. Os temas de Dostoiévski estão por aí. "O Crocodilo", que foi escrito na década de 1860, lida com a realidade de um país em que o capitalismo havia penetrado numa sociedade agrária. Há coisas ali que dizem respeito até ao Brasil do século 20.
Como tem sido a recepção crítica da obra de Dostoiévski?
O interesse por sua obra não pára de crescer, pela riqueza de abordagens possíveis: psicológica, filosófica, política, moral. Na Rússia, cada um quer puxar a brasa para sua sardinha, lendo Dostoiévski do jeito que lhe convém. Comunistas destacam seu feroz anticapitalismo. Reacionários encontram em seus livros elementos de sobra para uma leitura conservadora, nacionalista e religiosa. Por conta desse partidarismo, não há uma compreensão adequada da riqueza de sua literatura. Isso acontece porque Dostoiévski era profundamente contraditório. Era um conservador, mas furiosamente anticapitalista.
Na obra de Dostoiévski, quais são, a seu ver, os livros mais marcantes?
Acho difícil responder a essa questão, pois sou um pouco fanático por Dostoiévski. Gosto de destacar suas obras menos conhecidas, que também são fundamentais. Um conto decisivo, por exemplo, é "Bobok", que, ao relatar uma conversa entre mortos no cemitério, retoma um tema que vem desde a Antiguidade, mas de maneira muito atual, sobretudo na maneira como vê a loucura. Paulo Bezerra fez sua tese de livre-docência sobre a tradução desse conto. Além das suas e das de Paulo Bezerra, que outras boas traduções de Dostoiévski existem no Brasil?
Até a década de 40 praticamente não havia traduções diretas do russo. Geralmente eram feitas a partir de traduções para o inglês, o francês e o espanhol, o que levava a extremos ridículos, como a transliteração de nomes "à espanhola", como "Mijail Mijailovich".
Mas hoje há ótimas traduções diretas de Dostoiévski. Tatiana Belinky, por exemplo, traduziu "O Crocodilo". Moacyr Werneck de Castro traduziu "O Jogador", "O Eterno Marido", "Notas do Subterrâneo" (que eu preferi chamar de "Memórias do Subsolo"). E há várias outras. Tenho medo de cometer uma injustiça, esquecendo algumas.
Onde, na literatura brasileira, é possível notar a influência de Dostoiévski?
Há exemplos marcantes, como o de Cornélio Pena, que dialoga constantemente com Dostoiévski. "Fronteira", por exemplo, é tipicamente dostoievskiano. Graciliano Ramos também está bastante marcado por Dostoiévski, principalmente em "Angústia" e "Memórias do Cárcere". Observo essa marca nos diálogos, no modo como ele vê a interioridade dos personagens. Mas não gosto da palavra "influência", que dá a idéia de alguém passivo, que só recebe algo de outro. No caso de grandes escritores, prefiro falar em diálogo, proximidade, convergência.


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