São Paulo, Domingo, 07 de Fevereiro de 1999
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Daniel Cohn-Bendit diz que a economia de mercado é a mais democrática e que a tarefa política hoje é saber regulá-la
O rebelde volta a paris

ALFREDO SIRKIS
especial para a Folha

Daniel Cohn-Bendit irrompeu no hemiciclo de uma das salas de comissões do Parlamento Europeu, em Bruxelas, onde eu explicava a situação da Amazônia e nossos dissabores econômicos para uma platéia de uns 30 deputados verdes europeus e assessores. Chegou brincando: "O que esse terrorista brasileiro está fazendo no Parlamento Europeu?".
Um par de olhos azuis claros, plácidos e maliciosos, uma permanente agitação corporal. O cabelo louro comprido, desgrenhado, muitas sardas, uns quilinhos a mais. Subiu até a mesa, sapecou-me um beijo estalado na bochecha: "Salut, Alfredô!". Nós nos havíamos conhecido no Rio, em 87, quando ele me entrevistara sobre os "anos de chumbo" no Brasil para seu livro "Nós Que Amamos Tanto a Revolução".
Dany, ex-"le rouge", hoje "le vert", está com 53 anos. É deputado do Parlamento Europeu pelo Partido Verde alemão e vive entre Frankfurt, com a família, Bruxelas e Estrasburgo, as cidades-sede do Parlamento Europeu, e, agora, novamente, Paris, onde tudo começou, em maio de 68, quando ele era um líder estudantil na universidade de Nanterre e... aluno do professor Fernando Henrique Cardoso, como ele conta na entrevista abaixo.
O líder da rebelião de Maio de 68 está de volta à política francesa, 30 anos depois de sua expulsão. Quer reeleger-se deputado europeu, nas eleições do dia 13 de junho, só que dessa vez encabeçando a lista européia dos verdes franceses.
Socialistas, comunistas e outros grupos da "esquerda plural" do primeiro-ministro Lionel Jospin sentem-se eleitoralmente ameaçados pelo regresso ao cenário político francês do gentilmente ferino Cohn-Bendit. Em pesquisa no "Nouvel Observateur", 27% afirmam que poderiam votar na lista verde encabeçada por ele.
Naquela semana, ele seria primeira página no "Le Monde" e no "Libération" e, na seguinte, capa do "Nouvel Observateur". Discordou da política de imigração de Lionel Jospin, trocou farpas e depois almoçou com o líder comunista Robert Hue, desafiou para um debate o chefe neofacista Jean Marie Le Pen, que correu da raia. Se isso tudo vai se traduzir em votos não se sabe ao certo, mas que vai render muito, mas muito, "frisson", ninguém duvide.

Nunca acreditei que o socialismo real fosse uma alternativa; precisamos reinventar o keynesianismo


