São Paulo, domingo, 6 de julho de 1997.



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As ambiguidades de Laclos

ELIANE ROBERT MORAES
especial para a Folha

Desde sua publicação, em 1782, o livro de Choderlos de Laclos, "As Ligações Perigosas", vem intrigando leitores e críticos. Seus contemporâneos, surpresos com o fato de que um obscuro capitão de artilharia tivesse escrito um tal libelo contra a alta aristocracia, não cansaram de procurar as "chaves" do romance. Alguns deles lançaram-se a eruditas pesquisas no sentido de identificar as fontes do autor, buscando os modelos de suas intrigas escandalosas tanto na literatura da época quanto nos círculos sociais que ele frequentava, sem descartar a perniciosa hipótese autobiográfica.
Se o escândalo do livro caminhou em paralelo a seu sucesso -apenas no ano da publicação consta que foram vendidos mais de 15 mil exemplares!-, a ampliação do público leitor só fez multiplicar os impulsos de desvendamento da obra. Mesmo após a Revolução, quando veio a perder a popularidade que gozava no Antigo Regime, sendo mais tarde condenado pelos tribunais da Restauração, o romance de Laclos foi objeto de interpretações apaixonadas. Stendhal viu nele uma "ciência do coração"; para Paul Bourget tratava-se de "prancha sombria de anatomia moral"; Baudelaire realçou seu "satanismo", associando-o à obra maldita do marquês de Sade.
O fato de "As Ligações Perigosas" terem perdido sua aura escandalosa no século 20 não impediu com que a tradição de leituras interpretativas ganhasse novo vigor. Pelo contrário, o romance continuou inquietando escritores e críticos, das mais variadas tendências -como André Malraux, Roger Vailland, Tzvetan Todorov ou Georges May, entre outros-, que mantiveram aceso o fogo das polêmicas.
É no interior desse debate que se insere o livro de Raquel de Almeida Prado, "Perversão da Retórica, Retórica da Perversão". O título do trabalho indica, por si só, que ele se alinha à boa tradição crítica que insiste em investigar as relações entre moralidade e forma literária, recusando uma vertente moderna que substituiu os problemas morais por questões formais, sob o risco de ocultar a problemática central do romance.
O ensaio de Raquel de Almeida Prado revisita os pontos principais dessa problemática. Primeiro, no que diz respeito à "retórica da perversão", em geral interrogada no confronto entre o desenvolvimento libertino da obra e seu desfecho moralizante. A punição do vício, no final do livro, teria sido um artifício para camuflar a conivência do autor com a libertinagem do século 18? Ou representaria uma adesão aos princípios da moral sentimental que Rousseau opunha à hipocrisia mundana? Essa ambiguidade, realçada no contraste entre o enredo e o desenlace, é, como propõe a ensaísta, um elemento essencial na construção do romance, a começar pelo fato de Laclos encarnar a imoralidade de seus libertinos nas fascinantes figuras da Marquesa de Merteuil e do Visconte de Valmont.
O segundo ponto importante na análise da obra refere-se precisamente à "perversão da retórica", que contribui ainda mais para reforçar sua ambiguidade. Neste caso, "As Ligações Perigosas" colocam ao intérprete uma equação de difícil resolução. De um lado, o livro adota as convenções do gênero epistolar, tradicionalmente identificado aos propósitos de exprimir a verdade em oposição à lógica mundana das aparências. De outro, ele participa da tradição do romance libertino, cuja imoralidade está fortemente associada aos artifícios da dissimulação dos sujeitos e da manobra das palavras. Ora, se as cartas dos personagens ingênuos, marcadas pela sinceridade do depoimento, reforçam as intenções moralizantes do gênero epistolar, a correspondência dos libertinos caminha em sentido inverso. Nas mãos de uma Merteuil ou de um Valmont, a carta passa a ser um instrumento de sedução, que busca trair -e não mais traduzir- a verdade.
Para desconforto dos intérpretes, a questão da filiação literária do romance não se esgota, contudo, nessas duas fontes. "As Ligações Perigosas" têm ainda um grande débito para com a tragédia clássica -sua estrutura segue metodicamente as leis do gênero, o que poderia explicar o desenlace fatal-, além de manifestarem fortes afinidades com o realismo moral do romance setecentista. Na verdade, essas são as fontes que Raquel de Almeida Prado privilegia, para mostrar como Laclos conjuga a exigência trágica e o moralismo sentimental. E também para concluir que seu romance é uma "autêntica tragédia moderna" na qual o herói corneliano -ambicioso, calculista e sem escrúpulos- acaba derrotado pela força da paixão. Em outras palavras: é Racine que triunfa sobre Corneille.
