São Paulo, domingo, 06 de agosto de 2000


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O escritor e tradutor Paulo César de Souza percorre na Europa o itinerário do filósofo alemão, que morreu no dia 25 de agosto de 1900
Os lugares de Nietzsche

Reprodução
O filósofo alemão Friedrich Nietzsche, cujo centenário de morte acontece neste mês


Durante os seus 55 anos de vida, Friedrich Nietzsche habitou em muitos lugares. Nasceu e foi criado no leste da Alemanha, foi professor universitário na Suíça, viveu perambulando por cidades e lugarejos da Itália e da Suíça e depois voltou à região de origem, onde veio a morrer. As etapas dessa vida não muito longa são bem claras: até os 24 anos, filho órfão de um pastor, vivendo com a mãe e a irmã, depois estudando filologia clássica em Leipzig; nos dez anos seguintes, professor de língua e literatura grega na Basiléia; outros dez anos (1879-1888) como filósofo errante e solitário; e, os últimos 11 anos, na demência, aos cuidados da mãe e da irmã.
Também geograficamente não é difícil demarcar essa existência. Se excetuarmos alguns meses passados em Bonn, ela transcorreu num triângulo cujas pontas seriam a região natal, a Suíça e a Riviera (incluindo Nice, do lado francês). Se considerarmos outras cidades italianas em que ele esteve, embora com menos frequência (Veneza, Roma, Sorrento), será preciso estender um lado do triângulo. Vamos percorrer alguns desses lugares em que viveu Nietzsche, na esperança de que nos dêem pistas para entendê-lo ou apreciá-lo melhor.
Comecemos pelo começo e pelo fim: Röcken, a aldeia em que nasceu, e Weimar, a cidade em que morreu. As duas se acham a mais ou menos 250 km a sudoeste de Berlim. Pertencem ao território da ex-Alemanha Oriental. Apenas nos últimos dez anos, após a reunificação, foi possível chegar livremente até elas.
Röcken não tem acesso por trem. Ralf Eichberg, o solícito e extrovertido secretário da Sociedade Nietzsche, vem me buscar na estação ferroviária de Naumburg. Essa é a pequena cidade para onde se mudou a mãe de Nietzsche, Franziska, quando seu marido morreu, em 1849. A viúva levou consigo o casal de filhos: Friedrich, que ainda completaria cinco anos, e Elisabeth, dois anos mais nova. A casa em que ela morou, e na qual tomou conta do filho entre 1890 e 1897, quando morreu, foi transformada em museu há poucos anos. Um museu modesto, sem dúvida, com alguns painéis e fotos em exposição, exemplares de edições atuais de Nietzsche e uns poucos livros e postais à venda.
Para um visitante, o interesse maior está no quarto que foi de Nietzsche. O seu pequeno tamanho é compensado pela varanda contígua, de madeira, ornada de plantas. Nela o doente passava seus dias.
De Naumburg rumamos para o vizinho Colégio de Pforta. Esse internato, quase tão antigo quanto o Brasil (foi fundado em 1543 e ainda funciona), era um estabelecimento de renome, em que o ensino das letras clássicas juntava o cultivo ateniense das musas a uma disciplina quase espartana. Dentro dele se sente que o próprio edifício, um ex-monastério medieval, convidava ao rigor e à reflexão. Nos seis anos que ali passou, e depois na Universidade de Leipzig, onde prosseguiu os estudos, Nietzsche adquiriu a sólida cultura clássico-humanista que transparece nos seus livros. Sua filosofia foi em boa parte um diálogo com os antigos, tratando de questões perenes.


Num dia ensolarado de junho, o sol ilumina uma parte do túmulo de Nietzsche e traz à mente o provérbio alemão que diz: "Onde a luz bate mais forte, a sombra é mais escura", que se pode relacionar à estranha junção de aspectos luminosos e obscuros existentes em suas teorias -e na própria história do povo que o produziu


