|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Escritor traça o retrato completo do intelectual latino-americano em
"Uma Vida em Trânsito"
A vida exemplar de Ariel Dorfman
MOACYR SCLIAR
especial para a Folha
Se, como disse Sócrates, uma vida não examinada não vale a pena
ser vivida, o que podemos dizer da
vida bem examinada? Que ela dá,
no mínimo, um grande livro, como é o caso de "Uma Vida em
Trânsito". Ariel Dorfman está
longe de ser um desconhecido. Recentemente os cinemas exibiram
"A Morte e a Donzela", baseado
em uma peça teatral de sua autoria. Mas antes disto "Para Ler o
Pato Donald", que escreveu em
colaboração com o sociólogo Armand Mattelart, já havia se transformado no mais candente documento contra o colonialismo cultural já escrito em nosso continente.
Autobiografia, "Uma Vida em
Trânsito" reúne as qualidades
destas duas obras. Junta a emoção
que nos proporciona a melhor ficção com a sóbria precisão do ensaio. E o resultado é o retrato completo do intelectual latino-americano ao final deste tumultuado século.
Para minha geração é quase uma
mensagem pessoal. Tomem o meu
caso. Como Ariel Dorfman, sou
descendente de emigrantes judeus. Como ele, cresci com a esperança do socialismo e com a crença inabalável no poder do intelecto. Como ele, cheguei à maternidade à época em que os golpes sacudiram o nosso continente. No
caso de Dorfman, contudo, podemos falar de uma verdadeira epopéia. Realmente, sua acidentada
trajetória acabou por confrontá-lo
com as grandes questões políticas,
sociais e humanas de nosso tempo.
Nascido (1942) na Argentina, em
uma família de classe média, Dorfman começou a experimentar as
vicissitudes políticas já aos três
anos, quando seu pai, diplomata e
esquerdista (ele tinha dado ao filho o nome de Vladimiro Ariel, em
homenagem a Lênin), foi obrigado a deixar o país para se radicar
nos Estados Unidos. Ali, nova perseguição, desta vez por conta do
macartismo, e os Dorfman vão para o Chile, onde Ariel torna-se
professor universitário e assessor
cultural do governo Allende. Escapando à morte, Dorfman refugia-se na embaixada argentina e
depois volta para os Estados Unidos, onde vive agora, com a mulher Angélica e dois filhos, lecionando na Duke University.
Numerosos temas aborda essa
obra, convenientemente (e didaticamente) dividida em capítulos.
Temos, em primeiro lugar, a questão da identidade. Desde criança
Ariel Dorfman pergunta-se a que
lugar pertence e em que língua se
expressará melhor. O seu próprio
nome reflete esta confusão. Vladimiro é perigoso (nos Estados Unidos, o pai orienta-o a dizer que se
trata de homenagem a Vladimir
Horowitz, o pianista) e não lhe
agrada o Ariel. Acaba inventando
para si mesmo um aristocrático
"Edward", que provavelmente
corresponde a um alter ego
não-judaico e não-comunista
-aliás, numa cena perturbadora,
Dorfman conta como, em criança,
ameaçou o pai, com quem tinha
brigado, de denunciá-lo como comunista.
Dilema semelhante ocorre com a
língua. O emigrante em geral trata
de aprender o idioma do país em
que se radica, até por uma questão
de sobrevivência. Com o escritor
as coisas não são tão simples. A
língua é seu instrumento de trabalho; mais, é a sua forma de expressão emocional e artística.
O espanhol corresponde à sua
identidade latino-americana, e é
também uma opção ideológica,
mas "o inglês estava sendo transformado na língua franca da aldeia
global de McLuhan e não teria sido
fácil escapar dele, mesmo que eu
tivesse querido".
Este conflito, contudo, não é nada, comparado às atribulações pelas quais passou Ariel Dorfman.