Para montar seu argumento, a ensaísta analisa certas partes da obra normalmente esquecidas pela crítica: o "Prefácio do Redator", a "Advertência do Editor" e as notas de rodapé. Tomando-os sabiamente como matéria de ficção, e não como simples peças acessórias, ela mostra que os prefácios constituem uma estratégia herdada da tragédia clássica e, nesse sentido, uma explicitação das intenções do próprio escritor. Apesar da contradição entre os supostos "redator" e "editor", o que supõe uma aposta na ambiguidade moral, as notas de rodapé sugerem a presença de um narrador crítico em relação à sociabilidade corrompida de sua época. Isso permite à autora concluir que, na obra de Laclos, "a idéia de uma moral de honra assimilada ao imoralismo libertino é condenada em nome de uma moral social filiada à própria moral do sentimento". Em outras palavras: é Rousseau que triunfa sobre Sade.
A argumentação de "Perversão da Retórica, Retórica da Perversão" é, sem dúvida, consistente e convincente. Porém, aos olhos dos estudiosos da literatura setecentista, ela peca por um certo descaso, talvez excessivo, no que se refere à filiação do romance ao gênero libertino. À medida que a autora se propõe a "compreender de que maneira se constrói a ambiguidade moral do romance de Laclos", seria de esperar que ela também analisasse "As Ligações Perigosas" à luz de uma tradição literária que fez da crítica à moralidade seu tema central. Não seria o caso, por exemplo, de atentar para o parentesco entre o romance epistolar de Laclos e outras recriações do mito de Don Juan, recorrentes nos séculos 17 e 18? Sendo, todos eles, versões do donjuanismo, há uma série de coincidências significativas, tanto do ponto de vista temático quanto formal -a sedução, o desfecho trágico, a libertinagem cerebral, a dissimulação etc.-, que poderiam iluminar, e até modificar, as conclusões da análise.
Não seria o caso, igualmente, de dar ouvidos a Baudelaire para reconsiderar as afinidades entre Laclos e o autor de "Justine"? A ensaísta descarta rapidamente essa hipótese, ao afirmar que Merteuil e Valmont se diferenciam dos libertinos de Sade "justamente por se vangloriarem de sua 'técnica', capaz de controlar todo movimento instintivo, o próprio prazer dos sentidos, chave-mestra do sistema sadiano".
Ora, sabemos que, na obra de Sade, a "suprema afirmação da Natureza" caminha em paralelo à exaltação de um "controle" das inclinações naturais, que seus libertinos preferem chamar de "apatia", indicando um triunfo do espírito sobre o instinto. Não foram poucos os comentadores que, como Deleuze, insistiram na tese do autodomínio dos personagens sadianos, apontando seu lugar central na constituição de um "erotismo mental".
Aqui a questão não é apenas tópica, tendo desdobramentos importantes para a análise das "Ligações Perigosas". Um deles diz respeito ao papel desempenhado pela palavra, esta também objeto de rigoroso controle nas mãos dos libertinos. Assim como, no romance de Laclos, as cartas representam um vetor da ação (inúmeras delas têm incidência real sobre a intriga), também em Sade as palavras servem para desencadear acontecimentos (basta lembrarmos que as orgias são sempre precedidas de discursos). Em ambos os casos esboça-se uma convicção no poder performativo da palavra, que traduz uma concepção produtiva da língua: entre os libertinos, o verbo constitui a ação.
Isso nos leva novamente a interrogar a adesão dos escritores à retórica da libertinagem. Voluntária em Sade, talvez incidental em Laclos, não há como evitar essa adesão quando se trata de "reproduzir", da forma mais fiel possível, o "estilo" dos personagens devassos. Aliás, assim como o escritor, o libertino distingue-se pelo requinte de seu trabalho sobre a linguagem, como ilustram a notável lição de escritura de Merteuil a Valmont (carta 33) ou os ditados deste a seus ingênuos discípulos (cartas 140 e 147, que lembram em muito os ensinamentos dos preceptores imorais em Sade. Como então distinguir os "exercícios de estilo" do personagem daqueles do escritor? À medida que se confundem as duas figuras, a ambiguidade inicial de "As Ligações Perigosas" reaparece ainda com maior força: afinal, como dar conta da suposta "condenação da libertinagem" num texto tão afinado com a retórica libertina?
Tais hipóteses, se desenvolvidas, poderiam engendrar conclusões diferentes das formuladas por Raquel de Almeida Prado, indicando um Laclos mais próximo de Corneille e de Sade. Porém, no limite, essa vertente representa apenas uma outra direção para a análise do romance, o que por certo levaria o intérprete a cair em outras armadilhas do autor. Em se tratando de um livro como "As Relações Perigosas", obra-prima da literatura e obra-mestra da ambiguidade, as interpretações tornam-se irremediavelmente perigosas. Ao final das contas, é Laclos que triunfa sobre seus intérpretes.


Eliane Robert Moraes é professora de estética e literatura na Pontifícia Universidade de São Paulo e autora de "Sade - A Felicidade Libertina" (Imago).

A OBRA

Perversão da Retórica, Retórica da Perversão - Raquel de Almeida Prado. Ed. 34 (r. Hungria, 592, CEP 01455-000, SP, tel. 011/210-9478). 458 págs. R$ 39,50.



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