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São Paulo, domingo, 06 de julho de 2003

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"Áden, Arábia", do escritor francês Paul Nizan, tece uma crítica feroz à condição do homem sob a engrenagem do sistema colonial e do capitalismo

Um objeto lamentável

Marcelo Coelho
Colunista da Folha

É com um gesto brusco, quase ofensivo, que Paul Nizan (1905-1940) inicia seu relato sobre os tempos que passou no porto de Áden, na Arábia Saudita: "Eu tinha 20 anos. Não me venham dizer que é a mais bela idade da vida". Como primeira frase de um texto autobiográfico, não se pode negar que seja atraente. Na primeira vez em que esta tradução de Bernadette Lyra foi publicada (1987, editora Marco Zero), a frase vinha estampada na própria capa do livro e sem dúvida tinha o efeito de despertar nossa curiosidade quanto aos descontentamentos do autor. Do que se queixava Paul Nizan? Colega de Jean-Paul Sartre e Raymond Aron na mais exigente e famosa instituição francesa de ensino universitário, a "École Normale Supérieure", Nizan ataca amargamente os medalhões da filosofia parisiense, como Léon Brunschvicg: "Uma destreza relevante na arte do ilusionismo fazia acreditar, à primeira vista, que fosse um filósofo. Mas no fim se encontrava apenas um Robert Houdini de quem, como se podia avaliar, só se podiam esperar mentiras. Este pequeno revendedor de sofismas tinha um físico de velho maître d'hotel, autorizado pela idade a usar barriga e barba (...). Que apetite oculto por repouso, lugares e honrarias! Que pavor sincero da verdade que ameaça, daquela que poderia, por exemplo, atentar contra o dinheiro desse homem rico! (...). Enquanto isso, homens trabalhavam sob cativeiro. Enquanto isso, policiais marchavam pelas ruas, homens morriam na China de morte violenta; no Alto Volta, o trabalho forçado dizimava os negros como uma epidemia".

Liberdade imaginária
Nizan decide abandonar os estudos de filosofia e ver o colonialismo de perto, empregando-se como preceptor na casa de um rico comerciante. A viagem a um país exótico não tem, para ele, nenhum significado romântico, nem lhe desperta grande curiosidade antropológica. Muito menos acena com promessas de libertação. "A liberdade do mar e dos caminhos é totalmente imaginária: no começo das viagens, parece-se com a verdadeira liberdade porque é comparada à escravidão horrível da vida que a antecedeu." A verdadeira liberdade, para Nizan, é construtiva; "é um poder real e uma vontade real de querer ser dono de si próprio". Em Áden, o autor encontra uma classe média branca entediada, um bando de nativos pelos quais não se interessa e dos quais nem teria como se aproximar e a incansável engrenagem do capitalismo mundial.

Brutalidade
O momento mais alto do livro, sem dúvida, é o retrato feito por Nizan do mais rico comerciante daquela então colônia britânica, a quem chama de sr. C. Todo o poder e a riqueza daquele homem, diz Nizan, não o fazem menos escravo de um sistema em que a oscilação dos preços do café e dos couros abissínios ocupa o lugar da verdadeira vida. Cada ser humano, comenta Nizan, "está dividido entre os homens que poderia ser"; aquele comerciante é uma pessoa que foi vencida pela atividade mecânica do colonialismo.
A partir daí, o livro teria tudo para procurar, por trás do comerciante, o homem que supostamente ele tinha deixado de ser. Mas aí entra, a meu ver, o principal problema de "Áden, Arábia": Nizan está mais embriagado pelo ódio ao que vê do que pela perspectiva de libertação na qual quer acreditar.
Muitos dos temas que Jean-Paul Sartre iria desenvolver em sua obra filosófica e literária se encontram, de alguma forma, anunciados neste livro que Nizan publicou em 1931: a busca da liberdade, o tédio, a capacidade que temos de mentir para nós mesmos, a responsabilidade e o engajamento do intelectual. Mas a diferença entre os dois autores pode ser percebida se compararmos os personagens criticados por Nizan em "Áden, Arábia" com os retratos e a análise feita por Sartre, no longo prefácio ao livro que acompanha esta edição, a respeito do próprio Nizan e de si mesmo.
A inteligência de Nizan parece estar a serviço de um grande rancor, e suas análises têm algo de melodramático e acusatório, tanto mais quanto querem ser desenganadas e lúcidas. Sartre é cruel onde Nizan é brutal, e mais engenhoso e ácido ao desvendar o "mecanismo" por trás de cada comportamento humano. Para Nizan, o mecanismo externo -o capital- faz de cada pessoa a quem escraviza um objeto lamentável, digno de um ódio punitivo e reparador. Para Sartre, trata-se de ver de que modo o mecanismo interno de cada pessoa se adapta ou rejeita, com doses de honestidade ou de mau-caratismo, ao mundo das conveniências exteriores. Sartre se diverte e não se poupa da análise, enquanto Nizan desabafa sem parecer estar falando de si mesmo.
"Áden, Arábia" termina com fórmulas terríveis: depois de encontrar na Arábia sua velha e detestada Europa, decide-se: "Vou viver entre os inimigos. Que nenhuma de nossas ações seja isenta de cólera. É preciso não ter medo de odiar. É preciso não se envergonhar de ser fanático". Depois de escrito o livro, Nizan se alinhou ao Partido Comunista Francês, a quem serviu com fidelidade até o pacto germano-soviético de 1939. Abandonando o partido, foi estigmatizado como "traidor". Sartre discute essa questão no prefácio que escreveu em 1960 (quando seu próprio período de namoro com os comunistas já havia terminado).
Faltam à edição notas que explicassem um pouco esse contexto, para não falar da série de nomes bem pouco conhecidos do leitor brasileiro. Figuras como Évariste Galois, Daladier, Pinay, François-Poncet pululam pelo livro, só menos frequentes do que os erros de tradução. Eis que o azedume de Nizan vai contaminando o resenhista.
Antes de interromper, cabe observar que um texto de tal radicalismo, numa época tão propensa à conformidade e à concertação, é leitura salutar, até pelo espanto que provoca.


Áden, Arábia
176 págs., R$ 24,00 de Paul Nizan. Tradução de Bernadette Lyra. Ed. Estação Liberdade (r. Dona Elisa, 116, CEP 01155-030, São Paulo, SP, tel. 0/xx/11/3661-2881).


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