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LIVROS
Duas coletâneas de textos expõem evolução do pensamento de Olgária Matos
Utopia para a vida
RICARDO MUSSE
especial para a Folha
A publicação, quase simultânea,
de duas coletâneas de artigos de
Olgária Matos não só permite ao
leitor acompanhar a evolução geral de seu trabalho -tarefa facilitada pelos critérios adotados na
organização dos volumes, em parte temáticos, em parte cronológicos-, mas também deixa nítidas
algumas das linhas de força que
norteiam seu pensamento.
"Vestígios" congrega uma série
de textos curtos -artigos, crônicas, resenhas e pequenos ensaios- publicados, na maior parte, em jornal entre 1981 e 1997
(quase todos na Folha). "História
Viajante", por sua vez, consiste numa reunião de 11 ensaios que
acompanham um relato autobiográfico centrado na sua formação
universitária, o "memorial" da tese
de livre-docência. À primeira vista, tratar-se-ia de um livro composto de textos de circunstância,
voltados para um público mais
amplo, e de uma coletânea mais
afeita ao trabalho acadêmico e ao
gosto de seus pares.
Essa regra, porém, não vale para
Olgária Matos. Em nenhum momento, mesmo cumprindo à risca
as exigências da vida universitária,
ela se perde em tecnicidades, buscando sempre uma inteligibilidade
que não afugente o leitor comum.
Por outro lado, nunca abandona o
rigor e a complexidade, mesmo
quando, didaticamente, visa ao leitor de jornal. Assim, os dois livros
podem (e devem) ser lidos como
um mesmo conjunto, desdobrado
em dois volumes.
O núcleo estruturante, o
momento auto-reflexivo, é
dado pelo "memorial". No relato de sua trajetória intelectual, Olgária
Matos tanto
destaca os traços comuns à
época, ou à sua
geração, quanto se detém na
singularidade
de um itinerário cada vez
mais determinado por uma
inflexão pessoal e original. Para
Olgária, o que mais lhe agradava
na Faculdade de Filosofia da rua
Maria Antônia nos anos 60 era a
utopia de que "todas as criações do
espírito podiam fazer homens melhores", um programa de certo
modo delimitado por uma articulação entre a teoria e a prática, que
procurava vincular a abstração
própria da filosofia com a compreensão do cotidiano.
Renato Janine Ribeiro, num prefácio bastante instigante e esclarecedor, complementa que se tratava
sobretudo -nos marcos de um
pensamento marcado por 68- de
estabelecer uma constelação de
críticas à esquerda doutrinária.
Nesse sentido, buscava-se uma nova localização para o político (que
não excluía nem sequer o terreno
dos sentimentos ou o âmbito da família), recusando a ênfase tradicional no poder institucional, ao
mesmo tempo em que, na esfera
do pensamento, abria-se para o
outro, o diferente.
A originalidade do percurso de
Olgária, o fator que a singulariza
diante dos demais membros de sua
geração, prende-se -conforme
ela própria expõe no "memorial"- à atenção que sempre concedeu à "imagem", tomando-a como um signo tão ou mais revelador que o próprio "conceito".
Preocupação adquirida já durante
a graduação, sob a influência de
cursos de Marilena Chaui, Gilda de
Mello e Souza, Maria Sylvia Carvalho Franco, Bento Prado Jr., Victor
Knoll, Paulo Arantes etc., que, de
uma forma ou de outra, procuravam romper com a primazia da lógica e da leitura historiográfica à
francesa (a explicação de textos segundo a cartilha de Guéroult e
Goldschmidt).
É essa mesma preocupação que a
levará a revisitar em três livros
complementares -por meio de
leituras assumidamente heterodoxas- alguns momentos cruciais
da história das filosofias moderna
e contemporânea: Rousseau em
"Uma Arqueologia da Desigualdade" (MG Editores, 1978) -o seu
mestrado-; Adorno e Horkheimer em "Os Arcanos do Inteiramente Outro" (Brasiliense, 1989)
-o doutorado-; Walter Benjamin e Descartes em "O Iluminismo Visionário: W. Benjamin Leitor de Descartes e Kant" (Brasiliense) -a livre-docência.
O nexo entre os autores privilegiados -uma constelação pessoal
de preferências na qual se salientam ainda
Reich, Marcuse
e Lefort-, no
entanto, só se
torna evidente
agora, com a
edição dessas
duas coletâneas. Elas deixam claro que
o itinerário de
Olgária Matos,
mesmo quando se propõe a
escrever uma
certa porção da
história da filosofia, não se
prende exclusivamente às exigências profissionais de domínio
de um certo número de autores.
Tanto a escolha dos objetos de estudo quanto a maneira peculiar de
interpretá-los derivam de um conjunto de questões que têm como
horizonte a perspectiva de uma intervenção no curso do mundo.
A crítica da razão histórica, de
um sentido imanente, de uma progressão ou mesmo de um finalismo, a leva, por exemplo, ao estudo
dos textos produzidos nos anos 30
pelos autores agrupados na "Escola de Frankfurt". A preocupação
com a persistência da dominação,
"a autonegação em nome da auto-afirmação como núcleo de toda a
racionalidade civilizatória", bem
como as críticas à ciência e à técnica dirigem suas investigações para
o conjunto de textos articulados
pela "Dialética do Esclarecimento"
de Adorno e Horkheimer. A crítica
à racionalidade científica desperta
seu interesse para a tese marcuseana da possibilidade de reconciliar
razão e natureza, resgatando a sensibilidade e a sensualidade.
As preocupações recorrentes
com a diferença entre o sentido literal e o figurado, com as técnicas
de interpretação e exegese que não
dispensam a alegoria, as metáforas, a imagem, assim como o interesse pelo história como experiência, memória, conhecimento e esperança, encaminham seu trabalho para o estudo de Walter Benjamin. Mais recentemente, Olgária
desenvolve -ao longo de vários
textos ou passagens dessas coletâneas-, tomando como ponto de
partida a crítica adorniana da indústria cultural, uma defesa da
educação humanista, a seu ver, o
último anteparo contra a adaptação total do ensino às exigências
do mercado e da técnica. Identifica
na crise da educação humanista
uma atrofia do espaço público, um
empobrecimento da vida política
na medida em que essa, em lugar
de salvaguardar os direitos do cidadão, retoma a tese totalitária das
"razões -agora econômicas- de
Estado".
A OBRA
Vestígios - Escritos de Filosofia e Crítica Social - Olgária
Matos. Ed. Palas Athena (r. Serra de Paracaina, 240, CEP 01522-020, SP,
tel. 011/279-6288). 164 págs. R$ 20,00.
História Viajante - Notações Filosóficas - Olgária Matos. Ed. Studio Nobel (r. da Balsa, 559, CEP 02910-000, SP, te l. 011/25 7-7599). 150 págs. R$ 22,00.
Ricardo Musse é professor de filosofia na Unesp
(Universidade Estadual Paulista).
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