Chegando à pequenina Röcken (de 170 habitantes), nota-se que a igreja era, em todo sentido, o centro do lugar. O pastor luterano que na década de 1840 assistia aquela comunidade, Karl Ludwig Nietzsche, era um homem intenso e talentoso, como fica claro para quem lê o "Sermão no Batismo do Meu Primogênito", que proferiu em 24/10/1844.
Ele sucumbiu a uma doença do cérebro quando tinha 36 anos. Seu filho jamais esqueceria o ambiente da biblioteca do pai, nem as horas em que o escutava improvisando ao piano. Nas casas dos pastores protestantes, a influência de Lutero se manifestava não só na leitura da Bíblia, mas no cultivo da literatura e da música.
A curadora do pequeno museu, situado junto à igreja e à casa do pastor, mostra-me o registro do nascimento e da morte de Nietzsche, no livro da paróquia. Os volumes de hinos protestantes sobre os assentos indicam que a igreja, que remonta ao século 12, ainda é usada como templo. No exterior, junto à parede de trás, vêem-se os túmulos da família Nietzsche: o da direita contém os restos do pai, da mãe e do irmão que morreu pouco após o pai, com dois anos de idade; o do centro é o da irmã, que ela determinou que ficasse entre o do irmão e o do pai; o de Nietzsche está à esquerda e tem à frente um vaso de flores lilases e amarelas. Num dia ensolarado de junho (o mais quente desde 1876, segundo a meteorologia), o sol ilumina intensamente uma parte do túmulo de Nietzsche, e traz à mente o provérbio alemão que diz: "Onde a luz bate mais forte, a sombra é mais escura"; ditado esse que se pode relacionar à estranha, peculiar, talvez inevitável, junção de aspectos luminosos e obscuros que há nas teorias desse pensador -e na própria história do povo que o produziu.
Eichberg me leva de volta à estação de Naumburg. Em Weimar, a famosa capital do classicismo alemão, Goethe e Schiller são onipresentes. Os turistas vindos da ex-Alemanha Ocidental fazem filas para conhecer os "lugares santos" de sua cultura, agora restaurados e embelezados com os investimentos maciços do governo federal. Em toda parte há lojas de suvenires, bares e restaurantes. Após pagar o devido (e merecido) tributo a Goethe, visitando a casa em que ele viveu, dirijo-me para o Museu Schiller, atrás da casa de Schiller, na rua Schiller, onde tem lugar uma exposição comemorativa do centenário da morte de Nietzsche.
Já no hall de entrada, um pôster imenso, desenho ampliado de uma história em quadrinhos, mostra Nietzsche com a roupa do Super-Homem. Há também um painel com todas as fotografias existentes de seu rosto: 48 imagens, incluindo a da máscara mortuária.
Nas salas de exposição propriamente, é decepcionante constatar o mau gosto das cores e da iluminação empregadas. Mas a exposição é a mais completa até hoje realizada. O visitante depara com todo tipo de objeto ligado a Nietzsche: primeiras edições dos livros, cartas, cópias de manuscritos, postais por ele enviados, roupas que usou, óculos (tinha miopia de 15º), pinturas, contas de hotéis, passagens de trem etc. Além, claro, de painéis com informações sobre sua vida. Quanto à obra, muito pouca coisa: citações aplicadas ao chão, intercaladas no trajeto. O catálogo dessa exposição é um acontecimento à parte: um volume em formato grande, com 800 páginas e cerca de mil ilustrações, documentando quase cada dia da vida de Nietzsche.

