São Paulo, domingo, 6 de dezembro de 1998

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Escritor traça o retrato completo do intelectual latino-americano em "Uma Vida em Trânsito"
A vida exemplar de Ariel Dorfman

MOACYR SCLIAR
especial para a Folha

Se, como disse Sócrates, uma vida não examinada não vale a pena ser vivida, o que podemos dizer da vida bem examinada? Que ela dá, no mínimo, um grande livro, como é o caso de "Uma Vida em Trânsito". Ariel Dorfman está longe de ser um desconhecido. Recentemente os cinemas exibiram "A Morte e a Donzela", baseado em uma peça teatral de sua autoria. Mas antes disto "Para Ler o Pato Donald", que escreveu em colaboração com o sociólogo Armand Mattelart, já havia se transformado no mais candente documento contra o colonialismo cultural já escrito em nosso continente.
Autobiografia, "Uma Vida em Trânsito" reúne as qualidades destas duas obras. Junta a emoção que nos proporciona a melhor ficção com a sóbria precisão do ensaio. E o resultado é o retrato completo do intelectual latino-americano ao final deste tumultuado século.
Para minha geração é quase uma mensagem pessoal. Tomem o meu caso. Como Ariel Dorfman, sou descendente de emigrantes judeus. Como ele, cresci com a esperança do socialismo e com a crença inabalável no poder do intelecto. Como ele, cheguei à maternidade à época em que os golpes sacudiram o nosso continente. No caso de Dorfman, contudo, podemos falar de uma verdadeira epopéia. Realmente, sua acidentada trajetória acabou por confrontá-lo com as grandes questões políticas, sociais e humanas de nosso tempo.
Nascido (1942) na Argentina, em uma família de classe média, Dorfman começou a experimentar as vicissitudes políticas já aos três anos, quando seu pai, diplomata e esquerdista (ele tinha dado ao filho o nome de Vladimiro Ariel, em homenagem a Lênin), foi obrigado a deixar o país para se radicar nos Estados Unidos. Ali, nova perseguição, desta vez por conta do macartismo, e os Dorfman vão para o Chile, onde Ariel torna-se professor universitário e assessor cultural do governo Allende. Escapando à morte, Dorfman refugia-se na embaixada argentina e depois volta para os Estados Unidos, onde vive agora, com a mulher Angélica e dois filhos, lecionando na Duke University.
Numerosos temas aborda essa obra, convenientemente (e didaticamente) dividida em capítulos. Temos, em primeiro lugar, a questão da identidade. Desde criança Ariel Dorfman pergunta-se a que lugar pertence e em que língua se expressará melhor. O seu próprio nome reflete esta confusão. Vladimiro é perigoso (nos Estados Unidos, o pai orienta-o a dizer que se trata de homenagem a Vladimir Horowitz, o pianista) e não lhe agrada o Ariel. Acaba inventando para si mesmo um aristocrático "Edward", que provavelmente corresponde a um alter ego não-judaico e não-comunista -aliás, numa cena perturbadora, Dorfman conta como, em criança, ameaçou o pai, com quem tinha brigado, de denunciá-lo como comunista.
Dilema semelhante ocorre com a língua. O emigrante em geral trata de aprender o idioma do país em que se radica, até por uma questão de sobrevivência. Com o escritor as coisas não são tão simples. A língua é seu instrumento de trabalho; mais, é a sua forma de expressão emocional e artística.
O espanhol corresponde à sua identidade latino-americana, e é também uma opção ideológica, mas "o inglês estava sendo transformado na língua franca da aldeia global de McLuhan e não teria sido fácil escapar dele, mesmo que eu tivesse querido".