Folha - Sua avaliação de 68 e dos "anos de chumbo" continua a mesma de dez anos atrás, quando você publicou "Nous Qui Avons Tant Aimé la Révolution"? O fim da Guerra Fria, o colapso do comunismo e tudo aquilo que aconteceu com as sociedades do chamado socialismo real, a partir de Gorbatchov, alteraram de alguma maneira aquele balanço? Mudou sua visão da esquerda nos últimos dez anos?
Daniel Cohn-Bendit
- Minha visão sobre tudo aquilo é, no essencial, a mesma de dez, 15 anos. Tenho uma tradição libertária. Eu era fundamentalmente anticomunista. Nunca acreditei que o socialismo real fosse uma alternativa ao capitalismo de mercado. Para mim o colapso do socialismo real não foi surpresa. Sempre defendi que era um sistema totalitário, que ainda por cima não funcionava.
Era uma visão distinta daquela da esquerda mais tradicional, que dizia: "Está bem, o socialismo real não é uma panacéia, é uma sociedade antidemocrática, mas é capaz de alimentar seus cidadãos, dar-lhes educação, uma proteção de saúde etc.". Mas percebemos que também isso era um engodo. Pessoalmente não sinto a menor necessidade de revisitar aquela minha análise de esquerda. A grande travessia que fizemos foi já nos anos 70: compreender que, entre a economia de mercado e a economia planificada, a mais democrática e a mais dinâmica é a economia de mercado. A partir dessa decisão, o problema que me coloco sempre é de como regulá-la, como dar-lhe uma dimensão social.
Folha - Mas será que não caímos no outro extremo: depois do dogma estatista, o dogma neoliberal?
Cohn-Bendit
- Não creio que o mercado possa resolver tudo. Uma economia de mercado necessita de uma política de Estado que garanta a justiça e que assuma a responsabilidade de promover a igualdade. Ou seja, um Estado capaz de regular o mercado. Os impostos, por exemplo. Se instituímos a ecotaxa, estamos influenciando a forma de consumir energia. Uma política que parta da realidade do mercado é diferente de uma confiança absoluta na "racionalidade" desse mercado.
Pelo contrário. O mercado existe, tem a sua dinâmica, suas contradições, e à esfera política cabe influenciá-lo por meio dos mecanismos da democracia para obter um certo tipo de funcionamento. Isso é o oposto do neoliberalismo. Havia dois "deuses". O "deus" socialista da planificação, que planejava tudo para o ser humano, e o outro "deus" do mercado, que, supostamente, encerra em si toda a racionalidade. Mas isso simplesmente não é verdade e devemos fazer com que as pessoas o compreendam...
Folha - Com exceção da Espanha e da Irlanda, todos os outros governos europeus hoje apresentam uma certa tendência social-democrata, e na Itália, Holanda, Suécia, França e Alemanha os verdes participam desses governos. A Europa pode conformar um bloco neokeynesiano alternativo ao neoliberalismo? Vivemos no limiar de uma nova era política na Europa?
Cohn-Bendit
- Espero que sim. Hoje vivemos uma situação de uma busca de mudança de paradigma na Europa, em que a própria definição do que vem a ser a esquerda é recolocada em questão pela presença dos ecologistas. A idéia do desenvolvimento sustentável questiona essa ideologia produtivista da esquerda clássica, e creio que esse é um dos grandes debates ideológicos e também políticos dos próximos anos. No lugar de uma crença ingênua no crescimento quantitativo, por si só, chega-se hoje a conceitos como o de um crescimento seletivo, um crescimento qualitativo.
Mas falar de uma unidade européia em torno da social-democracia, nessa altura, me parece precipitado. O que existe é, simplesmente, um certo clima favorável para começar a sair dessa ilusão neoliberal. Mas daí para frente o que temos é um debate, um leque de propostas. Diferentes forças políticas com uma história diferente estão experimentando coisas diferentes na Europa. Há diferenças entre o que propõe Tony Blair, os franceses, os alemães. Fazer disso tudo uma união pode ser apaixonante, mas não é nada fácil. E, antes de colocarmos grandes a prioris ideológicos, vejamos quais serão os resultados de Blair em relação à pobreza. Vejamos os seus resultados em relação ao meio ambiente. Vejamos também os resultados de Jospin. Vejamos os dos alemães. Será mais frutífero debater confrontando esses balanços do que ficar discutindo quem está ideologicamente mais correto.
Precisamos reinventar o keynesianismo. Ele partia de um voluntarismo de Estado numa época em que os Estados nacionais tinham uma grande disponibilidade de endividamento. Hoje não é mais o caso. Essa é já de saída uma diferença substancial. Creio que atualmente o keynesianismo só poderia funcionar a partir de grandes instituições de características supranacionais. Mas os critérios de keynesianismo teriam que ser totalmente revistos. Como se pode medir hoje o crescimento de uma sociedade? É imperativo que se integrem os parâmetros ecológicos.
Folha - Na era da globalização, precisaríamos então de um Estado supranacional que regulasse o mercado globalmente, uma espécie de governo mundial, pelo menos para certas questões, como a especulação financeira internacional e os riscos ambientais de impacto global. Mas como viabilizá-lo?
Cohn-Bendit