Olhar vazio, gestos lentos
Verdadeiramente extraordinário, no entanto, é o filme exibido ininterruptamente numa sala: um documentário de alguns minutos, mostrando Nietzsche demente, vestido de branco e reclinado num sofá, com um cobertor até o peito. O olhar é vazio, os gestos são muito lentos, como os de um ancião adoentado. A larga testa franzida, o bigode "vassoura" desgrenhado, tudo denota um infinito cansaço. Num momento aparece a irmã, falando-lhe algo sem esperar nem obter resposta, segurando-lhe as mãos, trazendo-lhe um copo d'água. Ele surge da mesma forma numa varanda, sentado numa cadeira, olhando para o exterior.
Essa varanda, sabemos, pertence a Villa Silberblick, o palacete para o qual a irmã se transferiu com ele em 1897, após a morte da mãe. Essa mansão se acha numa colina que sobranceia Weimar. Estabelecendo ali o Arquivo Nietzsche, Elisabeth buscava claramente a proximidade de Goethe e Schiller e ao mesmo tempo emulava Bayreuth, o centro do culto a Wagner.
Ela tinha voltado do Paraguai alguns anos antes. Com seu marido, um notório agitador anti-semita, havia fundado uma colônia de arianos puros na América do Sul (remanescentes da colônia Nueva Germania ainda existem no Paraguai). O empreendimento fracassou, o marido se matou e ela retornou à Alemanha, onde seu irmão começava a se tornar famoso. Tomou posse de tudo o que ele havia deixado, escreveu uma volumosa biografia dele, contendo falsificações de cartas e textos, e publicou novas edições de suas obras, que naquele momento vendiam como nunca.
Ela exibia o irmão a visitantes ilustres, que acorriam de lugares diversos da Europa. Sob sua orientação, a Villa Silberblick se tornou, após a Primeira Guerra, ponto de referência para os radicais de direita, e quando os nazistas tomaram o poder o seu prestígio alcançou o auge. Nos painéis que contam a história do Arquivo, diante da porta principal, há uma foto de Hitler olhando respeitosamente para o busto de Nietzsche. Elisabeth Förster-Nietzsche (o sobrenome de solteira ela acrescentou após o retorno à Alemanha) morreu em 1935 e foi sepultada com honras de Estado.
A arquitetura e os interiores da mansão, com móveis e objetos art nouveau, são testemunho de que no começo o Arquivo atraiu a atenção da vanguarda artística da época. Ele funcionou como centro do nietzschianismo na versão "elisabetana" até o final da Segunda Guerra, quando o exército russo ocupou a região. Foi então fechado e assim permaneceu enquanto existiu a República Democrática Alemã, na qual o nome de Nietzsche era tabu e seus livros nunca foram publicados. Atualmente voltou a funcionar, mas não como arquivo.
A biblioteca pessoal de Nietzsche e todos os seus manuscritos estão sob a guarda da Fundação dos Clássicos de Weimar, em outro edifício. Villa Silberblick é conservada para a visitação pública e abriga, de um ano para cá, o "Nietzsche-Kolleg", um departamento da Fundação dos Clássicos que, em associação com a Universidade Bauhaus, promove seminários internacionais sobre e "a partir de" Nietzsche.


Como muitos alemães, antes e depois dele, Nietzsche viveu um caso de amor não correspondido com a Itália; foi em Gênova que ele viu pela primeira vez o mar; metáforas marítimas são frequentes em suas obras, e ele se via como um Colombo do pensamento, a explorar mares perigosos e nunca dantes navegados


