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"Áden, Arábia", do escritor francês Paul Nizan, tece uma crítica feroz
à condição do homem sob a engrenagem do sistema colonial e do capitalismo
Um objeto lamentável
Marcelo Coelho
Colunista da Folha
É com um gesto brusco, quase ofensivo, que Paul Nizan (1905-1940)
inicia seu relato sobre os tempos
que passou no porto de Áden, na
Arábia Saudita: "Eu tinha 20 anos. Não
me venham dizer que é a mais bela idade
da vida".
Como primeira frase de um texto autobiográfico, não se pode negar que seja
atraente. Na primeira vez em que esta
tradução de Bernadette Lyra foi publicada (1987, editora Marco Zero), a frase vinha estampada na própria capa do livro
e sem dúvida tinha o efeito de despertar
nossa curiosidade quanto aos descontentamentos do autor.
Do que se queixava Paul Nizan? Colega
de Jean-Paul Sartre e Raymond Aron na
mais exigente e famosa instituição francesa de ensino universitário, a "École
Normale Supérieure", Nizan ataca amargamente os medalhões da filosofia parisiense, como Léon Brunschvicg: "Uma
destreza relevante na arte do ilusionismo
fazia acreditar, à primeira vista, que fosse
um filósofo. Mas no fim se encontrava
apenas um Robert Houdini de quem, como se podia avaliar, só se podiam esperar mentiras. Este pequeno revendedor
de sofismas tinha um físico de velho maître d'hotel, autorizado pela idade a usar
barriga e barba (...). Que apetite oculto
por repouso, lugares e honrarias! Que
pavor sincero da verdade que ameaça,
daquela que poderia, por exemplo, atentar contra o dinheiro desse homem rico!
(...). Enquanto isso, homens trabalhavam sob cativeiro. Enquanto isso, policiais marchavam pelas ruas, homens
morriam na China de morte violenta; no
Alto Volta, o trabalho forçado dizimava
os negros como uma epidemia".
Liberdade imaginária
Nizan decide abandonar os estudos de filosofia e
ver o colonialismo de perto, empregando-se como preceptor na casa de um rico
comerciante. A viagem a um país exótico
não tem, para ele, nenhum significado
romântico, nem lhe desperta grande curiosidade antropológica. Muito menos
acena com promessas de libertação. "A
liberdade do mar e dos caminhos é totalmente imaginária: no começo das viagens, parece-se com a verdadeira liberdade porque é comparada à escravidão
horrível da vida que a antecedeu."
A verdadeira liberdade, para Nizan, é
construtiva; "é um poder real e uma vontade real de querer ser dono de si próprio". Em Áden, o autor encontra uma
classe média branca entediada, um bando de nativos pelos quais não se interessa
e dos quais nem teria como se aproximar
e a incansável engrenagem do capitalismo mundial.
Brutalidade
O momento mais alto
do livro, sem dúvida, é o retrato feito por
Nizan do mais rico comerciante daquela
então colônia britânica, a quem chama
de sr. C. Todo o poder e a riqueza daquele homem, diz Nizan, não o fazem menos
escravo de um sistema em que a oscilação dos preços do café e dos couros abissínios ocupa o lugar da verdadeira vida.
Cada ser humano, comenta Nizan, "está
dividido entre os homens que poderia
ser"; aquele comerciante é uma pessoa
que foi vencida pela atividade mecânica
do colonialismo.
A partir daí, o livro teria tudo para procurar, por trás do comerciante, o homem
que supostamente ele tinha deixado de
ser. Mas aí entra, a meu ver, o principal
problema de "Áden, Arábia": Nizan está
mais embriagado pelo ódio ao que vê do
que pela perspectiva de libertação na
qual quer acreditar.
Muitos dos temas que Jean-Paul Sartre
iria desenvolver em sua obra filosófica e
literária se encontram, de alguma forma,
anunciados neste livro que Nizan publicou em 1931: a busca da liberdade, o tédio, a capacidade que temos de mentir
para nós mesmos, a responsabilidade e o
engajamento do intelectual. Mas a diferença entre os dois autores pode ser percebida se compararmos os personagens
criticados por Nizan em "Áden, Arábia"
com os retratos e a análise feita por Sartre, no longo prefácio ao livro que acompanha esta edição, a respeito do próprio
Nizan e de si mesmo.
A inteligência de Nizan parece estar a
serviço de um grande rancor, e suas análises têm algo de melodramático e acusatório, tanto mais quanto querem ser desenganadas e lúcidas. Sartre é cruel onde
Nizan é brutal, e mais engenhoso e ácido
ao desvendar o "mecanismo" por trás de
cada comportamento humano. Para Nizan, o mecanismo externo -o capital-
faz de cada pessoa a quem escraviza um
objeto lamentável, digno de um ódio punitivo e reparador. Para Sartre, trata-se
de ver de que modo o mecanismo interno de cada pessoa se adapta ou rejeita,
com doses de honestidade ou de mau-caratismo, ao mundo das conveniências
exteriores. Sartre se diverte e não se poupa da análise, enquanto Nizan desabafa
sem parecer estar falando de si mesmo.
"Áden, Arábia" termina com fórmulas
terríveis: depois de encontrar na Arábia
sua velha e detestada Europa, decide-se:
"Vou viver entre os inimigos. Que nenhuma de nossas ações seja isenta de cólera. É preciso não ter medo de odiar. É
preciso não se envergonhar de ser fanático". Depois de escrito o livro, Nizan se
alinhou ao Partido Comunista Francês, a
quem serviu com fidelidade até o pacto
germano-soviético de 1939. Abandonando o partido, foi estigmatizado como
"traidor". Sartre discute essa questão no
prefácio que escreveu em 1960 (quando
seu próprio período de namoro com os
comunistas já havia terminado).
Faltam à edição notas que explicassem
um pouco esse contexto, para não falar
da série de nomes bem pouco conhecidos do leitor brasileiro. Figuras como
Évariste Galois, Daladier, Pinay, François-Poncet pululam pelo livro, só menos frequentes do que os erros de tradução. Eis que o azedume de Nizan vai contaminando o resenhista.
Antes de interromper, cabe observar
que um texto de tal radicalismo, numa
época tão propensa à conformidade e à
concertação, é leitura salutar, até pelo espanto que provoca.
Áden, Arábia
176 págs., R$ 24,00 de Paul Nizan. Tradução de Bernadette Lyra. Ed.
Estação Liberdade (r. Dona Elisa, 116, CEP 01155-030, São Paulo, SP, tel. 0/xx/11/3661-2881).
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