- Sou favorável a uma regulamentação dos movimentos de capital dentro da Organização Mundial de Comércio. Sou favorável à Tobin Tax (1) e creio que há outros mecanismos. Quase todos estão de acordo em que é fundamental encontrarmos mecanismos de controle sobre os fluxos de capitais especulativos. Temos que regulamentar também os fundos de pensão, as movimentações especulativas dos bancos, de grandes empresas e não podemos esquecer o dinheiro "lavado" das drogas. São somas fabulosas que também contribuem para a instabilidade geral que se instalou. Só a Tobin Tax não é suficiente. Seria necessário definir etapa por etapa uma estratégia mundial.
Folha - Além da Tobin Tax precisamos de um mecanismo de prazo mínimo de permanência dos capitais num país e de um ataque aos chamados "paraísos fiscais"...
Cohn-Bendit
- Estou de acordo. Acho que uma primeira instância é a Organização Mundial do Comércio (OMC). É indispensável integrar nas decisões da OMC as da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre fim do trabalho infantil, direitos sindicais mínimos para todo o planeta. Essas duas instâncias não podem continuar funcionando em paralelo, devem se entrelaçar. Isso da OMC ignorar as convenções sobre direitos sociais elementares, meio ambiente não tem sentido algum. A partir daí precisa haver um direito de supervisão implementado pela própria ONU. Mas a discussão deverá ocorrer no interior da OMC, na qual os 15 países da União Européia são representados no seu conjunto por um comissário. Esse é o primeiro grande debate efetivo para transcender o neoliberalismo no plano internacional.
Folha - À luz da experiência européia, como você vê o Mercosul?
Cohn-Bendit
- O Mercosul deveria ir além da mera integração de mercado e pensar numa comunidade, quem sabe, análoga à União Européia. Isso daria um peso não só mercantil, mas político, social e cultural à América do Sul. Aqui na Europa percebemos que ser simplesmente um mercado comum é muito limitado. Consolidamos o mercado, mas criamos instituições comunitárias. Vocês deveriam pensar em algo desse tipo.
Folha - Em 68, na América Latina, tínhamos ditaduras militares, mas aqui vocês viviam em democracia no apogeu da economia de mercado, aquela fase de ouro que Eric Hobsbawm chama de "30 anos gloriosos" do capitalismo. Revoltaram-se contra o sistema em tempos de pleno emprego, progressão constante de salários reais e confortáveis perspectivas de inserção no mercado profissional. Hoje, na época do medo do futuro, do desemprego em massa, da instabilidade e da angústia, os estudantes lutam simplesmente para garantir seu lugar nessa sociedade, não mais para demoli-la ou mudá-la radicalmente. Que lhe parece esta ironia da história?
Cohn-Bendit
- Mas é normal! O que sucedia nos anos 60, na verdade, era o seguinte: Marx estava errado quando concluiu que o capitalismo era incapaz de desenvolver plenamente os meios de produção, ou melhor, quando supunha que as condições gerais do capitalismo e do mercado bloqueariam o desenvolvimento pleno dos meios de produção. Mas tinha razão ao notar que, em certos momentos históricos, a superestrutura ideológica do capitalismo impede a modernização de toda uma sociedade. E a modernização da sociedade não é apenas a da infra-estrutura econômica. É bem verdade que nos anos 50 e nos 60, com De Gaulle, a França fez a chamada "revolução branca": as famílias conquistaram suas geladeiras, lavadoras de pratos, automóveis e, como você notou, o pleno emprego.
Mas, ao mesmo tempo, as superestruturas cultural e moral não correspondia a esse mundo novo. Era arcaica, opressiva. Foi isso que explodiu! Por outro lado, hoje já não existe mais aquela grande crença religiosa numa outra sociedade. O revolucionário se estruturava em torno da crença de um processo de mudanças revolucionárias do qual nasceria uma nova sociedade. Essa fé mística no processo purificador da revolução acabou.
Folha - Você concorda com Samuel Huntington, para quem a base dos conflitos do século 21 será cultural? Estamos no limiar de guerras culturais?
Cohn-Bendit
- Não, não e não! Os problemas econômicos podem exacerbar conflitos culturais, mas discordo desse determinismo de Huntington, que é tremendamente simplista. O Islã, por exemplo, é múltiplo, o judaísmo é múltiplo, podem-se reduzir os conflitos entre culturas, chegar ao diálogo entre culturas. As pessoas têm vontade de se misturar, mas, ao mesmo tempo, têm medo da mistura.
Folha - Quais são suas recordações como aluno do professor Fernando Henrique Cardoso, em Nanterre, em 1968?
Cohn-Bendit
- Poucas. Lembro-me vagamente de algumas discussões que tivemos sobre questões do Terceiro Mundo. Era um cara simpático. Confesso que, apesar de ele ser meu professor, não tivemos lá muito contato (2). Naquele tempo eu não assistia às aulas tanto assim.

Notas
1. Imposto internacional de 0,5% sobre todas as transações financeiras internacionais, destinado a um fundo mundial contra a pobreza, proposto pelo economista norte-americano e Prêmio Nobel James Tobin;
2. O professor Fernando Henrique Cardoso se lembra melhor do ex-aluno. Numa conversa que tive com ele, juntamente com Gilberto Gil, em dezembro último, no Palácio da Alvorada, recordou-se do irrequieto e sardento aluno ao qual, garante, ajudou a passar de ano, apesar das inúmeras faltas, pelo "potencial de conhecimento" que demonstrava.


Alfredo Sirkis é presidente do Partido Verde (PV) e autor, entre outros, de "Os Carbonários" (Record).



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