Ele faz questão de dizer que não é
um herói, fala-nos de suas hesitações e de seus medos, mas é difícil
usar outro termo para descrever a
sua trajetória, senão o de heroísmo. As ameaças pelas quais passou foram assustadoramente
reais; de fato, só por acaso não estava no palácio presidencial de La
Moneda quando este foi bombardeado pela aviação de Pinochet
-o ataque que custou a vida de
Allende, ainda que por suicídio e
que o precipitou num verdadeiro
inferno de perseguição e fuga, em
que a ameaça de extermínio físico
se juntava à ameaça de extermínio
psicológico: "Isto é o que uma ditadura faz: nos transforma em amnésicos instantâneos, nos obriga a
passar pela vida como se estivéssemos de olhos vendados". Uma situação em que "um pormenor
mínimo pode significar a diferença entre a vida e a morte".
Vítima da ditadura, Dorfman
não tem a menor ilusão quanto à
posição do governo americano no
sangrento golpe (e em vários outros episódios, a invasão da Baía
dos Porcos, a intervenção na República Dominicana, a guerra do
Vietnã). Indigna-o o "incrível paradoxo gerado pelo fato de o país
de Jefferson financiar os tiranos,
ensinar a polícia como torturar,
enviar marines para manterem os
ricos a salvo em suas mansões e os
pobres miseráveis em suas choupanas".
Isso não quer dizer que ele seja
um esquerdista fanático. Ao contrário, um dos pontos altos de
"Uma Vida em Trânsito" é exatamente a dolorosa e honesta autocrítica que ele faz da conduta da
esquerda. Muito cedo ele se dá
conta de que há uma grande diferença entre a utopia teórica e a
prática cotidiana. Relata um cômico episódio em que ele, com outros companheiros, se propõe a
desenvolver um programa cultural em vilas populares ("O que é o
universo" é um dos temas a ser
abordado). Para atrair o público,
cada palestra é precedida da exibição de um desenho do Super-Mouse. No dia em que decidem realizar só a palestra, os moradores se enfurecem: eles querem
é o Super-Mouse -e provavelmente quereriam também o Pato
Donald, apesar do livro de Dorfman, que reconhece: "Eu queria
servir aos pobres, mas morava em
uma casa grande, com duas criadas, e dirigia o enorme carro de
diplomata do meu pai".
O golpe que derrubou Allende
pôs por terra as fantasias de muita
gente, mas permitiu que Dorfman
fizesse a autocrítica de sua geração. Se tivesse de resumir a um
companheiro os ensinamentos da
derrota, "eu lhe diria que não deveria ter confiado no Estado para
solucionar todos os problemas do
Chile ou na revolução para resolver todos os problemas. Eu lhe diria que foi injusto sobrecarregar
todo um povo com sua salvação.
Eu lhe diria que o desejo de pureza
pode levar ao fanatismo, à rivalidade étnica e ao fundamentalismo. Eu lhe diria que os pobres não
precisam ser representados por
uma voz paternalista, por mais benevolente que seja". E ainda:
"Podíamos culpar a CIA, os Estados Unidos, a oligarquia, os militares, tudo o que quiséssemos,
mas eles nunca teriam predominado se tivéssemos a maioria de
chilenos apoiando as nossas reformas".
É, então, Ariel Dorfman mais
um cristão-novo, um convertido
ao evangelho neoliberal? De maneira alguma: "Pinochet estava
preparando o mundo como o conhecemos hoje, onde a palavra revolução é relegada a anúncios sobre tênis, o lucro tornou-se a única base para se julgar o valor, o cinismo é a atitude predominante".
Em hebraico, Ariel quer dizer
"leão de Deus". Mas não foi a origem hebraica que inspirou a mãe
de Dorfman a escolher este nome:
"Ela adorava a personagem de
"A Tempestade', de Shakespeare,
o espírito do ar, da bondade e da
magia". Dessa forma, contrabalançava o nome "francamente político" escolhido pelo marido. A
vida de Ariel Dorfman é, metaforicamente falando, o resultado desse balanço. E é por isto uma vida
exemplar, tão exemplar quanto é
sua obra.
Moacyr Scliar é escritor, autor, entre outros, de
"O Centauro no Jardim" (L&PM) e de "A Majestade do Xingu" (Companhia das Letras).
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|