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São Paulo, domingo, 06 de julho de 2003

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O presidente Lula acertou ao abdicar das tentações revolucionárias e dar preferência à prática democrática, mas deve evitar a queda no populismo

O CAMINHO DA CONSCIÊNCIA NACIONAL

Alain Touraine

Seria muito mais simples ver o presidente Lula romper com a ordem internacional, com a sociedade brasileira criadora de desigualdades esmagadoras e mesmo com instituições políticas muitas vezes indiferentes à sorte do povo. Mas quem deseja realmente tomar esse caminho, primeiro no tumulto das aclamações, mas depois no caos de uma economia submetida a contradições insuperáveis? A opção de Lula não foi a da sabedoria e da prudência; foi a de uma prática democrática distante dos discursos de pretensão revolucionária. E é a primeira vez que a vontade de uma grande reforma social se associa à idéia democrática, e não mais às tentações revolucionárias que em toda parte levaram ao caos social e a regimes autoritários. Esse renascimento da democracia, preparado pelos resultados positivos da política social-democrata de FHC, é um dos acontecimentos mais importantes deste início de século, em nível mundial. E Lula rapidamente conquistou um reconhecimento mundial que poucos analistas consideravam possível. As grandes potências têm tanto medo de uma catástrofe no imenso Brasil que recebem com compreensão e até com simpatia o novo presidente. Aliás, o Brasil conta com uma verdadeira independência graças a seu imenso mercado interno, enquanto a Argentina desmoronou porque colocou seu destino nas mãos dos financistas internacionais, e não das elites dirigentes nacionais.

País em transformação
E a força do novo Brasil é tão grande que a Argentina, que estava tão próxima da catástrofe econômica quanto de um golpe de Estado autoritário, escapa por pouco da morte e aclama Lula, que desejaria ter como presidente. [O presidente chileno] Ricardo Lagos, que reconheceu desde o início a força e a necessidade da democracia, se aproxima de um Mercosul que não é somente um mercado comum em ruínas, mas sobretudo uma vontade política e econômica capaz de dirigir a recuperação do Cone Sul.
Os obstáculos nesse caminho escolhido por Lula são enormes, e certamente será preciso que o criador do PT recorra às forças populares e a sua vontade de mudança social, mas esse apelo só pode se situar no âmbito de uma política democrática e não deve de modo algum opor-se a ela, pois o fracasso viria rapidamente sancionar essa queda no populismo. Não há mais solução revolucionária no continente desde a queda do império soviético. As esperanças suscitadas por Fidel Castro [em Cuba] se afogaram no sangue dos torturados, e a Venezuela não consegue sair do reino da palavra, sobrevivendo apenas graças à nulidade dos conservadores.
Muitos esperam que o continente possa se unir em torno do projeto político brasileiro. Essa esperança, na verdade, me parece excessiva, como também o desejo de ressuscitar o Mercosul. Muito mais realista e muito mais importante é a criação de um Brasil em transformação, dando nova vida à Argentina e ao Uruguai e apoiado pelo Chile. O Brasil se esgotaria para inventar um projeto continental. Ele deve se constituir sozinho em um continente capaz de se transformar para melhor reforçar em si mesmo a liberdade e a justiça.
O Brasil precisa de um Estado forte, apoiado em seu imenso mercado interno, em sua grande capacidade de produção e mais ainda numa intensa consciência nacional. Pois somente a consciência nacional permite a uma democracia se reforçar, combinando o que muitas vezes parece contraditório, a pressão popular e o reino da lei.
Em nenhum lugar do mundo existe tamanha possibilidade de progresso democrático. A Índia, depois de ter precedido outros países, afunda em suas dificuldades internas. Quanto à China, seu futuro democrático se inscreve em um futuro mais distante, se é que ele tem a possibilidade de se realizar.
Com frequência, quem analisa uma sociedade deve moderar os julgamentos sobre os atores e os apelos à prudência. Nesse caso é a atitude oposta que se deve adotar, sob o risco de parecer ingênuo ou afastado das realidades. O Brasil, com base nos resultados positivos das presidências de FHC, reforçado pelo triunfo pessoal de Lula, pode superar os que defendem seus privilégios assim como aqueles que se inebriam de slogans impossíveis. A via democrática se revelará rapidamente a única possível para o sucesso de grandes transformações que não devem isolar o país de seu entorno.
É por isso que se deve empregar hoje as palavras mais fortes para saudar o futuro que se abre para o Brasil. Em um mundo onde reina tão amplamente a noite da pobreza e da violência, no Brasil brilha uma luz que nasce do encontro de um desejo de justiça com um respeito absoluto pelas instituições democráticas.


Alain Touraine é sociólogo, diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris, e autor de "A Crítica da Modernidade" (ed. Vozes).
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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