São Paulo, domingo, 06 de julho de 2008

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Ponto de Fuga

Era uma vez


Carlos Reichenbach, conhecido como "Carlão", é alto: uma espécie de torre humana; ora, tudo o que filma torna-se leve, diáfano

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Falsa Loura", dirigido por Carlos Reichenbach, lembra um conto de fadas. Sua verdade não é a do realismo. Encontra-se na maneira como o filme gostaria que as jovens operárias fossem. Lindas, no fim das contas vivendo uma vida interessante e cheia de peripécias. O dinheiro surge sempre que se precisa dele e serve como vara de condão, transformando bruxinhas em cinderelas.
Há situações de infelicidade, sem dúvida. Há sexo canalha, há drogas, às vezes. Apesar disso, a alma inefável dessas moças, que transparece na graça, ela também inefável, dos corpos e dos rostos, guarda, até o fim, uma pureza inalterada.
O olhar admirado e enternecido do cineasta pelas jovens não se estende ao mundo masculino. Do advogado todo-poderoso, corrupto, com um charuto caricatural na boca, ao vocalista malhado perpassa, nos homens, uma hipocrisia predadora. Fora o irmão cabeleireiro, talvez porque carregue em si um caráter feminino. Fora, ainda, o garoto, que não é ainda um homem.
O personagem mais complexo e ambíguo é o do pai. Soturno, sinistro, atormentado por um passado obscuro, encontra saída no silêncio dissimulado.

Anadiômena
Aby Warburg [1866-1929, historiador da arte] escreveu que certas mulheres e certos jovens de Botticelli "parecem ter a cabeça ainda toda sonora das imagens que sonharam". As moças de "Falsa Loura" são assim, habitadas por uma vida onírica e espiritual.
No fim, a lente se aproxima de Rosanne Mulholland, que faz o papel de Silmara. Câmera lenta. A brisa mexe, delicada, nos cabelos cor de ouro. Então, Silmara se torna gêmea da Vênus saindo das ondas, que o grande Sandro pintou.

Happy ending
As garotas de Reichenbach têm, em seu favor, a suave melancolia das vítimas. Nenhuma violência física, nada do que acontece nos filmes extremos e perturbadores que o cineasta admira tanto. Nelas está ausente a sexualidade imediata e popular que é própria às gostosas violentadas, torturadas por José Mojica Marins, diretor querido de Reichenbach. Carlão é um poeta delicado.

Estrela d'alva
Carlos Reichenbach gosta de citações culturais elevadas. Em "Falsa Loura" aparece de vez em quando uma moça com os seios de fora, recitando coisas complicadas, nas quais ninguém presta atenção. Há também escritos filosóficos, que pipocam aqui e ali. São bizantinismos, bobagens. O que conta no filme não é esse cacoete secundário. Nem as metáforas mecânicas, gastas, que também surgem: banana e pênis ou penetração e túnel. Nem as alusões cinéfilas sublinhadas, às quais o cineasta não resiste: John Ford, por exemplo.
O início dá o tom. A tela mostra um escrito. O diretor foi buscar Sócrates para nos ensinar, sentencioso, esta verdade insigne: prazer e sofrimento vêm juntos.
Logo depois, porém, inicia-se o mais poético prelúdio cinematográfico que se possa imaginar. Maravilhosa panorâmica sobre moradias pobres; em seguida, duas moças dançam. Aí se revela então o grande, o autêntico, Carlos Reichenbach.
Capaz de captar o ambiente e de inserir, intuitivo, sutil, delicado, os personagens nesse meio que ele desenha com mão de mestre. Capaz de mostrar, amoroso, sem obsessão carnal, mas sem esvaziar o erotismo, a beleza frágil dessas jovens.
Carlos Reichenbach, conhecido como "Carlão", é alto: uma espécie de torre humana. Ora, tudo o que essa torre filma torna-se leve, diáfano, aéreo, transfigurado por uma poesia que brota espontânea, natural, sem rebuscamento.


jorgecoli@uol.com.br


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