Rüdiger Schmidt, o diretor do "Kolleg", explica que o objetivo da instituição é abordar, sob o signo de Nietzsche, questões filosóficas que dizem respeito à atualidade européia. Proximamente haverá um seminário reunindo professores brasileiros e alemães.
Antes mesmo de concluir os estudos em Leipzig, Nietzsche foi convidado a ensinar na Universidade da Basiléia, tendo apenas 24 anos. Embora permanecesse dez anos na Basiléia, não se sentia muito ligado à cidade. O endereço onde ficou por mais tempo, Schützengraben, 47, fica próximo a Spalentor, uma das velhas portas da cidade. Lá ele dividiu a casa com o teólogo Franz Overbeck, que permaneceria seu amigo mais leal. O nome da rua significa "trincheira"; certamente apropriado para um filósofo que foi bastante guerreiro. Curiosamente, o número 49 abriga a sede do Instituto Psicanalítico da Basiléia.
Durante os três primeiros anos na Suíça, Nietzsche frequentou a casa de Richard Wagner em Tribschen, um lugar paradisíaco próximo de Lucerna, à beira do lago. Teve muitos fins-de-semana de intenso convívio com Wagner e sua mulher, Cosima, até eles se mudarem para Bayreuth, em 1872. A mansão de Tribschen é agora um museu, com objetos pessoais, livros, partituras e o piano de Wagner. Duas prateleiras contêm documentos da época em que o filósofo e o compositor eram amigos, entre eles o exemplar de "O Nascimento da Tragédia" que pertenceu a Wagner.
Nietzsche teve que se aposentar aos 34 anos. Há tempos sofria de males diversos, como enxaquecas, dores nos olhos, náuseas, vômitos. Em 1879, ano em que deixou a universidade e partiu da Basiléia, esteve incapacitado por 118 dias. Passou a levar uma vida errante, em busca dos lugares e dos climas mais adequados para seu corpo e seu espírito. A pensão concedida pelas autoridades da Basiléia lhe permitia hospedar-se em albergues ou alugar quartos; era o suficiente, para quem considerava o luxo uma compensação para a pobreza espiritual. Muitas considerações entravam na escolha dos lugares: temperatura, umidade do ar, tipo de paisagem, luminosidade, acesso aos correios etc. Assim, a umidade fez com que não habitasse em Veneza, embora a venerasse. Seu amigo Peter Gast (nome que deu ao músico Heinrich Köselitz) o hospedou, quando lá esteve.
Logo se insinua um padrão em suas viagens: ele tende a passar o verão nos Alpes e o inverno na Riviera italiana e francesa. Vive entre o mar e as montanhas, adorando e ao mesmo tempo receando (por causa da vista) o sol do Sul. Como muitos alemães, antes e depois dele, Nietzsche viveu um caso de amor não correspondido com a Itália.
Foi em Gênova que ele viu pela primeira vez o mar. Metáforas marítimas são frequentes em suas obras, e ele se via como um Colombo do pensamento, a explorar mares perigosos e nunca dantes navegados. Mas fez apenas duas breves viagens marítimas: de Gênova a Sorrento e depois a Messina. Chegou a pensar em cruzar o Atlântico e viver no México, mas não foi nem sequer à Grécia, tão mais próxima em todos os sentidos. A estátua de Colombo, em frente à estação de Piazza Principe, não fica longe do seu endereço mais frequente em Gênova: Salita delle Battistine, 8. É uma ladeira ("salita") íngreme, com casas apenas de um lado; no outro há o muro do parque da Villetta di Negro, que ele chamava de "meu jardim". Tal como na Basiléia, não há uma placa informativa no nº 8. Ao acionar o interfone e perguntar se ali não viveu "il filosofo tedesco Federico Nietzsche", uma voz de senhora me responde animadamente: "Sim! Os netos dele ainda moram no segundo andar. Toque lá!". Sabendo que Nietzsche não teve filhos (e quase não teve vida sexual), abstenho-me de incomodar seus netos no segundo andar.

Cocteau, Mann, Adorno
Percorrendo algumas localidades em volta do golfo de Gênova -Rapallo, Sta. Margherita, Ruta, Portofino-, salta aos olhos por que essa região o fascinava. É um litoral alcantilado, com inúmeras pequenas enseadas, sobre as quais há terraços verdejantes que descortinam, a cada curva, uma paisagem deslumbrante. Junto ao mar há estreitas faixas de areias escuras e pedregosas, que os europeus chamam de praias. Nietzsche andava por esses montes horas a fio, sempre com uma caderneta onde anotava seus pensamentos. Várias de suas obras, como "Aurora" e "A Gaia Ciência" estão associadas a Gênova e seus arredores. O mar e o sol tinham que estar presentes, numa filosofia que exalta a sensualidade.
O outro pólo de suas andanças, na década de 1880, era Sils-Maria, um povoado bem próximo de St. Moritz, na região suíça da Alta Engadina. Ele normalmente chegava em junho e partia em setembro, alugando um quarto na casa da família Durisch. Desde que essa casa foi transformada em museu, 40 anos atrás, Sils-Maria transformou-se na meca dos nietzschianos do mundo inteiro. Já antes disso era procurada por admiradores de Nietzsche. Entre as fotos exibidas nas paredes, há uma de Thomas Mann e Hermann Hesse na década de 30. Theodor Adorno esteve aqui nos anos 50 com Herbert Marcuse e escreveu um tocante relato da visita. Jean Cocteau ajoelhou-se na soleira, bem histrionicamente, e comeu um punhado de neve "em comunhão", segundo registrou num poema.
A sala principal exibe fotos, cópias de documentos e edições originais de todas as obras que ele publicou. Chama a atenção a má qualidade do papel desses volumes: eram edições baratas, custeadas por ele mesmo. A presença de duas máscaras mortuárias diferentes se deve a que sua irmã encomendou outra a um escultor, pois a original não lhe pareceu expressiva o bastante. Numa outra sala estão algumas das peças que mobiliavam a casa em que ele morou na Basiléia. À direita de quem entra se acha uma loja com postais, lembranças diversas e obras de e sobre Nietzsche, em várias línguas.
As paredes dos corredores mostram os seus primeiros discípulos (como Rudolf Steiner, o criador da antroposofia) e obras de artistas plásticos da região. O centro do museu, naturalmente, é o quarto de Nietzsche, que fica no primeiro andar, no fundo, com janela para a lateral. A decoração foi reconstituída com base em testemunhos da época: uma cama, um abajur, mesa, cadeira, um canapé, uma bacia. Somente a toalha de mesa verde é original. E falta, sobretudo, o baú com livros e papéis que ele sempre levava consigo.
Além de museu, a Casa Nietzsche funciona como centro de estudos, promove congressos, caminhadas etc. Possui uma seleta biblioteca sobre o "dono" da casa, que fica à disposição dos que nela se hospedam.


