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Idéia de nação ressurge como último baluarte contra poder do liberalismo global
O nacionalismo de esquerda
ANTONIO NEGRI
especial para a Folha
As últimas notícias afirmam que
a sereia do nacionalismo está começando a fascinar os intelectuais
de esquerda, não somente na Europa, mas também nos EUA. Renasce um nacionalismo de esquerda. Acreditava-se que, no século
20, evocações nada agradáveis tivessem sido definitivamente eliminadas: recorda-se das sociais-democracias européias que,
no início do século, votaram os
créditos de guerra na Chambre
francesa e no Reichstag berlinense, prelúdio dos massacres inefáveis de que as nações foram vítimas? Está renascendo, então, um
nacionalismo de esquerda: perturbado pelas dimensões e efeitos da
mundialização e pela dificuldade
de pensar globalmente, o intelectual de esquerda está se perguntando se o Estado-nação não teria
se tornado o último baluarte contra o transbordamento do poder
do liberalismo global, isto é, das
multinacionais integradas do capitalismo mundial.
A defesa do Estado de Bem-Estar
Social (do pouco que ainda resta)
só parece possível nessa base: do
semelhante, apenas em uma base
nacional é que a cultura popular
pode ser sustentada. O espaço nacional parece ser, desse modo, o
único espaço possível para a mobilização democrática de massa e,
por conseguinte, o único em que
vale a pena se organizar. Será útil
frisar que, nesse novo nacionalismo de esquerda, encontramos alinhados tanto intelectuais provenientes da tradição do radicalismo
marxista anticapitalista quanto intelectuais que representam a continuidade do radicalismo liberal.
Do primeiro filão são representativos os autores que se organizam ao redor do "Le Monde Diplomatique". A polêmica contra o
"pensamento único" neoliberal
procura, nesse caso, converter-se
em programa de ação reformadora, e a esse programa convoca-se,
como protagonista, o Estado-nação. No segundo território, o do
radicalismo liberal, Richard Rorty
afirma-se qual corifeu de um novo
nacionalismo. Em "Achieving
Our Country" (Harvard University Press, 1998) a crítica do cosmopolitismo da "New Left" dos
anos 60 e 70 insiste na vocação democrática da cultura constitucional dos EUA e na coincidência de
espírito nacional e progressismo.
O que pensar dessa última transfiguração do "espírito crítico" de
esquerda? O que dizer da "conversão nacionalista" do radicalismo político na época do pós-moderno? Como mostrar que essa tomada de posição é ilusória, mistificadora e perigosa?
Para reagir nesse sentido, parece-me que (aos autores que consideramos até o momento) temos o
dever de uma resposta comum e
de outras diferenciadas. A comum
é uma resposta de verdade, e fácil:
o Estado-nação é um objeto arqueológico, ou melhor, não existe
mais. A sua consistência é nula, e,
no pós-moderno, na época do império americano, sua permanência é a de uma casca vazia, ou seja,
(tecnicamente) é a permanência
de um tronco administrativo que
possibilita o trânsito -maior do
que, de modo espontâneo, o mercado mundial poderia- das regras desse último dentro de cada
país. Quem pensa, então, que o
Estado-nação possa organizar resistência e representar uma arma
de defesa para as classes subordinadas está caindo numa esparrela.
Nacionalismo e Estado-nação não
são e não vão resultar em lugares
de resistência e de emancipação da
regra imperial, não passam de
uma armadilha, de um lugar em
que qualquer pretensão de autonomia pode ser esmagada.
A não ser que sejamos os mais
fortes: os americanos. Ou seja, a
menos que não pertençamos à nação cujos interesses correspondem quase inteiramente aos dos
donos do mercado mundial. Além
dos EUA não há muitos outros
países a terem tais características.
O nacionalismo dos intelectuais
americanos de esquerda é, portanto (e é o mínimo que podemos dizer), um conceito ambíguo, que
corre o risco de se tornar algo sujo.
Que generosidade, com efeito, pode ser atribuída a essa conversão
nacionalista dos intelectuais americanos? Esta parece, antes, pura e
simplesmente uma declaração filosófica de força.
Mesmo quando, em sua retomada da tradição patriótica, Rorty
pretende trazer novamente à luz o
nacionalismo da época progressista -e particularmente o que no
início do século fora o produto da
escola de Dewey-, é bastante difícil pensar que essa reivindicação
tenha um conteúdo verídico e
uma eficácia política reformadora.
Como podemos, de fato, ter a ilusão de que o nacionalismo possa
contribuir, hoje, para a reconstrução daquela forte esperança que as
lutas operárias (e o reformismo de
muitos patrões capitalistas também) haviam determinado nos
EUA entre o início do século e o
New Deal? Aquelas condições desapareceram por completo.
O problema, então, não é o de
revocar teorias do nacionalismo
progressivo. Claro, alguns autores
desse novo nacionalismo dizem-nos (sejam eles ex-marxistas
ou libero-radicais): se nós podemos pensar globalmente, não podemos agir globalmente, portanto
só podemos agir partindo de nossas condições nacionais. Ao que se
pode objetar: seria muito cômodo
se assim fosse... Na realidade o
processo de globalização está bastante adiantado; em nível nacional
nada se faz. O desafio, portanto, é
o de "agir globalmente": logo
não se trata apenas de pensar, mas
de agir globalmente. Rorty tem razão: é preciso voltar para trás, ou
seja, verificarmos onde estaria a
força do reformismo entre os séculos 19 e 20. Mas então veríamos
que essa força nunca residiu no
nacionalismo, mas, antes, naquelas lutas de classe que cruzavam as
fronteiras, que se apresentavam
como ciclo internacional e que,
portanto, constituíam um movimento insurrecional.
Temos a força de agir globalmente? Responder positivamente
à questão significa considerar que
hoje a luta proletária só é possível
se for definida em oposição às
condições internacionais, imperiais, do domínio. Só se for capaz
de reconstruir ciclos internacionais de luta. Ou seja, ciclos globais
de luta anticapitalista, antiimperial, antinacional. Trata-se, certamente, de um longo caminho a ser
percorrido: mais breve, no entanto, do que qualquer sinistra ideologia da nação.
Antonio Negri é cientista social italiano, autor
de "A Anomalia Selvagem" (Ed. 34), entre outros; ele escreve mensalmente na Folha, na seção "Autores".
Tradução de Roberta Barni.
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