São Paulo, domingo, 07 de janeiro de 2007

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Emily Dickinson cult e em nova versão

Nova tradução de José Lira contempla 245 poemas da autora americana

IVO BARROSO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Idied for Beauty" (morri pela beleza) é um verso de Emily Dickinson [1830-1886] que soa familiar ao leitor brasileiro, traduzido que foi inúmeras vezes, desde os anos 40, quando adquiriu foros nacionais na versão do grande Manuel Bandeira. Segundo o minucioso pesquisador Carlos Daghlian, da Universidade Estadual Paulista, campus São José do Rio Preto, pode-se contar até agora cerca de 75 tradutores de Emily em língua portuguesa, entre os quais destacamos Aïla de Oliveira Gomes e Idelma Ribeiro de Faria, que nos anos 80 nos deram, cada qual, uma centena dessas composições.
Uma nova tradução, de José Lira, lançada agora pela Iluminuras, contempla 245 delas, o que ainda poderia parecer pouco em relação aos quase 1.800 pequenos poemas que se creditam à autora. Mas conhecendo as condições em que foram escritos, e analisados cada um de "per se", pode-se dizer -sem ofender os dicksonianos menos ortodoxos- que grande parte dessa produção é perfeitamente descartável, seja pela sua repetitividade, seja pela total impossibilidade de se saber o que está escrito ou o que esses versos querem dizer. No entanto, críticos da importância de um Louis Untermeyer, defensores de um "zelo devocional", acham que nenhuma linha deles seria dispensável.
A Emily Dickinson "cult", uma "poeta para poetas" no dizer de [Otto Maria] Carpeaux, goza de absoluta unanimidade no mundo literário e seria inteiramente fora de propósito achar que seu mérito seja discutível. Mesmo os que reconhecem um acentuado "parti pris" nas opiniões de um Harold Bloom -que a considera "a maior poeta ocidental de todos os tempos, colocada logo abaixo de Shakespeare"- estão cônscios de que o ineditismo formal, a profundidade conceptualística, a "espantosa complexidade intelectual" da poesia dessa americana de Amherst (Massachusetts) fazem de sua obra a influência referencial mais identificável da poesia moderna.
Parece que Emily tinha a intuição de estar escrevendo para além de seu tempo, tanto assim que quase nada (apenas dez poemas) publicou em vida, engavetando sistematicamente todos seus papéis avulsos e os bilhetes cifrados num código de hermética poesia que enviava às amigas, com as quais se recusava a conviver. Tia, feia e solteirona à semelhança de Jane Austen, passou os últimos 25 anos de sua vida de 56 enclausurada num quarto sem receber ou falar com ninguém.
Alguns estudiosos procuram atribuir sua atividade literária a um ou vários amores, que sua formação calvinista não lhe permitiu assumir.
Mas isto seria muito pouco para gerar um "corpus" de tamanha abrangência estrutural, com sua pontuação personalíssima; a impregnação de um sentimento ontológico capaz de transformar a idéia da natureza em símbolo da morte; a dislexia frasal, com suas interrupções bruscas e desvairadas mudanças de rumo. Emily viveu uma ascese espiritual em sentido oposto, um mergulho no nada, a descoberta do outro lado da alma, uma luta não para vencer a morte mas a vida.

Tradução e recriação
Toda nova tradução de um livro célebre tem por obrigação ser superior às que a antecederam. E aqui está o grande mérito de José Lira, que desde muito vem se dedicando ao estudo de Emily Dickinson, principalmente no que respeita ao seu uso peculiar da rima. Ele próprio afirma no prefácio da obra que se ocupou "não apenas em "traduzir" poesia, mas em "fazer" poesia". Daí ter optado por um processo tripartite de tradução que consiste em transladar os poemas por meio de "recriações", "imitações" e "invenções" (denominações do próprio). Por sorte, "recriações" aqui não têm o mesmo sentido que em outras partes, em que o tradutor substitui o poema original por outro, seu. Essas recriações -algumas excelentes- são aquilo que se chamava antigamente de "tradução integral", em que o tradutor procura captar o máximo de elementos formais e substanciais do original. Com esta edição bilíngüe, o leitor poderá avaliar até que ponto o conseguiu.
Preocupado com seu profundo entendimento da rima dicksoniana, Lima às vezes opta por uma solução que, embora tecnicamente perfeita, nem sempre agradará o leitor por forçar um desvio ou "ruído" na ânsia de reproduzir um aspecto formal (talvez de pouca importância para o leitor). Nas "imitações", os aspectos formais são menos observados, há alguma "desambigüição de termos e expressões mais obscuras, resultando em textos menos fiéis porém mais "fluidos'". E, finalmente, nas "invenções", a técnica usada equivale ao que para outros tradutores é a chamada "recriação": a substituição de Emily por experiências formais à la Pound.
Embora sejam um verdadeiro tratado tradutório ("tradução para tradutores"), que certamente os cultores do gênero não deixarão de apreciar, estes magníficos "resgates" de José Lira o recomendam como livro que nenhum leitor habitual de poesia poderá dispensar.


IVO BARROSO é poeta e crítico, autor de "A Caça Virtual" (Record). Traduziu, entre outros, Arthur Rimbaud.

ALGUNS POEMAS Autor: Emily Dickinson
Tradução: José Lira
Editora: Iluminuras (tel. 0/xx/11/ 3031-6161)
Quanto: R$ 44 (320 págs.)


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