A chamada "pedra de Zaratustra" se encontra na margem direita do lago Silvaplana; é um bloco de pedra de uns três metros de altura, de forma quase piramidal; foi junto a ele que veio a Nietzsche, segundo a descrição exaltada que faz em "Ecce Homo", a concepção do "eterno retorno" das coisas


A casa dispõe de alguns outros quartos, para hospedar estudiosos e interessados de qualquer parte.Eis que me encontro instalado no museu-albergue de Zaratustra, num quarto em frente ao de Nietzsche. "Se você ouvir barulho à noite, não se preocupe, é o fantasma de Fritz", me avisa bem-humoradamente um outro hóspede. Nos três dias que passei em Sils-Maria, pude confirmar as impressões de peregrinos anteriores. Ela fica a quase 2.000 metros de altitude, entre os lagos de Sils e Silvaplana, num platô circundado por picos de 3.000 a 4.000 metros. A vegetação, as rochas, as formas têm uma nitidez inimaginável para um habitante da planície. As silhuetas dos Alpes se acumulam na distância, parecem ondas de um mar sideral. A paisagem como que reflete a atitude fundamental de Nietzsche, o seu "pathos da distância", a ambição de abarcar toda a problemática humana, a longividência de quem se coloca nas alturas. O clima, com seu ar frio e penetrante, estimulava-o para as muitas caminhadas que fazia, sempre armado de um bloco de notas. Ele dizia que não se deve confiar em pensamentos que não surjam ao ar livre, com os músculos em movimento. O passeio mais breve, à esquerda de quem sai da casa, conduz à península de Chastè, no lago de Sils. Quase na ponta dessa língua de terra se vê, numa rocha, uma lápide com o seu poema que diz: "Toda alegria quer ser eterna". Da ponta mesma se tem uma vista do lago que supera em beleza tudo o que surgiu antes nessa viagem. Essa vista, aliás, está reproduzida na caixa que envolve a última edição alemã de suas obras completas. Como escreveu uma amiga sua, "ele tinha um acentuado talento para descobrir lugares privilegiados da Terra".

Windsurfe e mito
Andando para a direita, num passeio mais longo, pode-se dar a volta no lago de Silvaplana (12 km de circunferência). Nele e no lago de St. Moritz, que fica mais adiante, vêem-se muitos praticantes de windsurfe. Isso não deveria surpreender, pois estamos numa área turística, em pleno verão. Mas é interessante o contraste entre as velas coloridas, os modernos apetrechos dos "windsurfers" e a atmosfera quase mítica que tem esse lago para alguns visitantes. Pois a chamada "pedra de Zaratustra" se encontra na sua margem direita (margem sul). É um bloco de pedra de uns três metros de altura, de forma quase piramidal. Foi junto a ele que veio a Nietzsche, segundo a descrição exaltada que faz em "Ecce Homo", a concepção do "eterno retorno" das coisas. Essa idéia surge num aforismo de "A Gaia Ciência" e, junto com a do "super-homem", é comunicada poeticamente em "Assim Falou Zaratrusta" (é também desenvolvida nos "Fragmentos Póstumos"). Ambas as idéias são suficientemente ambíguas para permitir as interpretações mais diversas e as elucubrações mais refinadas.
Talvez seja lícito ver, nelas e no próprio personagem que as comunica, um retorno do sempre negado, mas nunca suprimido, anseio religioso, por parte desse que foi o mais espiritual dos ateus, o mais romântico dos racionalistas. Em Turim, chegamos ao ponto final desse périplo. Aqui ele passou a maior parte do ano de 1888. Alugou um quarto na Via Carlo Alberto 6, na esquina da praça com o mesmo nome, em frente ao Palazzo Carignano. Era o apartamento da família Fino, no último andar do prédio da Galleria Subalpina. De lá podia escutar "O Barbeiro de Sevilha", encenado no teatro dessa galeria. Agora os apartamentos são escritórios comerciais e o teatro se tornou um cinema, no qual está sendo apresentado o último filme de Woody Allen.

