São Paulo, Domingo, 07 de Fevereiro de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Idéia de nação ressurge como último baluarte contra poder do liberalismo global
O nacionalismo de esquerda

ANTONIO NEGRI
especial para a Folha

As últimas notícias afirmam que a sereia do nacionalismo está começando a fascinar os intelectuais de esquerda, não somente na Europa, mas também nos EUA. Renasce um nacionalismo de esquerda. Acreditava-se que, no século 20, evocações nada agradáveis tivessem sido definitivamente eliminadas: recorda-se das sociais-democracias européias que, no início do século, votaram os créditos de guerra na Chambre francesa e no Reichstag berlinense, prelúdio dos massacres inefáveis de que as nações foram vítimas? Está renascendo, então, um nacionalismo de esquerda: perturbado pelas dimensões e efeitos da mundialização e pela dificuldade de pensar globalmente, o intelectual de esquerda está se perguntando se o Estado-nação não teria se tornado o último baluarte contra o transbordamento do poder do liberalismo global, isto é, das multinacionais integradas do capitalismo mundial.
A defesa do Estado de Bem-Estar Social (do pouco que ainda resta) só parece possível nessa base: do semelhante, apenas em uma base nacional é que a cultura popular pode ser sustentada. O espaço nacional parece ser, desse modo, o único espaço possível para a mobilização democrática de massa e, por conseguinte, o único em que vale a pena se organizar. Será útil frisar que, nesse novo nacionalismo de esquerda, encontramos alinhados tanto intelectuais provenientes da tradição do radicalismo marxista anticapitalista quanto intelectuais que representam a continuidade do radicalismo liberal.
Do primeiro filão são representativos os autores que se organizam ao redor do "Le Monde Diplomatique". A polêmica contra o "pensamento único" neoliberal procura, nesse caso, converter-se em programa de ação reformadora, e a esse programa convoca-se, como protagonista, o Estado-nação. No segundo território, o do radicalismo liberal, Richard Rorty afirma-se qual corifeu de um novo nacionalismo. Em "Achieving Our Country" (Harvard University Press, 1998) a crítica do cosmopolitismo da "New Left" dos anos 60 e 70 insiste na vocação democrática da cultura constitucional dos EUA e na coincidência de espírito nacional e progressismo.
O que pensar dessa última transfiguração do "espírito crítico" de esquerda? O que dizer da "conversão nacionalista" do radicalismo político na época do pós-moderno? Como mostrar que essa tomada de posição é ilusória, mistificadora e perigosa?
Para reagir nesse sentido, parece-me que (aos autores que consideramos até o momento) temos o dever de uma resposta comum e de outras diferenciadas. A comum é uma resposta de verdade, e fácil: o Estado-nação é um objeto arqueológico, ou melhor, não existe mais. A sua consistência é nula, e, no pós-moderno, na época do império americano, sua permanência é a de uma casca vazia, ou seja, (tecnicamente) é a permanência de um tronco administrativo que possibilita o trânsito -maior do que, de modo espontâneo, o mercado mundial poderia- das regras desse último dentro de cada país. Quem pensa, então, que o Estado-nação possa organizar resistência e representar uma arma de defesa para as classes subordinadas está caindo numa esparrela. Nacionalismo e Estado-nação não são e não vão resultar em lugares de resistência e de emancipação da regra imperial, não passam de uma armadilha, de um lugar em que qualquer pretensão de autonomia pode ser esmagada.
A não ser que sejamos os mais fortes: os americanos. Ou seja, a menos que não pertençamos à nação cujos interesses correspondem quase inteiramente aos dos donos do mercado mundial. Além dos EUA não há muitos outros países a terem tais características. O nacionalismo dos intelectuais americanos de esquerda é, portanto (e é o mínimo que podemos dizer), um conceito ambíguo, que corre o risco de se tornar algo sujo. Que generosidade, com efeito, pode ser atribuída a essa conversão nacionalista dos intelectuais americanos? Esta parece, antes, pura e simplesmente uma declaração filosófica de força.
Mesmo quando, em sua retomada da tradição patriótica, Rorty pretende trazer novamente à luz o nacionalismo da época progressista -e particularmente o que no início do século fora o produto da escola de Dewey-, é bastante difícil pensar que essa reivindicação tenha um conteúdo verídico e uma eficácia política reformadora. Como podemos, de fato, ter a ilusão de que o nacionalismo possa contribuir, hoje, para a reconstrução daquela forte esperança que as lutas operárias (e o reformismo de muitos patrões capitalistas também) haviam determinado nos EUA entre o início do século e o New Deal? Aquelas condições desapareceram por completo.
O problema, então, não é o de revocar teorias do nacionalismo progressivo. Claro, alguns autores desse novo nacionalismo dizem-nos (sejam eles ex-marxistas ou libero-radicais): se nós podemos pensar globalmente, não podemos agir globalmente, portanto só podemos agir partindo de nossas condições nacionais. Ao que se pode objetar: seria muito cômodo se assim fosse... Na realidade o processo de globalização está bastante adiantado; em nível nacional nada se faz. O desafio, portanto, é o de "agir globalmente": logo não se trata apenas de pensar, mas de agir globalmente. Rorty tem razão: é preciso voltar para trás, ou seja, verificarmos onde estaria a força do reformismo entre os séculos 19 e 20. Mas então veríamos que essa força nunca residiu no nacionalismo, mas, antes, naquelas lutas de classe que cruzavam as fronteiras, que se apresentavam como ciclo internacional e que, portanto, constituíam um movimento insurrecional.
Temos a força de agir globalmente? Responder positivamente à questão significa considerar que hoje a luta proletária só é possível se for definida em oposição às condições internacionais, imperiais, do domínio. Só se for capaz de reconstruir ciclos internacionais de luta. Ou seja, ciclos globais de luta anticapitalista, antiimperial, antinacional. Trata-se, certamente, de um longo caminho a ser percorrido: mais breve, no entanto, do que qualquer sinistra ideologia da nação.


Antonio Negri é cientista social italiano, autor de "A Anomalia Selvagem" (Ed. 34), entre outros; ele escreve mensalmente na Folha, na seção "Autores".
Tradução de Roberta Barni.




Texto Anterior: Autores - Bruno Latour: O curto-circuito da economia
Próximo Texto: Conheça
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.