São Paulo, domingo, 07 de fevereiro de 2010

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O sal de Eno

CHARLES GAVIN, DOS TITÃS, DIZ QUE ABERTURA A VÁRIAS INFLUÊNCIAS TORNA INGLÊS SÓ COMPARÁVEL A GEORGE MARTIN, QUE PRODUZIU OS BEATLES

ERNANE GUIMARÃES NETO
DA REDAÇÃO

Charles Gavin diz ter sorte por haver trabalhado com bons produtores. Para o baterista dos Titãs, a orientação estilística e de repertório pode até ser rejeitada por artistas mais independentes -e fechados musicalmente-, mas a maioria dos músicos usaria, se pudesse pagar, os serviços de um Brian Eno. Pragmático, Gavin concorda com a ambição de Eno de encontrar um meio-termo entre experimento e comércio. "O capitalismo está aí para isso". Gavin coleciona discos e organizou o livro "300 Discos Importantes da Música Brasileira" (ed. Instituto Sou da Paz).
Na entrevista abaixo, ele comenta os produtores dos Titãs e a cena brasileira. "Os erros que tivemos na carreira foram por nossa conta, não creditaria a nenhum produtor."

 

FOLHA - Qual é o papel de um produtor musical?
CHARLES GAVIN
- No caso de produção de discos, é enxergar a potencialidade do artista e fazê-lo render ao máximo. O bom produtor compreende com quem está lidando e elabora um plano artístico. Isso pode envolver intervenção direta, como tocar junto, chamar outros músicos, reformular a banda. Há bandas que chegam com quase tudo pronto, então ele se cerca do melhor tecnicamente para registrar a música.

FOLHA - E o que faz Brian Eno?
GAVIN
- Ele se especializou em escutar o que o artista trouxe e dar muitas sugestões. Interfere no resultado. Não se coloca só como músico, mas como pensador. Os discos com Bowie, nos anos 70, tinham essa abordagem de pensar no "conceito".

FOLHA - Que outros nomes têm o apelo dele entre os profissionais?
GAVIN
- É difícil comparar. Eno é diferente porque não só entende muito do processo técnico, mas ajuda com ideias para o disco, sem que os resultados fiquem parecidos.

FOLHA - Como se percebe sua mão ao ouvir David Bowie ou U2?
GAVIN
- No U2 é mais fácil perceber do que em Bowie, o "camaleão". Bowie sempre mudou muito de disco para disco, tem facilidade em transitar entre estilos. Com o U2, é só ver o que a banda fez antes de Brian Eno. Fizeram discos muito bons com Steve Lillywhite. Mas chegou um momento em que quiseram experimentar uma nova sonoridade. No primeiro disco com Eno, "The Unforgettable Fire", o som mudou bastante, mas continuou sendo U2. Ele não muda a sonoridade de uma banda como fazem outros produtores, como Trevor Horn [que produziu discos recentes de Robbie Williams e Pet Shop Boys]. Este faz tudo: escolhe repertório, forma a banda, toca, faz o grupo acontecer, é quase um mágico. Os ingleses sempre apostaram na melodia, e os três primeiros discos do Coldplay investiram nisso. Mas seu vocabulário musical era muito fechado. Já "Viva la Vida" está cheio de texturas novas, por exemplo ritmos orientais, com tabla, música árabe. Há momentos em que, para se renovar, é preciso mudar a instrumentação. Eno sabe usar a programação de instrumentos como poucos, a favor da banda. Certos produtores usam tantas máquinas que deixam os músicos em segundo plano. No Coldplay, há momentos em que a bateria é programada. Eno fez muito isso com o U2, por exemplo em "Achtung Baby". É claro que, ao vivo, é preciso fazer adaptações. Porque, ao vivo, são outros códigos, precisa de humanidade. O único produtor que me vem à cabeça e que tinha a mente tão aberta, apesar de muito diferente, era George Martin -até porque os Beatles precisavam disso.

FOLHA - Produtores como Liminha, de Gilberto Gil e Os Paralamas do Sucesso, Jack Endino, de Nirvana e Mudhoney, e Rick Bonadio, de Charlie Brown Jr. e CPM 22, necessariamente levam os Titãs a lugares musicais diferentes?
GAVIN
- Os três levaram, cada um da sua forma. Respeito muito o Lulu Santos, que fez nosso segundo disco, "Televisão" -que só não é melhor porque a banda estava em formação. Peninha, que produziu o primeiro disco, também foi muito importante. Aprendi muito com Liminha. Vi canções que já tinham um formato, como no disco "Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas", que ele gravou bem. "Comida" tinha uma batida funk, que Liminha entendeu que poderia ter algo de música eletrônica. Ele foi muito feliz, acabou fazendo um arranjo que entrou para nossa história. E fazia a gente tocar bem, de forma relaxada, orgânica.

FOLHA - Os produtores brasileiros melhoraram? Vocês trouxeram o americano Jack Endino por falta de opção?
GAVIN
- Escolhemos o Endino antes do estouro do Nirvana -era uma opção estética que poderíamos pagar. Mas, mesmo que pegássemos o produtor mais caro e badalado, só funcionaria se o cara tivesse disposição de conhecer o mercado. E ele teve: nós o levamos para assistir a um show do João Gilberto, nós o fizemos ouvir rádio, mesmo não querendo nenhuma das alternativas ali ofertadas, mas para saber como era o som que se fazia por aqui. Naquela época, dos anos 80 para os 90, não havia tantos produtores. Uma das funções do rock brasileiro foi trazer um pouco de tecnologia. Nos anos 70, o rock viveu dos talentos artísticos, Rita Lee, Raul Seixas, Secos & Molhados, O Terço... Nossa geração precisava de um passo à frente.

FOLHA - Dos "300 Discos Importantes da Música Brasileira", que produtores vêm à mente?
GAVIN
- A figura do produtor ficou mais definida na indústria brasileira nos anos 70.
Até os anos 60, havia confusão entre quem é arranjador, técnico ou produtor. Mazzola fez discos fantásticos, "Krig-Ha, Bandolo!", do Raul, e "África Brasil", de Jorge Ben.
No Brasil, a gente tem o péssimo hábito de execrar quem tem performances estupendas.
É um erro "queimar" quem vende bem. O capitalismo está aí para isso. A música de rádio tem a mão do produtor, isso é legítimo e tem gente que gosta. Se um cara vende muito, é um mérito. Se a obra vai permanecer, é o tempo que vai dizer.


Texto Anterior: A vida de Brian
Próximo Texto: Erudito dissonante
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.