São Paulo, Domingo, 07 de Fevereiro de 1999
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Bourdieu investiu na redefinição teórica do "contexto", a realidade social abrangente
Um intelectual do sentido

SERGIO MICELI
especial para a Folha

Pierre Bourdieu pertence ao punhado de cientistas sociais contemporâneos (Raymond Williams é outro caso marcante) que ascenderam à condição de liderança intelectual pelos caminhos da promoção escolar garantidos por um sistema público de ensino.
Nascido em 1930 na família de um modesto funcionário dos correios na região do Béarn, próxima dos Pireneus e da Espanha, ele se diplomou em filosofia, aos 25 anos, na Escola Normal Superior (rue d'Ulm, Paris), o núcleo de recrutamento e formação da elite intelectual francesa.
Após alguns anos probatórios como docente em cidades da província (Moulins, Lille) e na Argélia, conseguiu eleger-se diretor de estudos na prestigiosa Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais em 1964, demasiado jovem segundo os padrões locais de carreira acadêmica. Pouco antes havia se casado com Marie-Claire Brizard, socióloga e filha de um médico, com quem teve três filhos homens.
Residiu muitos anos numa casa de subúrbio de classe média ao sul de Paris, tendo adquirido um apartamento perto da Bastilha após sua eleição para o Collège de France, em 1981, para titular da cadeira de sociologia. Os primeiros anos de sua atividade intelectual foram marcados pelo trabalho de campo na Argélia, dando fecho a esse período os três estudos de etnologia da sociedade cabila incluídos no "Esboço de uma Teoria da Prática" (1972), ensaio sensível em que explicita alguns dos princípios norteadores de uma sociologia da sociologia e, por extensão, de toda atividade simbólica.
Estou me valendo dessa sucinta história de vida no intuito de ressaltar atitudes pessoais que julgo importantes para entendermos os rumos de seu trabalho científico, os estilos de sua conduta acadêmica e os conteúdos de suas tomadas de posição intelectuais e políticas.
A primeira delas é o fato de não ter aderido aos sinais ostentatórios de aburguesamento, assumindo apenas a readaptação mínima indispensável no trato íntimo, na indumentária discreta, na postura corporal, no manejo da língua para que não parecesse um "transgressor" dos usos e costumes dos espaços sociais aos quais teve acesso por conta do tipo de educação e do sucesso profissional alcançado.
Continuou passando as férias em sua região de origem; movimentava-se em Paris com um calhambeque que destoava dos veículos de seus pares na garagem da moderna Maison des Sciences de l'Homme, no boulevard Raspail. Tal como se pode perceber em fotos e sobretudo no contato pessoal, sua expressão guardou muito do talho camponês e da energia gerada pelo convívio com o ambiente de seus antepassados.
A memória dessas marcas é um tópico obsessivamente reiterado ao longo de sua obra, insistindo sempre nos ganhos heurísticos dessa experiência cruzada entre o "desenraizamento de um universo familiar" e a "familiarização com um universo estrangeiro".

As análises das práticas de produção e consumo culturais mobilizaram procedimentos imaginativos e heterodoxos na obra de Bourdieu


