|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
NOVOS BRASILIANISTAS
Melissa Nobles examina como o censo tem ajudado a
"embranquecer" o Brasil
Armadilhas do racismo
especial para a Folha, em Boston
Existem quantos negros no Brasil? A pergunta aparentemente
simples transformou-se para a
cientista política Melissa Nobles,
35, na chave para entender a construção do conceito de raça e democracia racial no país. Professora no famoso MIT (Instituto de
Tecnologia de Massachusetts),
Nobles lançará, no início do ano
2000, o livro "Shades of Citizenship: Race and Censuses in Modern
Politics" (Matizes de Cidadania:
Raça e Censo na Política Moderna). A obra é o resultado de sua
tese de doutorado, defendida em
95 na Universidade de Yale, e analisa de que maneira o conceito de
raça foi construído nos EUA e no
Brasil por meio dos censos.
Para Nobles, o censo no Brasil
tem sido uma disputa entre os que
acham que o país é de maioria
branca e os que defendem que somos um país de negros ou pelo
menos de não-brancos. O pomo
da discórdia, claro, é o mulato.
Curiosamente, a batalha também
é travada em campos norte-americanos, onde não é raro encontrar
o Brasil citado com o aposto de
"segundo país africano do mundo, depois da Nigéria" -do qual
Nobles discorda.
Diferentemente do Brasil, os
EUA nunca duvidaram de que o
país era de maioria branca -e que
queria continuar assim. Refletindo a segregação racial do início do
século, em 1920 o censo americano eliminou a categoria de mulato, reclassificando-o como negro.
As linhas de cor e o racismo tão
visível facilitaram a identificação
do "inimigo", e os movimentos
negros acabaram se beneficiando.
Natural de Nova York, Nobles
tem um perfil típico da classe média negra americana. Seus pais
nasceram e cresceram no sul, ainda durante a segregação racial.
Como os outros "afro-brasilianistas", Nobles apóia a ação afirmativa, que determina que empresas,
universidades e escolas assegurem
vagas para mulheres e minorias. A
seguir, a entrevista que a cientista
política concedeu à Folha.
Folha - De que maneira o censo
ajudou a construir o conceito de
raça no Brasil e nos EUA?
Melissa Nobles - A minha pesquisa mostra que o censo ajuda
não simplesmente a contar, mas a
criar categorias de raça ou cor. Os
métodos que são usados -como a
questão do censo é escrita, quais
termos (cor ou raça) e categorias
(preto, pardo etc.) utiliza- têm
importância. E eles são importantes por razões políticas. No século
19 e início do 20, o censo norte-americano estava sendo usado para
informar idéias racistas sobre as
raças "branca" e "negra". Hoje,
o censo é usado para proteger o direito de voto das minorias e outras
leis de direitos civis. Do censo de
1920 até o de 1950, o censo brasileiro festejou o suposto "embranquecimento" da população. A celebração é evidente na linguagem
usada nos textos do IBGE. Hoje, o
IBGE deve decidir que categorias
serão usadas e como os dados serão interpretados. A pesquisa feita
pela Folha, que virou o livro "Racismo Cordial", concluiu que o
retrato do IBGE sobre o país é diferente do retrato de muitos brasileiros. O Datafolha concluiu que, diferentemente do IBGE, os brasileiros não acreditam que haja uma
maioria de brancos. O Datafolha
prova a minha tese: de que o IBGE
ajuda a criar a cara oficial do Brasil
por meio de terminologia e metodologia.
Folha - Os censos brasileiros contribuíram para o mito da democracia racial?
Nobles - Os censos brasileiros
têm ajudado o mito da democracia
racial de duas formas. Em primeiro lugar, a idéia de democracia racial tem se sustentado no pressuposto de mistura racial. Ao usar o
termo "cor" em vez de "raça", o
método do IBGE por si só já mantinha a idéia de mistura. A justificativa era que a mistura havia tornado "raça" irrelevante. Em segundo lugar, o mito da democracia racial se mantinha na idéia de que raça não era um problema maior. No
passado, o IBGE relutantemente
cruzou categorias de cor com variáveis socioeconômicas (educação, renda, residência etc.). Além
disso, dados sobre cor têm sido coletados e divulgados inconstantemente. Isso tem dificultado a geração de estatísticas que provem as
disparidades causadas por discriminação em razão de raça ou cor.
Folha - Não há o risco de a sua
análise cair no presentismo, dada
a grande instabilidade política
brasileira durante este século?
Nobles - Naturalmente, interpretar ações do passado gera certos riscos. Apesar da grande instabilidade política, econômica e intelectual deste século, uma análise
do censo brasileiro mostra que ele
tem de fato ajudado a justificar e
garantir uma falta de ação do Estado brasileiro. Essa falta de ação
tem sido, ao mesmo tempo, uma
decorrência consciente e inconsciente do pensamento político e
intelectual sobre raça. Além disso,
tento provar que o IBGE não tem
sido uma instituição politicamente neutra, e o mesmo vale para o
censo norte-americano.
Folha - No Brasil, os ativistas negros brasileiros têm lutado para
atrair mulatos, mas a estratégia
não tem dado muitos resultados.
Qual é a perspectiva?
Nobles - Com o tempo, uma
grande identidade negra, para a
qual os mulatos podem ser atraídos, vai surgir no Brasil, mas apenas se os ativistas negros brasileiros forem capazes de convencer os
mulatos de que a sua cor os deixa
em desvantagem. Nos EUA, os
mulatos se uniram aos negros porque também eram discriminados
pelos brancos. Portanto não havia
nenhuma vantagem material ou
simbólica em ser mulato.
Folha - A sra. diz que o Brasil estaria "americanizando", pois busca
agora categorizar melhor a noção
de raça, e os EUA, "abrasileirando",
pois está cada vez mais parecido
com o que seria a imagem de uma
democracia racial. Isso significa
que a noção de raça está se tornando mais importante do que a
de classe no Brasil, enquanto nos
EUA ocorre o contrário?
Nobles - Sim, raça está sendo
vista como mais relevante do que
classe no Brasil. Isso é importante,
porque finalmente centra a atenção na elite política e econômica.
Muitas vezes os brasileiros dizem
que o racismo não é importante
porque pessoas de todas as cores
são pobres. Mas é necessário examinar quem constitui as classes
média e alta. O racismo explica em
parte por que a elite brasileira é esmagadoramente branca.
(FM)
Texto Anterior: Lançamentos Próximo Texto: Alvorada da abolição Índice
|