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São Paulo, domingo, 06 de julho de 2003

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Em "Nacional Estrangeiro", o sociólogo Sergio Miceli volta a abordar o modernismo para estudar a relação entre mecenas e artistas, como Tarsila do Amaral

RUPTURA POR ENCOMENDA

Divulgação
"Paisagem com Touro" (1925), óleo sobre tela de Tarsila do Amaral


João Cezar de Castro Rocha
especial para a Folha

Não é tarefa simples resenhar o novo livro de um autor fundamental. De fato, o conjunto da obra de Sergio Miceli constitui uma contribuição incontornável para um entendimento original da cultura brasileira moderna. Em 1972, publicou "A Noite da Madrinha" (ed. Perspectiva), renovando a compreensão da cultura de massa no Brasil urbano por meio de aguda análise dos padrões de criação de estímulos e de recepção da audiência do programa de auditório de Hebe Camargo. Em 1979, propôs uma autêntica revolução copernicana nos estudos do modernismo brasileiro, mediante o mapeamento das carreiras e das filiações de seus principais nomes. Em "Intelectuais e Classes Dirigentes no Brasil - 1920-1945" (ed. Bertrand), Miceli mostrou como a cooptação pelo Estado Novo getulista descortinava o modelo mais amplo do "escritor- funcionário", ou seja, do intelectual que dificilmente resiste à sedução do poder. Recentemente, republicou esse livro, acrescentando novos textos sobre o mesmo tema, lançando "Intelectuais à Brasileira" (Cia. das Letras, 2001). Em 1996, principiou a ampliar seus interesses com a publicação de "Imagens Negociadas - Retratos da Elite Brasileira -1920-1940" (Cia. das Letras). Embora tratasse do mesmo período histórico, incorporou as artes plásticas ao horizonte de suas preocupações. Horizonte, aliás, que constitui o universo privilegiado em "Nacional Estrangeiro - História Social e Cultural do Modernismo Artístico em São Paulo". Por fim, organizou uma série de importantes livros dedicados à formação dos estudos universitários no país, destacando-se os dois volumes da "História das Ciências Sociais no Brasil" (Idesp). Portanto, a dificuldade de discutir "Nacional Estrangeiro" consiste em considerá-lo simultaneamente no plano mais geral de sua obra e no plano específico da nova contribuição. No plano mais geral, "Nacional Estrangeiro" aprofunda as investigações do autor sobre a modernidade brasileira. Ao lado da figura do "escritor-funcionário", Miceli identificou o modelo do "pintor-prestador de serviços", por assim dizer. Se aquele foi cooptado pelo Estado, este aprendeu rapidamente a negociar com mecenas, disciplinando o alcance da ruptura estética. Ao iluminar as relações estabelecidas entre os modernistas e a clientela então disponível, Miceli mostrou que, "em lugar de situar a Semana de Arte Moderna como evento singular e isolado (...), cumpre resgatar os contornos dessa iniciativa numa perspectiva de continuidade com os usos e costumes do mercado de arte em funcionamento na cidade de São Paulo". No plano específico, porém, "Nacional Estrangeiro" apresenta problemas que devem ser apontados.

Intermediário
Em primeiro lugar, a hipótese que organiza o livro é pouco convincente. Segundo o autor, o modernismo engendrou "um resultado artístico palpável -nacional estrangeiro- que não podia ser outra coisa senão o suporte expressivo capaz de reconfigurar experiências sociais contraditórias em formas e linguagens externas, reformatadas em função das constrições locais de absorção e produção".
Ora, como Antonio Candido já observara na "Formação da Literatura Brasileira", a dialética do local e do universal, isto é, a constituição do nacional estrangeiro, representa a própria possibilidade de pensar a cultura brasileira. Não se trata de novidade modernista, mas de estrutura, que já se encontrava articulada no romantismo de Gonçalves Dias ou de José de Alencar, entre outros. A vida intelectual e artística brasileira dificilmente pode ser compreendida sem a figura do intermediário cultural -o mestre estrangeiro que, pelo menos desde a Missão Francesa de 1816 e os relatos dos viajantes oitocentistas, oferece o espelho no qual o brasileiro se reconhece Narciso.
Destaco, por isso, a necessidade de ampliar o escopo comparativo do estudo. Miceli iniciou o livro com um instigante paralelo da importância do mecenato e das redes de prestação de serviço entre artistas e ricos compradores tanto em Paris quanto em São Paulo. No capítulo dedicado à coleção de Olívia Guedes Penteado, concluiu seu argumento afirmando que, "a despeito do caráter um tanto forçado da comparação (...), tudo isso ocorreu, em medida desigual e descompassada, é claro, tanto na França como no Brasil". Contudo a possibilidade precisa ser mais bem desenvolvida. Miceli identificou características do que ele denominou "modernismo artístico paulista". Entretanto tais características representam elementos estruturais das vanguardas em qualquer latitude.
Dada a rarefação cada vez maior do público, resistente ao experimentalismo da arte moderna, reapareceram estruturas arcaicas de mecenato, por meio de diletantes que decidiram financiar as aventuras de seus protegidos. Aliás, o Museu de Arte Moderna representa a mais completa tradução do fenômeno, esclarecendo que, a fim de assegurar sua sobrevivência, os grupos de vanguarda aceitaram a normatização da ruptura.
Por fim, se a contextualização das "novas condições de operação" dos artistas modernistas permite iluminar áreas negligenciadas por uma abordagem exclusivamente estética, a própria natureza sociológica do trabalho de Miceli dificulta a análise específica das obras consideradas. Na maior parte das vezes, o estudo particular dos quadros (e vale mencionar a qualidade das reproduções) não ultrapassa o nível descritivo ou uma associação automática com as circunstâncias históricas.
Em suma, "Nacional Estrangeiro" é um livro importante para o reconhecimento das condições de produção da geração modernista. Contudo sua abordagem não favorece o conhecimento das obras efetivamente produzidas.


João Cezar de Castro Rocha é professor de literatura comparada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É autor de "Literatura e Cordialidade" (Eduerj) e organizador de "As Máscaras da Mímesis" (Record) e "Interseções" (Imago).


Nacional Estrangeiro
280 págs., R$ 49,00 de Sergio Miceli. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 32, CEP 04532-002, São Paulo, SP, tel. 0/xx/11/3707-3500).


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