O leitor poderá assim avaliar os nexos biográficos que, em certa medida, são responsáveis pela persistência de alguns dos temas e problemas desenvolvidos ao longo de quatro décadas de uma produção intelectual invejável.
As análises sobre as funções reprodutoras do sistema de ensino, as pesquisas acerca dos mecanismos de constituição dos padrões de gosto e até mesmo a defesa apaixonada dos direitos sociais conquistados pelos trabalhadores nos países desenvolvidos tematizam, cada qual a seu modo, a sua doída experiência de saber-se uma exceção escolar, um beneficiário de políticas públicas "universalizantes", ungido e consagrado para zoar e desarmar o bom-mocismo prevalecente no campo intelectual e nos meios de comunicação em geral. Não se trata apenas de uma crítica ideológica, de tom elevado, aos princípios abstratos do credo neoliberal, mas de intervenções desabridas, afogueadas pela indignação, de um rebelde da elite intelectual que sabe o quanto deve à corporação escolar.
Até mesmo sua eleição para o Collège de France pode ser debitada à radicalidade de sua postura intelectual sem lastro em círculos burgueses e, ao mesmo tempo, em condições de mobilizar apoios em outros campos além das ciências humanas. Talvez seja possível interpretar as candidaturas de Bourdieu e Touraine nessa ocasião em termos de um confronto entre o intelectual provinciano petulante que se deu bem em carreira solo de guru na torre de marfim parisiense e o intelectual compenetrado e confiante em suas alianças extra-intelectuais junto à elite política da esquerda socialista. O triunfo profissional de Bourdieu é o único ao alcance de um estudioso que não possui armas extra-intelectuais.
Sua inserção institucional em uma das chamadas "grandes escolas", mercado da excelência acadêmica paralelo ao sistema universitário francês, favoreceu a obtenção do montante considerável de recursos que lhe permitiu montar um núcleo autônomo de investigação (o Centro de Sociologia Européia), realizar dispendiosos levantamentos empíricos, recrutar uma equipe de jovens pesquisadores talentosos e, ao cabo da primeira década de atividades, editar uma revista científica provocativa e de feitio gráfico inovador ("Actes de la Recherche en Sciences Sociales", lançada em janeiro de 1975).
Aliás, as manifestações mais hostis contra Bourdieu e sua obra foram formuladas por ex-integrantes dessa equipe pioneira, sendo explicáveis, ao menos em parte, em razão das desavenças e rivalidades de toda ordem desencadeadas pelo estrito controle das gratificações acadêmicas mais cobiçadas exercido pela elite dos grandes "patrões" de que Bourdieu faz parte.
O perfil de sua contribuição sociológica pode ser apreciado quer por intermédio dos objetos construídos para investigação, quer pela originalidade dos conceitos operacionais mobilizados na apreensão da produção e consumo de cultura, quer enfim pela força e fecundidade dos métodos de análise.
Nas décadas de 60 e 70, ao tempo dos primeiros livros de impacto -a trilogia sobre o sistema de ensino ("Les Héritiers"/Os Herdeiros, 1964), coroada pela teoria da reprodução ("A Reprodução", 1970), os estudos inovadores sobre as práticas fotográficas ("Un Art Moyen"/Uma Arte Média, 1965), a frequência aos museus ("L"Amour de l'Art"/O Amor da Arte, 1966) e os padrões de gosto ("La Distinction"/A Distinção, 1979)-, as humanidades estavam sideradas pelo que hoje se poderia denominar "onda linguística", ou, numa expressão desairosa, "ressaca discursiva". As teorias da informação, as análises semiológicas, as primícias do discurso, as estéticas formalistas, os estruturalismos semióticos, todas essas correntes vinham difundindo a "certeza", logo dissipada, de que os textos, as obras de arte, os bens simbólicos em geral continham em seu tecido constitutivo as balizas requeridas ao seu decifração e interpretação.
Remando contra essas correntes de leitura "interna", Bourdieu investiu numa redefinição teórica do que até então passara a ser execrado, o "contexto", a realidade social abrangente. Em lugar de formatar um novo arrazoado teórico para o lugar e os efeitos do contexto no processo de determinação de qualquer produto cultural, ou melhor, em vez de renomear, por exemplo, os ligamentos entre as obras de arte e os condicionantes de sua produção e recepção, preferiu qualificar os processos de constituição dos espaços sociais competitivos em que se movem os agentes produtores e consumidores desses produtos por intermédio do conceito-chave de "campo" e de toda uma constelação de noções auxiliares, "habitus", "capital", "competência", "autoridade" etc.
Em vez de uma discussão acerca dos constrangimentos extraculturais, priorizou a reconstrução da hierarquia interna em cujas posições se dispõem autores e obras, focalizando os móveis capazes de atiçar a concorrência no âmbito de uma dada atividade, buscando deslindar os pontos de aproximação e dissensão, os caracteres morfológicos (educação, família, renda, prestígio, poder etc.) dos ocupantes das diferentes posições, os montantes e espécies de capital e de autoridade ao seu alcance, o cabedal de "invenção", linguagens, valores e classificações mobilizado, em suma, uma recuperação trabalhosa da dinâmica histórica da atividade sob exame.
Em meio a tais enfrentamentos vão surgindo os sentidos das lutas em que se envolvem os diversos grupos aptos a pleitear o domínio simbólico de um determinado campo.
