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+sociedade
O mercado da desconfiança
Consumidores que baixam arquivos legalmente na internet têm
que abdicar
da própria privacidade e são maltratados por empresas que parecem acreditar que a honestidade não compensa,
diz antropólogo
Diante da cultura digital, muitas empresas afastam até quem se empenha em seguir todas as regras
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HERMANO VIANNA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Governos de vários
países estão criando leis para que
suas alfândegas
possam apreender
computadores com softwares,
músicas e filmes "piratas". Estou tranquilo: não há nada não
autorizado em meus "hard
disks". Mesmo canções: escuto
aquelas que seus autores disponibilizaram livremente na rede. Ou pago por imagens, sons,
textos, códigos quando avalio
que o preço é justo. Caso contrário, parto para outra: há uma
abundância de material interessante para se baixar legalmente e de graça por aí.
O problema é que, cada vez
mais, tenho me sentido punido
-ou tratado como otário- justamente ao agir dentro da lei, e
mesmo depois de pagar para
ter acesso a determinados bens
protegidos por leis que dizem
defender criadores/autores/
artistas.
Para entender o patético do
meu empenho na honestidade,
vale a pena narrar um episódio
recente, cheio de lições morais
bem contemporâneas.
Indignação
Vladimir Jankélévitch foi filósofo e também pianista. Numa de suas melhores entrevistas, as respostas eram dadas
tanto pela fala quanto por interpretações de obras de seus
compositores favoritos: Debussy, Fauré, Ravel. Tenho
uma transcrição de suas palavras, interrompidas por trechos de partituras, publicada
em livro nos anos 80 ["Vladimir
Jankélévitch", em francês, ed.
La Manufacture, 1986].
Meu exemplar está com páginas soltas de tanto que foi relido. Volto sempre a momentos
como aquele em que Jankélévitch declara que gosta mais da
luminosidade de Tolstói do que
dos subsolos de Dostoiévski:
"Estar em plena luz, na evidência, na presença total, quando
as coisas estão imóveis no ar do
meio-dia, é lá que o mistério é
mais perturbador".
Ou a resposta sobre a nostalgia: "O tempo revela o charme
das coisas sem charme. É por
isso que o tempo é poeta. Só os
poetas e pintores são capazes
de conhecer de imediato o
charme do presente. [...] Utrillo
[1883-1955] pintava um poste
ou um muro num subúrbio sórdido... e isso fazia sonhar. O que
os poetas e pintores sabem traduzir no presente, o tempo o
traduz para nós que não somos
nem pintores nem poetas. É o
tempo que é poeta para nós".
Queria comprar uma nova
edição do livro. Procurei nas lojas da internet: acho que está
esgotado. Lembrei que a entrevista tinha sido gravada originalmente para o rádio. Conseguir uma cópia do arquivo sonoro seria fenomenal. A conversa começa com Jankélévitch afirmando que seu meio
de expressão é o oral ("meu negócio não é a escritura").
O áudio apresentaria também seu piano. Fui então parar
no site do Instituto do Audiovisual (INA) francês, que anda digitalizando e vendendo o acervo das TVs e rádios públicas como a France Culture. Só havia
trechos da entrevista que procurava. Descobri que o que foi
publicado no meu livro era um
remix de várias entrevistas.
Como resultado da busca, encontrei o vídeo da edição de
"Apostrophes", com Jankélévitch (não) respondendo à pergunta "para que servem os filósofos?". Resolvi baixar para ver
o programa completo. Custava
5 (R$ 13). Caro para algo que,
se não me engano, foi pago pelo
dinheiro público francês há décadas. Mas sei que o trabalho de
digitalização e disponibilização
desse tipo de acervo não é barato, nem simples.
Resolvi colaborar. Fiz meu
cadastro e a compra. Sempre
receamos passar dados para
novos sites, que não sabemos se
são realmente seguros. É questão de confiança: esperamos
que seus administradores vão
ter cuidado com as informações. Mas mesmo tendo fornecido até o número do cartão de
crédito, logo descobrimos que o
INA não confia no comprador.
Não tinha sido informado
(ok, não li com atenção os termos de uso) de que precisaria
baixar outro programa para ver
o vídeo já pago. Resultado: novo
cadastro em outro site desconhecido e a obrigação de instalar um programa no qual também precisamos confiar (temos
mesmo a certeza de que o programa não vai transmitir informações de nosso computador
para sua empresa?).
E, depois disso tudo, antes de
ver o vídeo ainda somos obrigados a ultrapassar uma mensagem policial nos ameaçando
com o aviso de que o arquivo
contém uma marca d'água digital que nos identificaria caso
seja utilizado ilegalmente. Somos tratados todos como potenciais bandidos, como piratas
de vídeos filosóficos.
