São Paulo, domingo, 6 de dezembro de 1998

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PONTO DE FUGA

O acaso e a modéstia

JORGE COLI
especial para a Folha

A mais importante contribuição brasileira para as artes plásticas neste nosso século foi, sem dúvida, a gravura. Esta convicção é plenamente confirmada pela mostra que, no Centro Cultural da Fiesp (SP), traz ao público a coleção Mindlin. Os colecionadores, Guita e José, declinam, porém, desse título com verdadeira modéstia. Foi por acaso, dizem, que reuniram as obras ali presentes, uma fenomenal série de tiragens e matrizes. Acaso lúcido, porém, porque as escolhas são de uma tal qualidade, as obras, todas, de um tal nível que o conjunto se impõe como o melhor do melhor. Incorporar as madeiras e os metais à coleção significa um discernimento complementar: se alguns parecem confidenciar segredos do ato criador, outros adquirem a força de obras autônomas, com uma natureza diversa da marca deixada no papel.
São assim as delicadas placas de cobre de Evandro Carlos Jardim ou ainda os poderosos blocos das "Apoteoses", de Maria Bonomi, que possuem a força de verdadeiras esculturas. Talvez faltem apenas os entalhes de Samico na madeira, raros pelo acabamento meticuloso e pela beleza definitiva, embora haja dele, na mostra, um farto conjunto de tiragens, das quais muitas são prova de artista. A sequência numerosa das obras de Renina Katz é deslumbrante, sustentada sobretudo por sua série "stendhaliana", seus "Ares e Lugares". Mas é injusto falar de alguns e não falar de todos: o "acaso" Mindlin teve o dom da seleção sem erros.

CHIQUÍSSIMO - O Museu de Arte Moderna (MAM-SP) expõe a coleção Adolpho Leirner. No título, a expressão "Arte Construtiva", empregada como se fosse corrente na história e na crítica das artes, revela antes um embaraço: o de encontrar a palavra justa para exprimir afinidades entre as obras reunidas pelo colecionador. Dificuldade que assinala a força dessas intuições associativas precedentes ao conceito abstrato. Nem toda construção é geométrica, e na coleção Leiner a geometria conduz os vínculos entre móveis, cartazes, quadros. Uma cama art déco, de 1930, um objeto cinético, um relevo "op art", uma escultura concretista passam, por obra do rigor intuitivo que as juntou, a inserirem-se numa mesma e insuspeitada família. Fruto de grande refinamento, de um gosto formado na elegância contida dos anos 50, ela busca, no percurso da mostra, seu passado e seu futuro. Esta bela exposição distancia todo sentimento de "profundidade" mal-educado e "raseur", em benefício de uma harmonia sem perturbações nem angústias, que circula entre o objeto decorativo e a obra confidencial.

TANGO - Quando alguém encontra um argentino e lhe diz: "Como vai?", obtém, como resposta, uma expressão amargurada e uma voz trêmula dizendo: "Querés que te cuente?". Se esta historinha é verdadeira, o último filme de Babenco é o mais argentino de todos. Nele, há um masoquismo latente, que se compraz em revirar o punhal dentro das próprias feridas físicas e morais. Os dramas verdadeiros, vividos pelo autor, são dolorosamente celebrados pela ficção e, mais o filme avança para o final, mais adquire força e grandeza.

HORIZONTES - Na Galeria Múltipla de Arte (SP), as paisagens imaginárias de Nelson Screnci, minuciosas e tranquilas. Não são ambiciosas, são fiéis a um fazer meticuloso, tecendo azuis e verdes com sinais da memória: cidadezinhas, circos, trens de ferro. As últimas telas inventam apenas massas vegetais, reconstruindo uma densidade tropical de Mata Atlântica que desce por encostas, envolvida na atmosfera saturada de brumas.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli20@hotmail.com




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