São Paulo, domingo, 06 de maio de 2001

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Pavese: ser e fazer

O crítico e escritor italiano escreve sobre seu amigo Cesare Pavese, de quem está sendo lançado, pela editora Cosac & Naify, o livro "Diálogos com Leucó"

por Italo Calvino

Passados dez anos desde 1950, podemos tentar uma definição. O sentido da ação poética e moral de Pavese encontra-se na laboriosa passagem entre dois modos de estar no mundo: partindo de um dado de passividade e anonimato existencial, chegar a transformar tudo o que vivemos em autoconstrução, consciência, necessidade. Uma operação poética e moral, digamos. Enquanto poética, significará sair de uma concepção de criação como abandono à confissão lírica ou ao prazer do gosto compositivo ou do reconhecimento naturalista do mundo externo, para chegar, por meio de uma árdua via de exclusões e reduções, até imagens que sejam nódulos de experiência insubstituíveis, comunicações absolutas em todos os níveis.
Como opção criativa, significará escavar e escavar o caráter cotidiano de imagens cinzentas, de presenças sem rosto, de falas rústicas e descuidadas, como se apresentam na impoética cidade industrial, no impoético Piemonte agrícola e interiorano, até que se alcance um espaço e uma cor interna à página, um sistema de relações que adquira espessura, uma linguagem calibrada. Em resumo: um estilo. Estilo e falar de estilo soam como um discurso já envelhecido, porque entre as coisas que parecem ter morrido nesses dez anos está o conceito de estilo, na prática e na problemática literária e artística: estilo não é sobreposição de uma cifra e de um gosto, mas escolha de um sistema de coordenadas essenciais para exprimir nossa relação com o mundo. Construir um estilo na expressão poética como na consciência moral foi a tarefa que Pavese se impôs, porque subjacente a ambos os planos esteve a operação que ele conduziu, de redução, de escolha e de aprofundamento de um dado de partida bruto, surdo e negativo.
Pavese não era poeta por natureza nem por graça; a primeira imagem que nos oferecem seus escritos juvenis ou que serve de pressuposto autobiográfico aos escritos maduros é a de um jovem cujo trabalho não se distingue do trabalho comum da idade, da condição social e da época, exceto por uma obstinação em autodefinir-se. Quando ele conseguiu exprimir e olhar de fora, sem lirismo, essa imagem de si mesmo, fez dela uma das imagens em que hoje melhor reconhecemos um sabor típico daquele tempo: uma juventude que sofre com o fato de ser jovem mais do que dele desfruta, os bandos de jovens da cidade, caminhando a pé, solitários, notívagos à toa que, por inexperiência, falta de dinheiro, exclusão de uma sociedade bem definida, falta de perspectivas, parecem andar às cegas num vazio incolor e insosso.
Junto a esse componente existe sempre em Pavese um outro, a indagação sobre como se deveria ser, mas sempre com uma certa imprecisão voluntarista: o homem prático, que sabe se virar, que conhece o bem e o mal da vida, do primo dos "Mares do Sul" até Amelio, o motociclista, ou as mulheres decididas e meio masculinas ou o mundo da política operária clandestina; mas se trata sempre de um dado externo, de uma meta a ser atingida e igualmente de uma homenagem à literatura da épica dinâmica, de Defoe, Melville e Whitman aos duros provincianos daquele Middle West que também podia ser o Piemonte. Aquilo que Pavese quer de fato representar é o caminho de quem ainda precisa conquistar tal dureza -tal estilo-, mesmo que não venha a conquistá-la na aplicação prática, mas tão-somente no modo de ser. Talvez o verdadeiro ideal pavesiano seja o sujeito que tem toda a triste sabedoria de quem sabe e a segura auto-suficiência de quem faz: como Clelia, a modista de "Mulheres Sós". Mas em geral, nas narrativas de Pavese, aprender significa também e sobretudo aprender como sofrer, como se comportar diante de ferimentos recebidos; e quem não aprende, sucumbe.