Negócio furado
Não vi a entrevista, indignado. A mesma indignação moral
que me causou outra compra
também motivada por Jankélévitch. Na entrevista-remix de
meu livro despedaçado, ele
conta que chora ouvindo música, e que as lágrimas sempre
acompanham qualquer audição de "L'Enfant et les Sortilèges" [A Criança e os Sortilégios], de Ravel.
Outro dia, numa das poucas
lojas de discos que nos restam,
deparei com uma nova gravação dessa obra, com a Filarmônica de Berlim conduzida por
Simon Rattle. Comprei, apesar
do preço extorsivo (três vezes
mais do que no exterior). Estou
virando quase uma central de
filantropia para modelos de negócios artísticos decadentes.
Na capa, dizia ser um OpenDisc: "Insira este CD no seu
computador para acessar o
EMI Classics Club. Acesse material bônus, sessões de escuta
exclusivas e mais". Claro: o
acesso não é imediato, apesar
do preço que pago pelo CD físico. É preciso fazer o cadastro, é
preciso concordar com a política de privacidade e termos de
uso sinistros. O "disc" não tem
nada de "open". Como ninguém lê esses contratos, vou
transcrever aqui algumas passagens.
Tudo começa aparentemente "do bem": "O OpenDisc respeita sua privacidade. Para
atendê-lo(a), precisamos coletar algumas informações pessoais. Nós nos preocupamos
em proteger essas informações.
Veja abaixo nossos compromissos em seu favor".
Para ver os compromissos
-"em nosso favor"-, precisamos clicar em vários links. Com
que finalidade as informações
são coletadas? "Essas informações são essenciais para nós,
bem como para o artista e para
a gravadora, para que forneçamos para você serviços com
qualidade e que o conheçamos
melhor." E ainda: "Ocasionalmente, usaremos suas informações pessoais para convidá-lo(a) a participar de pesquisas e
concursos para medir a sua satisfação".
Papo furado. Quem disse que
eu quero ser conhecido melhor
ou convidado para qualquer
coisa? CEP e data de nascimento não são necessários para o
serviço de ver vídeos e ouvir
música. Eles me obrigam a me
tornar conhecido, arquivando
meus dados. É o preço que pago
para ter acesso ao material que
me foi propagandeado como
"bônus" ou "aberto".
A política de privacidade, que
na realidade impõe a abdicação
da minha privacidade, diz também que minhas informações
não serão fornecidas para terceiros, mas podem ser enviadas
às subsidiárias da gravadora em
todo o mundo. Eu tenho que
confiar nessas subsidiárias todas, que nem sei quais são. E a
recíproca não é exatamente
verdadeira. Sou tratado com
extrema desconfiança: tanto
que não posso reproduzir, "em
qualquer meio", o conteúdo a
que tiver acesso.
Desisti de ter acesso. Como
desconfiam de mim, vou desconfiar também. Não sou ingrato. Pelo contrário: tenho
enorme gratidão pelos momentos de intensa alegria e iluminação cultural que me foram
proporcionados pelo trabalho
das grandes gravadoras. Acho
que as gravadoras também deveriam me agradecer: fui consumidor ideal, comprei milhares de discos (e comprei o mesmo disco várias vezes: em vinil,
em CD...), ajudei a divulgar a
carreira de muitos artistas etc.
Mas tudo tem limite.
A falta e o vício
É pena ver uma história de
criação tão rica terminando de
modo tão mesquinho, com o
público sendo tratado tão mal,
até por políticas de privacidade
tapeadoras. Quem paga é feito
de bobo. Essas políticas parecem querer nos ensinar que a
honestidade "não compensa".
Será muito difícil perceber que
tudo isso é suicídio comercial, é
perda de credibilidade total?
Volto à filosofia moral de
Vladimir Jankélévitch. No seu
livro "O Mal", ele identifica
uma gradação da malvadeza. A
falta é um acidente, uma negligência: pode acontecer com todo mundo. Já o vício "é o movimento da falta, continuado e
tornado crônico" -o vício está
para a falta assim como a paixão para a emoção momentânea. Mas ainda pode ter cura.
Já a "méchanceté" (maldade,
ruindade...) é o baixo absoluto,
o zênite do mal, uma "qualificação do caráter", algo que toma
conta da totalidade da pessoa.
Aí não tem mais jeito...
Diante da cultura digital,
muitas empresas já cometeram
muitas faltas, se tornaram viciadas nessas faltas e por isso
estão se transformando em
marcas ("brands", encarnações
etc.) da maldade, afastando
mesmo quem se empenha em
seguir todas as regras.
Ler Jankélévitch deveria ser
obrigatório para seus diretores
e advogados. Começando com
os livros "A Má Consciência" e
"A Mentira" até chegar, quem
sabe, no "Tratado das Virtudes", que está completando 60
anos de sua primeira publicação.
HERMANO VIANNA é antropólogo e pesquisador musical, autor de "O Mistério do Samba"
(ed. Jorge Zahar), entre outros livros.
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