Este conflito, contudo, não é nada, comparado às atribulações pelas quais passou Ariel Dorfman. Ele faz questão de dizer que não é um herói, fala-nos de suas hesitações e de seus medos, mas é difícil usar outro termo para descrever a sua trajetória, senão o de heroísmo. As ameaças pelas quais passou foram assustadoramente reais; de fato, só por acaso não estava no palácio presidencial de La Moneda quando este foi bombardeado pela aviação de Pinochet -o ataque que custou a vida de Allende, ainda que por suicídio e que o precipitou num verdadeiro inferno de perseguição e fuga, em que a ameaça de extermínio físico se juntava à ameaça de extermínio psicológico: "Isto é o que uma ditadura faz: nos transforma em amnésicos instantâneos, nos obriga a passar pela vida como se estivéssemos de olhos vendados". Uma situação em que "um pormenor mínimo pode significar a diferença entre a vida e a morte".
Vítima da ditadura, Dorfman não tem a menor ilusão quanto à posição do governo americano no sangrento golpe (e em vários outros episódios, a invasão da Baía dos Porcos, a intervenção na República Dominicana, a guerra do Vietnã). Indigna-o o "incrível paradoxo gerado pelo fato de o país de Jefferson financiar os tiranos, ensinar a polícia como torturar, enviar marines para manterem os ricos a salvo em suas mansões e os pobres miseráveis em suas choupanas".
Isso não quer dizer que ele seja um esquerdista fanático. Ao contrário, um dos pontos altos de "Uma Vida em Trânsito" é exatamente a dolorosa e honesta autocrítica que ele faz da conduta da esquerda. Muito cedo ele se dá conta de que há uma grande diferença entre a utopia teórica e a prática cotidiana. Relata um cômico episódio em que ele, com outros companheiros, se propõe a desenvolver um programa cultural em vilas populares ("O que é o universo" é um dos temas a ser abordado). Para atrair o público, cada palestra é precedida da exibição de um desenho do Super-Mouse. No dia em que decidem realizar só a palestra, os moradores se enfurecem: eles querem é o Super-Mouse -e provavelmente quereriam também o Pato Donald, apesar do livro de Dorfman, que reconhece: "Eu queria servir aos pobres, mas morava em uma casa grande, com duas criadas, e dirigia o enorme carro de diplomata do meu pai".
O golpe que derrubou Allende pôs por terra as fantasias de muita gente, mas permitiu que Dorfman fizesse a autocrítica de sua geração. Se tivesse de resumir a um companheiro os ensinamentos da derrota, "eu lhe diria que não deveria ter confiado no Estado para solucionar todos os problemas do Chile ou na revolução para resolver todos os problemas. Eu lhe diria que foi injusto sobrecarregar todo um povo com sua salvação. Eu lhe diria que o desejo de pureza pode levar ao fanatismo, à rivalidade étnica e ao fundamentalismo. Eu lhe diria que os pobres não precisam ser representados por uma voz paternalista, por mais benevolente que seja". E ainda: "Podíamos culpar a CIA, os Estados Unidos, a oligarquia, os militares, tudo o que quiséssemos, mas eles nunca teriam predominado se tivéssemos a maioria de chilenos apoiando as nossas reformas".
É, então, Ariel Dorfman mais um cristão-novo, um convertido ao evangelho neoliberal? De maneira alguma: "Pinochet estava preparando o mundo como o conhecemos hoje, onde a palavra revolução é relegada a anúncios sobre tênis, o lucro tornou-se a única base para se julgar o valor, o cinismo é a atitude predominante".
Em hebraico, Ariel quer dizer "leão de Deus". Mas não foi a origem hebraica que inspirou a mãe de Dorfman a escolher este nome: "Ela adorava a personagem de "A Tempestade', de Shakespeare, o espírito do ar, da bondade e da magia". Dessa forma, contrabalançava o nome "francamente político" escolhido pelo marido. A vida de Ariel Dorfman é, metaforicamente falando, o resultado desse balanço. E é por isto uma vida exemplar, tão exemplar quanto é sua obra.


Moacyr Scliar é escritor, autor, entre outros, de "O Centauro no Jardim" (L&PM) e de "A Majestade do Xingu" (Companhia das Letras).



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