Febre ativa Por outro lado, o que a literatura pode nos ensinar não são os métodos práticos, os resultados a serem atingidos, mas somente as atitudes. O restante não é lição a ser extraída da literatura: é a vida que deve ensiná-lo. Mas não se pode dizer que, no plano do exemplo prático, da lição de vida, a imagem de Pavese não nos sirva de socorro. Fala-se muito de Pavese à luz de seu gesto extremo e muito pouco à luz da batalha vencida dia após dia contra o próprio impulso autodestrutivo. A moral de seus clássicos, a moral do fazer, Pavese conseguiu torná-la operante inclusive na própria vida, no próprio trabalho, na participação no trabalho dos outros.
Para nós que o conhecemos nos últimos cinco anos de sua vida, Pavese permanece o homem da exata operosidade no estudo, no trabalho criativo, no trabalho da ação editorial, o homem para quem cada gesto, cada hora possuía sua função e seu fruto, o homem cujo laconismo e insociabilidade eram defesa do seu fazer e do seu ser, cujo nervosismo era o de quem está todo preso por uma febre ativa, cujos ócios e divertimentos parcimoniosos, mas saboreados com sabedoria, eram os de quem sabe trabalhar duro.
Esse Pavese não é menos verdadeiro que o outro, o Pavese negativo e desesperado, e não está só restrito às lembranças dos amigos e a uma atividade fora das páginas escritas; era aquele o homem que "fazia", o homem que escrevia os livros; os livros da maturidade trazem esse signo de vitória e até de felicidade, mesmo que amarga. Existe também uma história da felicidade em Pavese, de uma difícil felicidade no coração da tristeza, de uma felicidade que nasce com o próprio impulso de aprofundamento da dor, até que a fratura seja tão forte que o fatigante equilíbrio se dilacere.

Aquisição da consciência A lição da autoconstrução pavesiana como nos é apresentada pelos livros e pela vivência humana, que inclusive teria tido a ambição de implicar uma conquista prática, uma transformação dos termos da própria batalha, uma vitória sobre a negatividade, diz respeito sobretudo ao plano da consciência interna daquilo que se vive, ao êxito em viver alguma coisa em vez de ser vivido por alguma coisa, mesmo que essa alguma coisa não mude. A aquisição pavesiana que conta é a da consciência, mesmo que tivéssemos de considerá-la a única, mesmo que, pelas notícias exteriores de sua vida e de sua morte, tivéssemos de inferir que para ele nada havia mudado nos termos de seu drama. A sua moral, o seu "estilo" não constituíram para ele uma couraça externa contra a dor: constituíram um férreo estojo interno para poder conter a dor como o fogo de uma fornalha.
Todo o programa de uma obra e de uma vida está decidido numa das primeiras páginas do diário (20 de abril de 1936). "A lição é esta: construir na arte e construir na vida, expulsar o voluptuoso da arte como da vida, ser tragicamente." Aqui está o tema da obra criativa de Pavese, bem como de sua busca teórica; e aqui está igualmente o tema do diário: contraposição do viver trágico ao viver voluptuoso. Em que consiste o "viver voluptuoso"? Tratemos de defini-lo com suas palavras: "É considerar os estados de ânimo como objetivos em si mesmos (...), é abandonar-se à sinceridade, anular-se em algo de absoluto (...), é viver por impulsos, sem desenvolvimento e sem começos (...)".
E em que consiste "ser tragicamente"? A definição de Pavese naquela página parece dizer respeito apenas à frieza utilitária do poeta que dá sentido ao estado de ânimo aceitando-o em vista de sua universalização poética (como devia parecer ao jovem para quem obter êxito numa obra de poesia parece ainda um heroísmo sobre-humano, um milagre de concentração moral), mas está claro que podemos alargar o conceito: ser tragicamente significa conduzir o drama individual em vez de gastá-lo como moeda de pouco valor a uma força concentrada que marque por si só todo tipo de ação, de obra, todo fazer humano, significa transformar o fogo de uma tensão existencial num agir histórico, transformar o sofrimento ou a felicidade privada, essas imagens de nossa morte (toda felicidade individual, na medida que carrega consigo seu fim, tem uma contrapartida de dor), em elementos de comunicação e de metamorfose, isto é, em forças de vida.
Se confrontamos o diário de Pavese com outro importante documento contemporâneo de um itinerário interior, o diário de André Gide, vemos que a operação de Gide se move no sentido diametralmente oposto. Gide parte de um ângulo de singularidade individual perfeitamente construída em seu receptáculo de cultura e razão, de classicismo enfim, para alcançar uma identificação com o fluxo espontâneo da vida, para tocar um estado de indeterminação em que seja possível captar pouco a pouco cada aspecto da variedade do mundo, no qual a sinceridade não seja mais dolorosa e nem sequer a dor provoque atrito.
O que Gide e Pavese apontaram são as duas vias que a literatura moderna propõe à nossa atitude cognitiva e prática. Uma de identificação com o todo, de abandono ao fluir vital e cósmico; a outra, de escolha e de atrito, de redução ao osso, de transferência de valores do ser para o fazer, da vida para a obra, da existência para a história.
Pavese pertence a uma estação da cultura mundial que se dedica a integrar a experiência existencial com a ética da história. Uma estação à qual a morte do escritor piemontês parece assinalar um limite cronológico. De fato, devemos dizer que nesses dez anos, se a fortuna de Pavese continuou a se ampliar, as possibilidades de influxo de sua lição na literatura contemporânea parecem ter-se restringido rapidamente. O caminho da consciência literária e artística parece hoje dirigir-se todo para o lado de Gide.
Mas dez anos são uma medida que pode ser também negligenciável: a história da literatura é feita de discursos que parecem interrompidos e depois são inesperadamente retomados, de encontros adiados.
Hoje os termos do discurso de Pavese parecem distantes, inclusive em seus componentes de busca formal, sobretudo na obstinação ascética do estilo. Mas isso quer dizer apenas que sua presença voltará a se fazer sentir dentro em breve por meio da tela do distanciamento prospectivo da época, e isso bastará para que nos seja reproposto numa nova vizinhança, e então poderemos ver mais coisas, como sempre em que conseguimos reaproximar-nos de um autor, destacando-o da contemporaneidade, iluminando-o com a luz de um tempo que já foi, mas não é mais o nosso.