O contexto, em sua antiga acepção de sítio abrangente de ocorrências motivadas, se esvai em favor de um balizamento derivado da história interna de uma dada atividade social, tornando os interesses e as características dos profissionais do campo, a exemplo da proposta weberiana sobre a atividade religiosa, no principal efeito de arrastão em termos de compreensão e inteligibilidade. E, o mais surpreendente, tamanho empenho em reconstituir um tecido social de mediações alicerçou análises internas notavelmente instigantes das maquinações pretensamente essencialistas de Heidegger ("A Ontologia Política de Martin Heidegger", 1988), das linguagens de moda dos estilistas da alta-costura francesa ("Le Couturier et la Griffe", 1975), bem como a leitura de "A Educação Sentimental" de Flaubert ("As Regras da Arte", 1992).
Um segundo grupo de obras, em que se incluem "Homo Academicus" (1984), "La Noblesse d"État" (A Nobreza do Estado, 1989), "A Miséria do Mundo" (1993), são monografias ambiciosas que reconstroem a história social dos grupos investigados, buscando recuperar as mudanças internas, a dinâmica de seus relacionamentos com outros setores da hierarquia e, ao mesmo tempo, restituindo uma imagem da estrutura social a partir das perspectivas desses mesmos grupos.
Ao lidar com diferentes frações da classe dirigente (professores universitários, altos funcionários dos setores público e privado, escritores e artistas etc.), Bourdieu explora as linhas de força analíticas em torno da gênese e transformação de setores sociais situados no pólo não-econômico da classe dirigente, a maioria deles ocupando os lugares sociais nos quais se confundem com o "Estado". Ao interpretar os pungentes testemunhos dos "humilhados e ofendidos" dos setores populares mais destituídos, o diálogo de fundo rediscute as condições necessárias à captação de objetos "distantes" do observador, o papel das representações e os clichês pré-fabricados pelas teorias classistas de estratificação.
A vertente de trabalhos de intervenção pedagógico-científica ou propriamente de militância política se inaugurou em 1968 com o saboroso manual de iniciação do aprendiz de cientista social, intitulado "Le Métier de Sociologue" (1968), escrito em colaboração com Jean-Claude Passeron e Jean-Claude Chamboredon.
As dicas, desafios, ironias e lembretes de auto-ajuda constavam de textos curtos e incisivos, fazendo as vezes de epígrafes dos textos selecionados. Organizado como coletânea de autores representativos de um espectro diferenciado de correntes analíticas, em formato bem distinto dos aguados manuais disponíveis no mercado, difusores de um receituário convencional e gritantemente "objetivista", o livro teve logo uma acolhida calorosa ao mexer com as fossas, incertezas e ambivalências subjetivas da geração emergente de cientistas sociais.
Incluem-se ainda nessas obras de militância volumes de entrevistas e conferências para difusão do paradigma sociológico em progresso; livros de sistematização e combate destinados a mobilizar o debate científico interno ao campo das humanidades: "Le Sens Pratique" (O Sentido Prático, 1980), "A Economia das Trocas Linguísticas" (1982) etc.; livros atrevidos de intervenção a respeito de objetos "sacramentados", como arte e estética, entre os quais o diálogo travado com o artista alemão Hans Haacke, em "Livre-Troca" (1994), e a autobiografia intelectual e científica contida nas "Méditations Pascaliennes" (1997); por fim, os dois opúsculos provocadores dos establishment acadêmico, jornalístico e econômico-financeiro, os libelos de combate ao credo neoliberal, "Sobre a Televisão" (1996) e o recém-lançado "Contrafogos" (1998).
A essa altura, o leitor já poderá ter atinado com as razões substantivas que dão conta do êxito e da repercussão crescente desses trabalhos, em especial junto à turma de cientistas sociais especializados em estudos sociológicos e antropológicos da cultura. Bourdieu deu impulso vigoroso à tradição de construir um objeto próprio no domínio da sociologia da cultura, reinventando temas e modos de tratamento manejados por tradições intelectuais vizinhas (a crítica literária ou a estética filosófica, entre outras) e, ao mesmo tempo, levando a melhor sobre os resultados pífios de alguns de seus desafiantes entre os cientistas sociais contemporâneos.
As análises das práticas de produção e consumo culturais mobilizaram procedimentos imaginativos e heterodoxos; incorporaram conceitos e representações dos usuários e "nativos" numa chave de registro expressivo reminiscente dos "pais fundadores" da sociologia; exploraram fontes documentais até então praticamente desconsideradas, como fotos, materiais publicitários, resultados de sondagens realizadas fora da universidade etc.; remapearam o terreno social de emergência das práticas culturais, a meio caminho entre afazeres cotidianos, reclamos éticos, exigências estéticas, ritmação afetiva e pontuação expressiva.
Ao lado de Norbert Elias e Jürgen Habermas, Raymond Williams e E.P. Thompson, Erving Goffman e Charles Tilly, Lévi-Strauss e Georges Duby, Bourdieu trouxe sua contribuição à frente renovadora da ciência social contemporânea.


Sergio Miceli é professor titular de sociologia da USP e autor, entre outros, de "A Noite da Madrinha" (Perspectiva) e "Imagens Negociadas - Retratos da Elite Brasileira" (Cia. das Letras).



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