São Paulo, Domingo, 07 de Fevereiro de 1999
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LIVROS
Duas coletâneas de textos expõem evolução do pensamento de Olgária Matos
Utopia para a vida

RICARDO MUSSE
especial para a Folha

A publicação, quase simultânea, de duas coletâneas de artigos de Olgária Matos não só permite ao leitor acompanhar a evolução geral de seu trabalho -tarefa facilitada pelos critérios adotados na organização dos volumes, em parte temáticos, em parte cronológicos-, mas também deixa nítidas algumas das linhas de força que norteiam seu pensamento.
"Vestígios" congrega uma série de textos curtos -artigos, crônicas, resenhas e pequenos ensaios- publicados, na maior parte, em jornal entre 1981 e 1997 (quase todos na Folha). "História Viajante", por sua vez, consiste numa reunião de 11 ensaios que acompanham um relato autobiográfico centrado na sua formação universitária, o "memorial" da tese de livre-docência. À primeira vista, tratar-se-ia de um livro composto de textos de circunstância, voltados para um público mais amplo, e de uma coletânea mais afeita ao trabalho acadêmico e ao gosto de seus pares.
Essa regra, porém, não vale para Olgária Matos. Em nenhum momento, mesmo cumprindo à risca as exigências da vida universitária, ela se perde em tecnicidades, buscando sempre uma inteligibilidade que não afugente o leitor comum. Por outro lado, nunca abandona o rigor e a complexidade, mesmo quando, didaticamente, visa ao leitor de jornal. Assim, os dois livros podem (e devem) ser lidos como um mesmo conjunto, desdobrado em dois volumes.
O núcleo estruturante, o momento auto-reflexivo, é dado pelo "memorial". No relato de sua trajetória intelectual, Olgária Matos tanto destaca os traços comuns à época, ou à sua geração, quanto se detém na singularidade de um itinerário cada vez mais determinado por uma inflexão pessoal e original. Para Olgária, o que mais lhe agradava na Faculdade de Filosofia da rua Maria Antônia nos anos 60 era a utopia de que "todas as criações do espírito podiam fazer homens melhores", um programa de certo modo delimitado por uma articulação entre a teoria e a prática, que procurava vincular a abstração própria da filosofia com a compreensão do cotidiano.
Renato Janine Ribeiro, num prefácio bastante instigante e esclarecedor, complementa que se tratava sobretudo -nos marcos de um pensamento marcado por 68- de estabelecer uma constelação de críticas à esquerda doutrinária. Nesse sentido, buscava-se uma nova localização para o político (que não excluía nem sequer o terreno dos sentimentos ou o âmbito da família), recusando a ênfase tradicional no poder institucional, ao mesmo tempo em que, na esfera do pensamento, abria-se para o outro, o diferente.
A originalidade do percurso de Olgária, o fator que a singulariza diante dos demais membros de sua geração, prende-se -conforme ela própria expõe no "memorial"- à atenção que sempre concedeu à "imagem", tomando-a como um signo tão ou mais revelador que o próprio "conceito". Preocupação adquirida já durante a graduação, sob a influência de cursos de Marilena Chaui, Gilda de Mello e Souza, Maria Sylvia Carvalho Franco, Bento Prado Jr., Victor Knoll, Paulo Arantes etc., que, de uma forma ou de outra, procuravam romper com a primazia da lógica e da leitura historiográfica à francesa (a explicação de textos segundo a cartilha de Guéroult e Goldschmidt).
É essa mesma preocupação que a levará a revisitar em três livros complementares -por meio de leituras assumidamente heterodoxas- alguns momentos cruciais da história das filosofias moderna e contemporânea: Rousseau em "Uma Arqueologia da Desigualdade" (MG Editores, 1978) -o seu mestrado-; Adorno e Horkheimer em "Os Arcanos do Inteiramente Outro" (Brasiliense, 1989) -o doutorado-; Walter Benjamin e Descartes em "O Iluminismo Visionário: W. Benjamin Leitor de Descartes e Kant" (Brasiliense) -a livre-docência.
O nexo entre os autores privilegiados -uma constelação pessoal de preferências na qual se salientam ainda Reich, Marcuse e Lefort-, no entanto, só se torna evidente agora, com a edição dessas duas coletâneas. Elas deixam claro que o itinerário de Olgária Matos, mesmo quando se propõe a escrever uma certa porção da história da filosofia, não se prende exclusivamente às exigências profissionais de domínio de um certo número de autores. Tanto a escolha dos objetos de estudo quanto a maneira peculiar de interpretá-los derivam de um conjunto de questões que têm como horizonte a perspectiva de uma intervenção no curso do mundo.
A crítica da razão histórica, de um sentido imanente, de uma progressão ou mesmo de um finalismo, a leva, por exemplo, ao estudo dos textos produzidos nos anos 30 pelos autores agrupados na "Escola de Frankfurt". A preocupação com a persistência da dominação, "a autonegação em nome da auto-afirmação como núcleo de toda a racionalidade civilizatória", bem como as críticas à ciência e à técnica dirigem suas investigações para o conjunto de textos articulados pela "Dialética do Esclarecimento" de Adorno e Horkheimer. A crítica à racionalidade científica desperta seu interesse para a tese marcuseana da possibilidade de reconciliar razão e natureza, resgatando a sensibilidade e a sensualidade.
As preocupações recorrentes com a diferença entre o sentido literal e o figurado, com as técnicas de interpretação e exegese que não dispensam a alegoria, as metáforas, a imagem, assim como o interesse pelo história como experiência, memória, conhecimento e esperança, encaminham seu trabalho para o estudo de Walter Benjamin. Mais recentemente, Olgária desenvolve -ao longo de vários textos ou passagens dessas coletâneas-, tomando como ponto de partida a crítica adorniana da indústria cultural, uma defesa da educação humanista, a seu ver, o último anteparo contra a adaptação total do ensino às exigências do mercado e da técnica. Identifica na crise da educação humanista uma atrofia do espaço público, um empobrecimento da vida política na medida em que essa, em lugar de salvaguardar os direitos do cidadão, retoma a tese totalitária das "razões -agora econômicas- de Estado".


A OBRA

Vestígios - Escritos de Filosofia e Crítica Social - Olgária Matos. Ed. Palas Athena (r. Serra de Paracaina, 240, CEP 01522-020, SP, tel. 011/279-6288). 164 págs. R$ 20,00.

História Viajante - Notações Filosóficas - Olgária Matos. Ed. Studio Nobel (r. da Balsa, 559, CEP 02910-000, SP, te l. 011/25 7-7599). 150 págs. R$ 22,00.




Ricardo Musse é professor de filosofia na Unesp (Universidade Estadual Paulista).



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