História e moral A atenção dos estudiosos de Pavese centrou-se, nos últimos anos, mais que em suas obras, na reconstrução da figura do autor: o diário, os inéditos que ele não quisera publicar, as páginas de ensaio, os testemunhos biográficos. Também este meu discurso se ressente de uma tal polarização de interesses. Foi uma fase necessária, mas insistir nela seria desequilibrar a própria razão de ser do interesse por essa figura. Toda a força de Pavese gravitava sobre a obra, sobre aquilo que da experiência existencial e cognitiva se faz obra acabada, e é sobre as obras que devemos repor o foco de nossas lentes, especialmente sobre aquelas que trazem a marca do Pavese mais completo e maduro.
Sobre os romances, portanto. E falo dos romances não para pôr em segundo plano dois livros únicos na literatura italiana, que eu diria quase opostos entre si como poética e ambos livros "totais" de Pavese: a coletânea de poesias "Trabalhar Cansa" e os "Diálogos com Leucó"; mas porque é para o relato, para a invenção de um gênero particular de romance que Pavese direcionou o grosso de suas energias. Os nove romances breves de Pavese constituem o ciclo narrativo mais denso, dramático e homogêneo da Itália de hoje e também -direi àqueles que julgam importante tal fator- o mais rico no plano da representação dos ambientes sociais, da comédia humana, em suma, da crônica de uma sociedade. Mas eles são sobretudo textos de uma espessura extraordinária, nos quais não cessamos de encontrar novos níveis, novos significados.
Creio que dentre eles devam ser ressaltados "A Casa na Colina", "O Diabo nas Colinas" e "Mulheres Sós", que correspondem a um período de plenitude do trabalho de Pavese, entre 1947 e 1949. "A Casa na Colina" é a meditação que nasce do confronto entre história e moral humana meta-histórica, "O Diabo nas Colinas" é todo o nó de problemas morais e existenciais de Pavese feito romance, "Mulheres Sós" é uma exemplificação de atitudes em relação à vida.
São três exemplos de romances de conteúdo, eu diria até de romances ideológicos, todos expressos numa perfeita identificação entre tensão lírica e objetividade estrutural, nos quais triunfa a técnica pavesiana de laconismo reticente, de comunicação indireta, de envolvimento do leitor no esforço cognitivo e valorativo da realidade. Vocês terão percebido que deixei de fora o último romance breve escrito por Pavese, "A Lua e as Fogueiras", pois hoje tenho algumas dúvidas de que nele a condensação de lirismo, verdade objetiva e entrelaçamento de significados culturais tenha ocorrido de modo pleno; assim como quis isolar aqueles três romances breves da maturidade dos precedentes, os quais são, mesmo com todo o valor de seus êxitos, momentos de aproximação de uma forma de expressão total.
Pavese nos solicita a um modo de leitura que infelizmente a literatura contemporânea nos proporciona cada vez mais raramente: isto é, ele deseja ser lido como se lêem os grandes trágicos, os quais, sob qualquer aspecto, em cada movimento de seus versos condensam uma plenitude de motivações interiores e de razões universais extremamente compacta e peremptória. Trata-se de um modo de nos inserir no real, de vivê-lo e de julgá-lo que perdemos completamente; e tê-lo alcançado por suas vias laboriosas e solitárias confere a Pavese seu valor único na literatura mundial de hoje.



Diálogos com Leucó
230 págs., R$ 35,00
de Cesare Pavese. Trad. Nilson Moulin. Cosac & Naify (r. General Jardim, 770, 2º andar, CEP 01223-010, SP, tel. 0/xx/11/ 255-8808).



Tradução de Nilson Moulin.


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