Ano milagroso
No centenário do nascimento a prefeitura de Turim fixou no exterior do prédio uma lápide, com a efígie de Nietzsche em relevo e os seguintes dizeres: "Nesta casa, FN conheceu a plenitude do espírito que explora o desconhecido, a vontade de domínio que suscita o herói. Aqui, atestando o alto destino e o gênio, escreveu "Ecce Homo", livro de sua vida". A linguagem inflada se explica ao lermos a data: "15 ottobre 1944 A. XXII E.F". Esses últimos caracteres significam "ano 22 da era fascista". A única lembrança pública de Nietzsche na Itália parece ser essa, erguida pelos sequazes de Mussolini.
O ano de 1888 foi um ano milagroso, em que ele produziu como nunca e repentinamente deixou de sentir dores. Na verdade, isso e a euforia que o tomou eram prenúncios de que o fim estava próximo. Na(s) doença(s) de Nietzsche havia provavelmente um fator hereditário. Mas o principal, tudo indica, foi uma infecção sifilítica que ele teria contraído na juventude, ao visitar um bordel (na exposição de Weimar, isso é "ilustrado" por uma reprodução em plástico de um pênis com a ferida, tomada de empréstimo ao Museu Alemão de Higine!). A sífilis alcançava o último estágio, afetava o cérebro. Não era uma doença rara naquele tempo. O escritor Guy de Maupassant e o compositor Hugo Wolf, entre outros, tiveram o mesmo destino.
A conclusão foi rápida, no final de 88 e início de 89. Ele chocou os vizinhos e outras pessoas com atitudes estranhas, como abraçar-se, chorando, a um cavalo que estaria sendo maltratado pelo cocheiro. Redigiu bilhetes e cartas insanas para amigos, conhecidos e personalidades políticas. Isso fez Overbeck tomar o trem para Turim. Lá deparou com o amigo totalmente fora de si. Conseguiu levá-lo para uma clínica psiquiátrica na Basiléia, onde foi feito o diagnóstico. Em meados de janeiro transferiram-no para uma clínica em Jena, perto de Naumburg. Permaneceu ali pouco mais de um ano. Em maio de 1890 voltou à casa materna.
Nos cem anos desde sua morte, Nietzsche foi adotado por variadas correntes intelectuais, artísticas e políticas: expressionistas, futuristas, existencialistas, psicanalistas, socialistas, fascistas e anarquistas reivindicaram sua herança -sobretudo na Europa que ele nunca deixou e sobre a qual refletiu apaixonadamente. Ele sabia que ela não passa de "uma península da Ásia", mas também que é a matriz do saber nesta Terra, para o bem e para o mal. Em "Humano, Demasiado Humano" ele prevê a unificação européia, na mesma página em que saúda a contribuição dos judeus à Europa. Cada época tem seu Nietzsche, enfatiza algo de seu imenso e contraditório legado. Se a Europa está realmente se unindo, enquanto as minorias aumentam e se multiplicam no seu interior, podemos escolher esse Nietzsche -esse que prega a mistura e a aliança. É aquele que, numa carta a sua mãe, declarou: "Embora eu talvez seja um mau alemão, certamente sou um bom europeu".


Paulo César de Souza é autor de "As Palavras de Freud" (Ed. Ática), entre outros livros, e tradutor de Nietzsche e Brecht.

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